Terminei no domingo 8 maio o meu primeiro périplo por Sevilha. Tive a sorte de me ter sido recomendado nesta altura do ano, durante a grande feira – uma espécie de Golegã – que ocorre no bairro de Triana. Deambulando pelas ruas daquela lindíssima cidade, não pude deixar de pensar como Sevilha foi afortunada por não ter sofrido a catástrofe que se abateu sobre Lisboa, em novembro de 1755. Segundo Mark Molesky, podemos deduzir que Lisboa em 1754 – conhecida como a “pequena Roma” – seria igual ou superior na sua grandeza. 

Foi uma experiência engraçada falar português em Sevilha, tal como tinha sido em Barcelona, Madrid e no País Basco. A verdade é que, se fizermos um esforço, os espanhóis aceitam e compreendem português, desde que falemos lentamente, pronunciando com clareza o que temos a dizer. Afinal, se não formos nós a falar português com os espanhóis, quem o fará por nós? Não estou com isto a criticar a nossa tendência para falarmos “portunhol” – realmente muitas palavras são semelhantes. Vejo essa nossa tendência como uma cortesia da nossa parte.

Os espanhóis têm razão para se sentirem orgulhosos da sua cultura. Uma pessoa só pode ficar deslumbrada fitando a gigantesca catedral e sua Giralda, o palácio de Dom Telmo, o recheio do palácio da Condessa de Lebrija, o Real Alcazar de Pedro I de Castela e o lindo e perigoso espetáculo da tourada apeada com touros bravos sem os cornos limados – embora por vezes o abate do touro na arena, quando feito de forma imperfeita, deixa entrever um claro sofrimento por parte do touro, já com a espada espetada.

No entanto, uma parte importante do orgulho nacional espanhol está assente sobre areias movediças, quase mitológicas. Os espanhóis gostam de pensar que foram grandes descobridores marítimos – falam duma “corrida” de descobrimentos marítimos entre Portugal e Espanha no século XVI, dizendo que foram eles que descobriram o Brasil – até mudam o nome de um dos nossos vários grandes, Fernão de Magalhães, sublinhando que a partir de 1518 se tornou súbdito de Carlos V, como se isso fosse relevante para o feito que concretizou.

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Tudo o que Magalhães sabia sobre navegação, aprendeu-o em Portugal. Só podia, considerando que em 1519, quando iniciou a sua circum-navegação, os portugueses já tinham chegado ao Brasil, à África ocidental, à África oriental, ao Golfo Pérsico, ao Mar Vermelho, à Índia, ao sudeste Asiático e à China, enquanto os espanhóis ainda só sabiam navegar entre a Europa e a América. O único mar pelo qual ainda não tínhamos passado era o Pacífico.

Aliás, segundo Pigafetta, pode deduzir-se que a circum-navegação de Magalhães foi mais difícil por ter sido executada ao serviço da coroa de Castela, pois não só os navios que lhe foram confiados eram de qualidade inferior à que estava habituado o navegar ao serviço da coroa portuguesa como o início da viagem se atrasou porque não havia navegadores capazes em suficiente número no reino vizinho para uma viagem daquela envergadura e consequentemente foi necessário recorrer à contratação de estrangeiros. Sem Magalhães, tal como sem a sorte do genovês Colombo que lhes bateu à porta depois de o nosso Príncipe Perfeito o ter mandado dar uma volta, os espanhóis não teriam chegado à América nem teriam participado na primeira circum-navegação do globo.

O próprio Colombo, como escreveu Rebecca Catz, tudo o que sabia sobre navegação, aprendeu-o em Portugal. Só podia, pois quando Cristóvão começou a visitar o irmão cartógrafo Bartolomeu em Lisboa na década de 70 do século XV já tínhamos chegado a Angola, e antes de 1492, mais precisamente em 1488, já Dias tinha atravessado o Cabo da Boa Esperança. Aliás, como escreveu Roger Crowley, foi o regresso de Dias que fez com que João II acabasse por rejeitar definitivamente Cristóvão, que, entretanto, se casara com a nobre madeirense Filipa Perestrelo em 1479, e fizera parte da missão para montar o forte de São Jorge da Mina em 1482. Tinha sido nestas andanças que lhe surgira a ideia de encontrar um caminho alternativo para a “Índia,” que propusera ao monarca português pela primeira vez em 1483.

Um dos nossos erros foi termos assassinado o nosso rei e o seu filho mais velho, em 1908. O fim da monarquia, dois anos depois, levou a uma atitude de tábua rasa com o nosso passado. Hoje pergunta-se a um português a quem deve a sua liberdade e a resposta é: ao 25 de Abril. Esquecemos que devemos a nossa liberdade a uma sucessão de personalidades ilustres que começaram antes mesmo de Afonso Henriques. Desde logo, a liberdade de podermos falar a nossa língua e de não sermos obrigados a falar castelhano, como todos os outros povos da Península Ibérica, sejam eles catalães, galegos, valencianos ou bascos. 

Mesmo a tão badalada União Ibérica, que os nossos vizinhos nunca mais esqueceram, ao ponto de continuarem a imaginar-se “donos” de Portugal, é uma história mal contada. Quem consultar a internet pode encontrar um mapa do “Império Espanhol” que inclui, a partir de 1580, Portugal e o império português. Mas, como clarificou J. H. Elliott, mesmo depois de termos sido conquistados pelo Duque de Alba – e é verdade que as nossas elites, presentes no Conselho da Regência, embora não o admitissem publicamente, já eram favoráveis a uma União Ibérica antes de Alba chegar a Lisboa – o projeto só foi aceite após a ratificação de 25 artigos, uma série de concessões que preservaram Portugal como um estado virtualmente autónomo.

Filipe I de Portugal deveria passar o máximo tempo possível no reino e, se obrigado a ausentar-se, deveria conferir o vice-reinado a um membro da família real ou a um português. Um conselho de Portugal, conduzindo todos os seus negócios em português, deveria ser nomeado. Cargos em Portugal e nas suas colónias deveriam ser dados apenas a portugueses e deveriam ser nomeados portugueses para as casas reais. Embora se abolissem as barreiras alfandegárias entre Portugal e Castela, Portugal manteria a sua própria moeda. E o comércio com o seu império manter-se-ia exclusivamente em mãos portuguesas.

Os espanhóis “controlaram”, por assim dizer, os Países Baixos (1506-1581) e a Bélgica (1506-1714) durante mais tempo que Portugal. E Portugal, ao contrário daqueles países hoje mais desenvolvidos que nós, tornou-se um reino independente em 1128 (Países Baixos em 1581; Bélgica em 1830). Se excluirmos os 60 anos de domínio dos Filipes, trata-se de 834 anos de independência. É um privilégio para o qual a dimensão dos esforços que foram necessários parece hoje escapar-nos por completo. Como disse Anthony Disney, sem o império, hoje Portugal não existiria. E o império mais não foi que um enorme esforço para mantermos a nossa soberania. Nós tivemos reis espanhóis, e os espanhóis tiveram, no século dezoito, reis franceses. No entanto, durante as invasões napoleónicas posteriores, nós não perdemos a nossa soberania, ao contrário dos espanhóis.

Durante aproximadamente 100 anos, entre meados de 1480 e 1580, Portugal dominou os mares à escala mundial. É improvável que, sobretudo a partir do reinado de Manuel I (r. 1495-1521), houvesse alguma potência no globo capaz de contestar o poderio da nossa armada. Ao todo, Portugal acabaria por financiar cerca de 50 viagens marítimas de descobrimento. A Espanha acabaria por financiar apenas cerca de 10. Os números relativamente ao estabelecimento de rotas marítimas de comércio são igualmente incomparáveis. Os holandeses também se tornaram uma potência naval graças aos conhecimentos que adquiriram connosco, tanto de cartografia, como de técnicas de construção naval. Jan Huyghen van Linschoten, um espião holandês, viajou pelas Índias Orientais sob controlo português e publicou na Europa informação importante sobre o comércio asiático e a navegação que era mantida em sigilo pelos portugueses.

Desde que a nossa academia foi saneada em 1975, quando o poder caiu na rua, que se tornou moda em Portugal termos vergonha da nossa história. Spínola já alertava para o perigo que a substituição do patriotismo pelo marxismo internacionalista representaria para a nossa soberania. No seu panfleto Portugal e o Futuro, o general de Abril também menciona os perigos de um estado cada vez mais omnipresente, que nos infantilizaria. Hoje, belgas e holandeses, tal como franceses e espanhóis, para não falar de ingleses, todos têm imenso orgulho da sua história. Com exceção da França – ela própria uma espécie de monarquia republicana presidencial – todos estes países são monarquias constitucionais. Urge, sem descurar os lados menos limpos do nosso passado, ter consciência de que fomos grandes e de que ainda o podemos ser, se aceitarmos que tivemos e que continuamos a ter essa capacidade, enquanto estado-nação livre e independente, onde se continua a falar português.