“Todas as famílias felizes são parecidas; cada família infeliz é-o à sua maneira”. A frase é conhecida. Tolstói escolheu-a para iniciar uma das maiores obras-primas da literatura: Anna Karenina. Ela é, aliás, referida em “Identidade e Família”, livro coletivo, recentemente publicado, que visa contribuir, segundo nele se explica, para “um perfil ético da vida em sociedade”. Mas, se a frase do autor russo é citada, num artigo, para concluir que “há um certo romantismo inerente à infelicidade”, não é menos verdade que outro romantismo decorre da perfeição. Essa é, na verdade, uma das carências da abordagem. A ideia de que “na família (…) não há concorrência”, faria cair de riso Agustina ou Freud, e faz apagar, ou remontar à pura acidentalidade, o facto de ela ser também o lugar da revolta, do conflito, do repúdio e do trauma.

De facto, “Identidade e Família”, ao coligir textos de 22 autores – grande parte deles pouco necessitados de elogios para se evidenciar – é, obviamente, um compêndio de grandes flutuações, mas o tom que perpassa as páginas é dado logo na introdução, escrita pelos quatro coordenadores: (1) a família é uma instituição virtuosa e acima de suspeita; tem uma formulação e uma tradição que transmite um bem, (2) bem esse que está, hoje, sob ameaça e ataque, seja “à luz do dia”, seja “de um modo mais subtil”.

No entanto, o que se constata, numa obra que chama a si o estatuto de impecabilidade, são as mesmas caricaturas e as hipersimplificações de que Passos Coelho se queixava momentos antes de apresentar o livro. Do autor que equipara “a falta de políticas públicas que fomentem a natalidade” e “a quase ausência de terapia familiar no SNS”, à “promoção do ‘divórcio na hora’”, sem especificar de que política está realmente a falar. Até ao autor que considera “estranha” a ideia segundo a qual a mulher foi historicamente “oprimida e desprezada” por esta ser, numericamente, superior ao homem. O que, no ridículo, nos faria perguntar por que raio não são as formigas que dominam o mundo, considerando que existem, na Terra, 2,5 milhões de espécimes por cada ser humano. Mas podemos ainda referir o autor que afirma que “os atuais influencers digitais (…) fomentam a desorientação das pessoas através da exaltação do instinto, do prazer e dos desejos”, ou a autora que indica que a “defesa de temas como a igualdade racial e social, o feminismo, o movimento LGBTQIA+” limita “a liberdade de expressão, pessoal e artística”.

Ora, é possível conceber que aquilo que os autores denominam como “ideologia de género” tem falhas? Certamente. É possível defender que os influencers tem um papel, nem sempre positivo, na educação dos mais jovens? Sem dúvida. É possível sentir que o problema demográfico europeu tem sido negligenciado? Evidentemente. Que o wokismo gera uma nociva cultura tida como do politicamente correto? Óbvio. Mas inferir que estamos diante de uma destruturação da sociedade, ao ponto de ser equilibrado e sensato estender os argumentos até este ponto de radicalidade, é perpetuar o que, tão veementemente, Pedro Passos Coelho criticou à entrada da livraria: a fragmentação excessiva, que põe em causa a existência de espaços de convivialidade que sejam assentes na racionalidade e na análise séria. Nem todos os textos são assim, é verdade, mas não são poucos os que o são.

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Por outro lado, acreditar que se “corre o perigo de se transformar” a escola pública – sempre a escola pública, porque a privada está, ao que parece, ontologicamente livre deste mal – “num lugar de doutrinação ideológica”, é pressupor que o nosso sistema de ensino tem uma eficácia, que os mais recentes resultados do PISA não dão nota. No meu caso, que andei na escola pública até ao 12º ano, sendo exposto à perigosa resolução de equações, continuo sem saber se + por + é -, ou se – por – é +.

Ainda assim, é também redondamente impreciso considerar que existe (1) uma deterioração dos valores familiares e (2) que isso se deve à “ideologia de género”. Como demonstram os resultados do European Valeus Study, a “família” continua a ser o valor mais assinalado pelos portugueses, acompanhando as diferentes transformações que marcaram as sociedades europeias. Aliás, segundo os mesmos dados, a percentagem dos que valorizam a “importância da família”, subiu de 65% em 1990 para 88% em 2020. Na verdade, é um valor constante em todos os países e, em Portugal, apenas 25% da população diz considerar o casamento uma “instituição antiquada”. Em suma, estamos bem longe daquilo que se refere no livro como a transformação da família em “instituição opressora”, mas certamente serei eu que sou, ou demasiado ingénuo, ou demasiado cego para ver o que anda à minha volta.

No livro, não são as conclusões que chocam. É a manipulação da grelha de leitura. Se se pretendia falar da “consistência da tradição” e das “exigências da modernidade” sente-se que, 207 páginas depois, ambas são, tantas e tantas vezes, travestidas de idealizações ou fantasias. Daí que seja imperioso perguntar: Será possível falar da realidade sem pressupor, antes de tudo, que existe uma “doutrinação”, um “desequilíbrio de forças”, um sequestro mediático, como se pensar um tema fosse já uma forma de martírio antecipado? Qual é o bem que se pretende alcançar com uma linguagem cheia de certezas, carente de dúvidas, e onde há demasiados “adversários da família” e “posições radicais e mediaticamente potenciadas”? Como viver o equilíbrio de sentir as insuficiências daquilo que o livro denomina como “ideologia de género” e as possíveis intuições positivas que a mesma “ideologia de género” pode comportar? Até que ponto as referências feitas à família não são, na verdade, referência a conceções tribais da sociedade, esquecendo a distinção popperiana entre sociedade aberta e sociedade fechada? De que forma é que esta presença da direita no espaço público não é paralela ao conhecido entrincheiramento de certa esquerda em questões identitárias, que tanto se visa criticar?

Que “a dignidade humana não pode ser baseada sobre standards meramente individuais, nem identificada somente com o bem-estar psicofísico do indivíduo”, como está escrito no documento publicado pelo Vaticano no dia da apresentação do livro, parece-me claro. Que, como refere D. Manuel Clemente no seu artigo, citando o Papa Francisco, “graças aos progressos da medicina, a vida prolongou-se: mas a sociedade não se ‘ampliou’ à vida”, também. Tal como parece imperioso falar da necessidade de conciliação entre a vida profissional e a vida familiar, das modalidades de atenção às famílias em situações de doença, ou dos desafios pedagógicos colocados por um novo contexto tecnológico. Temas que são, aliás, alvo de abordagens no livro. Nada disto é de chalupas nem de mentecaptos. Mas vai um salto de gigante até se considerar que estamos em guerra civil. Como Edgar Morin explicou, a bem da vida comum, é necessário um “pensamento complexo”, e não um pensamento redutor. Dado que, como na Páscoa, são necessárias muitas feridas para se ressuscitar.

Uma coisa é uma sociedade polarizada. Isso é a virtude da democracia. Outra, é a sociedade polarizada a partir de ideias pouco fundamentadas. Isso é só suicídio e o lugar onde a discussão moderada é o ruído. É nessa armadilha, em que parece só haver espaço para absolutismos e posições extremadas, que não podemos cair.

PS: Diante das coisas que se escrevem, ligando o conservadorismo ao que alguns autores dizem neste e sobre este livro, deve estar próximo o dia em que David Cameron ou Andrew Sullivan serão vistos como perigosos agentes soviéticos, ou em que Burke e Oakeshott passarão a ser eloquentes esquerdistas, e Joseph de Maistre a única referência do discurso.

PS2: Os autores do livro reivindicam o direito à liberdade de expressão. O que nunca esteve em causa. Como será de esperar que o mesmo seja assegurado a quem não tem uma visão positiva daquilo que no livro é expresso.