1. O título da resposta do Bloco de Esquerda a um texto que escrevi é quase tão eloquente que dispensaria uma resposta: “José Manuel Fernandes e a defesa acalorada de uma renda de 450 milhões de euros”.

A palavra chave aqui é “renda”. Para o Bloco de Esquerda um contrato de compra e venda de serviços entre o Estado e privados é, por definição, uma “renda”. Para um cidadão comum contratar um serviço com uma empresa que, por exemplo, nos forneça telecomunicações é um negócio onde as duas partes ganham: o cidadão que passa a poder comunicar, a empresa que tem mais um cliente. A ninguém passa pela cabeça designar esse contrato como uma “renda”. Da mesma forma que não diz que está a suportar uma renda quando paga a conta do dentista ou da farmácia.

O que se passa nas PPP da Saúde é algo de semelhante: o Estado contrata com privados o fornecimento de serviços de saúde aos cidadãos, tudo no quadro do Serviço Nacional de Saúde. Como demonstrei no meu artigo, e voltarei a demonstrar neste, os hospitais que fornecem esses serviços de saúde fazem-no com mais qualidade do que a maioria dos hospitais geridos directamente pelo Estado e por um preço mais baixo. Tudo isso está numa auditoria do Tribunal de Contas, em dois estudos da Universidade Católica e nas avaliações de qualidade da Entidade Reguladora da Saúde. Nada disso é desmentido pelo deputado do Bloco de Esquerda, que apenas procura questionar a idoneidade ou a validade de algumas dessas avaliações, mas sem dados concretos relevantes (os poucos que cita não fazem sentido, como demonstrarei mais adiante).

Se o Estado estivesse a pagar aos privados valores muito acima dos que ele próprio suporta nos seus hospitais, talvez pudéssemos falar de “rendas” – mas nesse caso a renda corresponderia apenas ao que o Estado estaria a pagar a mais. Ou seja, nunca teríamos uma “renda” de 450 milhões, apenas uma fracção desse valor. Mas não é isso que se passa, antes o contrário, como diz o Tribunal de Contas, para quem o Estado está a poupar 10% a 20% em parcerias como a do Hospital de Braga. Ou seja, se quisermos insistir nesta linguagem viciada o que teríamos era uma “renda” negativa. Em concreto, um benefício anual para os contribuintes de 50 a 100 milhões de euros.

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Se o senhor deputado do Bloco me encontrar uma casa com uma renda assim, negativa, eu aceito-a já. E julgo que a maioria dos portugueses faria o mesmo.

Porque utiliza então o termo “renda”, sugerindo que estamos perante uma situação em que o SNS está a ser sugado por grupos “rentistas”? Porque é uma velha técnica política apropriar-se da linguagem e manipulá-la a seu belo prazer. Orwell explicou isso muito bem nas suas distopias em que denunciava os métodos comunistas (falo de 1984 e de O Triunfo dos Porcos) – e o Bloco, convém não esquecer, apesar de disfarçado, é uma organização de comunistas (nas variantes trostkista e no que resta do velho maoismo).

Não importa por isso que o termo “renda” seja abusivo e, no limite, insultuoso para quem presta um serviço aos cidadãos – o que interessa é que esse termo provoca um belo efeito e cria a percepção de que existe um privilégio.

2. Antes de ir aos esclarecimentos necessários sobre os números avulso com que Moisés Ferreira procura descredibilizar os estudos e relatórios que citei (incluindo, insisto, o do Tribunal de Contas), é importante tornar claro o que nos separa. Ao contrário do que sugere o deputado do Bloco, não é nem a universalidade, nem o carácter público do Serviço Nacional de Saúde. Como expliquei no meu artigo, os hospitais PPP são hospitais do SNS que atendem qualquer cidadão nas mesmas (ou em melhores) condições do que os hospitais de gestão pública.

O que nos separa é que para Moisés Ferreira tudo o que não for gerido directamente pelo Estado, pela sua burocracia, pelos seus funcionários e pelos seus políticos é um perigo para os utentes pois “a saúde não pode ser tratada como uma mercadoria”. O slogan não podia faltar, mas só mostra a dimensão do dislate.

Senão vejamos: por mais voltas e reviravoltas que o deputado do Bloco dê na sua cadeira em São Bento, a verdade é que um terço da despesa em saúde em Portugal é despesa privada. Basta pensar que o SNS não paga, por exemplo, a integralidade dos medicamentos que os portugueses consomem. As farmácias, que julgo que o senhor deputado não deseja extinguir, não fazem parte do SNS. E muito menos faz parte do SNS a indústria farmacêutica. Aliás se a indústria farmacêutica fosse do Estado estaríamos por certo como na Checoslováquia de há mais 40 anos, quando António Barreto, então militante comunista, tinha de levar aspirinas a Cândida Ventura, que nessa época representava o PCP em Praga. E creio que nunca teríamos o debate sobre o famoso medicamento para a hepatite C que tantos exaltou os bloquistas, porque esse medicamente pura e simplesmente nunca teria sido desenvolvido por uma indústria farmacêutica estatizada.

Depois, é curioso que cite várias empresas de construção civil como participando nas PPP da saúde, o que é verdade porque foram elas que construíram os hospitais em causa. Acontece porém que as mesmas empresas também construíram os hospitais com gestão estatal. Porque são más quando estão ligadas a um hospital PPP (em que a construção é amortizada num prazo de 30 anos) e são boas quando fazem obras num hospital de gestão pública (onde muitas vezes os prazos derrapam e os preços disparam)? Nenhuma racionalidade permite estabelecer esta distinção, apenas o maniqueísmo de quem nem sequer repara que, no fim do dia, toda a despesa pública acaba por ser o pagamento a um privado – seja ele o empregado da limpeza, o director do hospital, o fornecedor de electricidade ou o construtor do aparelho de raios X. Faz isso da saúde “uma mercadoria”? Não no sentido pejorativo do termo, sim se pensarmos que todos os serviços têm de ser pagos, mesmo os que retoricamente “não têm preço”.

Finalmente há uma distorção de base no raciocínio anti-capitalista de Moisés Ferreira (devemos chamar os bois pelos nomes, e as ideologias têm nomes). Essa distorção é a ideia de que os interesses dos accionistas são, por definição, contraditórios com os interesses dos utentes, quando a verdade é que nunca os interesses dos accionistas podem ser satisfeitos se as empresas não cuidarem o melhor possível dos interesses dos utentes. Se um hospital totalmente privado não tratar bem os seus doentes vai à falência mais tarde ou mais cedo. Em contrapartida se isso suceder num hospital do SNS de gestão pública, talvez tenhamos umas notícias nos jornais e algum incómodo no Ministério, mas os utentes com menos posses não deixarão de lá ir pois é para lá que o Estado os encaminhará. Já se isso acontecer num hospital do SNS em regime de PPP, o concessionário sabe que corre o risco de perder a concessão, pelo que tratar bem dos utentes é precisamente aquilo que vai de encontro aos interesses dos seus accionistas.

Sugere por fim Moisés Ferreira que algum interesse obscuro me move na defesa do modelo dos hospitais PPP. Pode estar descansado: o meu hospital de referência não é PPP e nada me liga a nenhuma das empresas desse sector. Agora, como cidadão, como utente e como contribuinte, estou empenhado na existência de um SNS eficiente e com custos controlados, dois desideratos que os estudos que citei mostram ser cumpridos pelos hospitais PPP. Como também são por muitos hospitais EPE, de gestão pública.

A vantagem da coexistência de modelos diversos é que ela permite a concorrência entre opções de gestão naturalmente diferentes, e a concorrência é sempre boa. A planificação central, o estatismo rígido e obsoleto, é que provaram mal onde quer que foram regra e modelo. Ou aonde ainda são regra, como em Cuba ou na Venezuela.

Numa sociedade aberta, como aquela que defendo, o caminho deve ser o de dar mais liberdade de escolha aos cidadãos, como de resto também defende o ministro da Saúde. Nas sociedades autoritárias, sem concorrência, sem opções, sem estímulo à inovação, é que os cidadãos não têm vontade e são tratados como mercadorias – e o modelo de SNS que defende, que nunca foi o português, só se enquadraria bem nesse tipo de sociedade.

Em síntese: mesmo que hoje não se verificasse nenhuma vantagem comparativa nos hospitais PPP (como se verifica), o simples facto de estes trazerem outros métodos de gestão e mais concorrência para dentro do sistema público, isso só por si já seria positivo, pois a concorrência faz-nos bem a todos.

3. Telegraficamente deixo para o fim algumas notas sobre a informação que eu não teria usado. Começo pela longa citação de um texto do bastonário da Ordem dos Médicos – aquele a que um diz chamei o “Mário Nogueira do estetoscópio” – e que se destaca por ignorar a auditoria do Tribunal de Contas e por procurar desacreditar os estudos da Universidade Católica referindo que estes não entram em linha de conta com os custos de gestão dos edifícios, alegação de que não consigo encontrar confirmação. Mas mesmo que essa alegação fosse verdadeira, os custos citados (13% a 17% dos custos totais) são inferiores aos ganhos de eficiência detectados (15% a 25%). Ou seja, os hospitais PPP ganhariam sempre em poupanças para o contribuinte.

Sugere a seguir que consulte o benchmarking dos hospitais do SNS, porque este porventura seria menos favorável aos hospitais PPP do que o estudo da Entidade Reguladora da Saúde, o SINAS. Duplo azar. Primeiro, de um lado temos indicadores soltos, do outro indicadores agregados, o que significa que os segundos têm mais valor e esses, que citei, colocam os hospitais PPP no topo da qualidade da assistência prestada aos doentes. Segundo, não é verdade que nos indicadores soltos os hospitais PPP tenham os maus indicadores que sugere e cita, e sobretudo não é verdade que na maior parte dos indicadores fiquem atrás dos hospitais de gestão pública. Dou apenas um exemplo, que me parece relevante: no indicador “demora média antes da cirurgia”, o hospital de Vila Franca é o segundo no seu grupo de 9 hospitais semelhantes, o hospital de Loures é o primeiro e o de Cascais o terceiro no seu grupo de 16 unidades equivalentes, e por fim o hospital de Braga é o primeiro no grupo em que comparara com mais sete unidades de gestão pública. No entanto o senhor deputado diz que “há menos tempo de espera para cirurgia nos hospitais públicos”. Será que não sabe olhar para os quadros? Não sei, só sei que podia continuar com outros exemplos semelhantes, mas os leitores podem fazer como eu e consultar o site.

4. Ficaria por aqui, não fosse a profunda desonestidade intelectual da frase que passo a citar: “22% de todo o rendimento operacional da Luz Saúde é obtido com a PPP de Loures e cerca de 40% do negócio da José de Mello Saúde deve-se exclusivamente às rendas obtidas com as PPP de Braga e de Vila Franca de Xira”. O que quer dizer “rendimento operacional”? O que significa “negócios”? Estes dois termos não são inocentes e sugerem que é das PPP – ou da já famosa “renda” das PPP – que vem o pecaminoso lucro dos grupos privados. Na verdade estamos a falar do peso que as receitas dos hospitais PPP têm no conjunto das receitas desses grupos, já que nalguns desses hospitais as despesas são superiores às receitas (comprovadamente em Braga, de acordo com a auditoria do Tribunal de Contas).

Não me surpreende que se siga este caminho na argumentação quando se refere também que o objectivo dos grupos privados é “enfraquecer o SNS”. É mesmo? Tem a certeza? E que ganharia o SNS se esses grupos privados desaparecessem e todos os doentes que tratam desaguassem nas urgências e nas camas dos hospitais públicos? Ficaria melhor o SNS ou ficaria ainda mais afogado do que já está?

De facto, depois das “cativações” da geringonça que fizeram sofrer, e muito, os hospitais do SNS, só faltava agora submergi-los com mais procura. Quando se pretende falar em nome dos utentes e se sugerem estas enormidades está tudo dito.