Uma viagem rotineira entre Lisboa e Castelo Branco, no verão passado. Desta vez havia algo estranho que nunca tinha visto antes. Um céu nublado mais acastanhado do que cinzento. Apesar de não haver nevoeiro, não havia grande visibilidade e os faróis dos carros que seguiam em sentido contrário tinham reflexos inabituais. Até parecia que tudo isto se devia a um grande incêndio florestal. Acontece, porém, que as condições descritas se mantiveram durante a viagem inteira, ou seja mais de 250 km, não tendo havido nesses dias quaisquer incêndios florestais em parte alguma do País. Na realidade, a causa desta anomalia foi não um, mas inúmeros incêndios, não em Portugal, mas no Canadá. Múltiplos fogos florestais no norte desse país queimaram uma área superior a Portugal Continental, tendo a resultante nuvem de fumo coberto a cidade de Nova Iorque, a mais de 1100 km de distância, e chegado a Portugal, a mais de 7000 km provocando a anomalia que eu testemunhei.

O verão de 2023 ficará na História pela variedade, amplitude e violência dos diversos fenómenos climáticos extremos, de que são exemplo uma gigantesca onda de calor em metade da Europa e múltiplas tempestades violentas na Suíça ou no norte de Itália. Nos telejornais, vimos cidades a derreter de calor, ou varridas por enormes massas de água, com grandes blocos de gelo arrastados pela corrente. No verão do Hemisfério Norte, as altas temperaturas atingiram valores inéditos em locais tão díspares como Phoenix, nos EUA, ou Pequim, na China. Ao mesmo tempo, no Hemisfério Sul, onde era inverno, foram atingidas temperaturas de 38ºC na Argentina e no Chile.

Nos dias 3, 4 e 6 de julho de 2023, foram sucessivamente batidos os recordes da temperatura média no nosso Planeta, as mais altas desde que há registos.

Os fenómenos que geraram este conjunto de anomalias climáticas são conhecidos, estando o caminho para mitigá-las traçado. A descarbonização da economia é fundamental para evitar que a temperatura média global ultrapasse o limite, para além do qual as consequências serão incomparavelmente piores do que tudo o que vimos em 2023. Sucede porém que a descarbonização não se fará por magia. Hábitos, tecnologias e legislação deverão passar por grandes mudanças. Que precisam do apoio do povo soberano, que escolhe não apenas as políticas a adoptar, mas também os governos que as vão implementar. É um equilíbrio muito delicado. Que descambou em Outubro deste ano. Muito.

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Na proposta de Orçamento de Estado para 2024, o Governo PS incluiu uma alteração ao Imposto Único de Circulação (IUC), que tinha como objetivo taxar os veículos com matrícula anterior a 2007, não só com base na sua cilindrada, como acontecia até aqui, mas também nas suas emissões de dióxido de carbono. A medida foi justificada pelo seu propósito ambiental e pretendia corrigir uma assimetria que consistia no facto de às viaturas com matrícula anterior a 2007 não ser aplicada a componente ambiental, na fórmula de cálculo do IUC. Esta alteração implicaria um aumento deste imposto, que o Governo PS assegurou não ser superior a 25 €/ano.

Acontece, no entanto, que o Automóvel Clube de Portugal fez as contas e concluiu que um Renault Clio ou Opel Corsa, de 2007, com motores a gasolina de 1.2L, que em 2023 pagaram cerca de 39€ de IUC, passariam a pagar cerca de 129€. Por outras palavras, o aumento de IUC seria na ordem dos 233%.

Como seria de esperar, daqui resultou uma enorme vaga de protestos e buzinōes em várias regiões do País, bem como uma petição pública que ultrapassou as 40 mil assinaturas. Em Novembro, depois de praticamente todos os partidos terem proposto a eliminação desse agravamento ao IUC, o próprio PS voltou atrás, aproveitando o debate do orçamento de Estado para colocar uma pedra sobre o assunto.

A rejeição desta medida pela sociedade veio lembrar algo que deveria ser evidente para qualquer político experimentado. Medidas que dificultam a vida das pessoas, sem que lhes seja dada qualquer alternativa ou via de escape mais barata e/ou, mais cómoda não serão seguramente bem recebidas. O facto de esta medida afetar sobretudo os mais desfavorecidos é ainda mais espantoso e revela a geometria variável da “sensibilidade social” do PS. Esta medida foi compreensivelmente vista como injusta, uma vez que quem utiliza veículos mais antigos não tem, na maior parte dos casos, os recursos para utilizar um veículo mais recente.

Ademais, grande parte daqueles que utilizam transportes públicos no dia a dia sabem que estes continuam a não ser uma alternativa cómoda ao automóvel. Persistem as graves falhas nas grandes cidades e constata-se a sua quase inexistência fora destas. Nas grandes cidades há mais autocarros, mas passam horas encravados no meio de um mar de carros. A CP continua um desastre, com comboios vetustos, uma infraestrutura decrépita repleta de estações e apeadeiros ao abandono, e diversas ligações ferroviárias dignas do terceiro mundo e não de um país europeu. Além disso, recorde-se a este respeito que, nos primeiros 6 meses deste ano, a CP esteve 98 dias de greve, muitos deles sem serviços mínimos. Em Lisboa, a Transtejo fez o mesmo.

Não será ainda irrelevante o facto de tão prolongadas greves ocorrerem em empresas públicas que beneficiam de um confortável monopólio que as isenta de qualquer incentivo à prestação de um melhor serviço.

Portanto, a medida de revisão do IUC, bem intencionada e necessária, foi de facto uma enorme asneira. Mais uma da maioria absoluta do PS.

Este episódio do IUC é um pequeno exemplo do que poderá acontecer no futuro. Um governo incompetente terá sempre muita dificuldade em conseguir implementar as medidas necessárias para a descarbonização. O mais certo é conseguir apenas que estas sejam revogadas, acabando por ficar tudo na mesma. O risco de descarrilamento, não é uma hipótese académica, é uma possibilidade bem real.

Anos atrás Richard Buckminster Fuller, arquiteto, designer, escritor, inventor e visionário escreveu uma frase que me permiti traduzir nos seguintes termos: “não se mudam as coisas lutando contra a realidade existente. Para mudar alguma coisa, é preciso construir um novo modelo que torne o antigo obsoleto”. Esta frase encapsula a chave da mudança e obviamente implica reformas profundas.

Não iremos lá sem bom senso e empatia para com as pessoas. Não iremos lá com medidas avulsas, desgarradas, que ignoram a raiz dos problemas. Não iremos lá com governos que se dizem reformistas mas que de facto atuam no sentido de manter o “status quo”.

A anomalia climática continuará a piorar, até que comece a melhorar. A proteção das populações e a mitigação dos riscos climáticos não se fará apenas com boas intenções, imobilismo reformista e piruetas mediáticas. Medidas políticas para o longo prazo, que beneficiem o conjunto da sociedade e sejam aplicadas de forma competente – é disso que precisamos. Vamos ver se é desta.