A invasão da Ucrânia pelo regime de Putin no dia 24 fevereiro de 2022 vai ser um marco na história do século XXI. Muito mudou e muito continua incerto. Uma primeira conclusão fundamental é que o Kremlin contou dividir a União Europeia e a NATO, mas, pelo contrário, tornou-as mais coesas e mais indispensáveis do que nunca na defesa da liberdade e da segurança dos europeus face a este novo imperialismo russo. Defender neste momento histórico o desarmamento ou o compromisso a qualquer preço é defender a traição dos valores da nossa Constituição, é recompensar a agressão armada, é encorajar novas agressões.

O princípio da incerteza

Muito mudou no mundo, muito mudou para Portugal e muito mais pode mudar, e não para melhor. A incerteza vai continuar. Ela já está a ter um preço pesado na nossa economia. Se a crise se prolongar e intensificar, o que é provável, podemos chegar a uma inflação de dois dígitos, segundo alguns economistas. Mas convém não esquecer que o preço de não fazer nada seria recompensar o militarismo expansionista do regime russo e encorajar a agressão armada para resolver problemas. Convém, sobretudo, lembrar que a maior e mais sangrenta incerteza será para os ucranianos. Com a resistência ucraniana a levar a uma escalada no uso da força pelo Kremlin, devemos preparar-nos para acolher bem na Europa livre milhões de ucranianos. Uma das poucas certezas que podemos ter relativamente a uma campanha militar em grande escala é que ela cria muito espaço para o imprevisto. Estamos a viver num mundo menos seguro, menos estável, menos previsível. Aqueles que andaram durante meses a garantir que Putin não iria invadir deviam repensar as suas certezas

Putin não é de fiar

Devia ser desnecessário dizer isto, mas, pelos vistos, há quem ainda não tenha percebido: Putin perdeu a pouca confiança que ainda merecia no Ocidente, nos EUA, na Ucrânia, depois de passar semanas a mentir descaradamente sobre a enorme concentração de tropas nas fronteiras com a Ucrânia. Isso torna a saída desta guerra ainda mais difícil. Qual é o incentivo a fazer cedências e a chegar a compromissos com um líder russo em que não se pode confiar? E se nalguns países se exagera o peso dos líderes, esse não é o caso da Rússia, pois a autocracia reina no Kremlin. Por isso, um compromisso no curto prazo parece difícil. Não se devem cortar canais de comunicação diplomática nem com o pior dos inimigos, sobretudo quando ele é uma potência nuclear. Mas uma Ucrânia verdadeiramente independente só pode aceitar um acordo com reais garantias de segurança.

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A China está com alguma sorte

Os EUA poderão não virar-se, afinal, tão rapidamente quanto gostariam para o Indo-Pacífico e a contenção da China. Também não poderão contar muito com os europeus nesse esforço. Por outro lado, a Rússia está mais dependente da China do nunca. Esta crescente dependência estratégica do país mais populoso relativamente ao maior país do mundo é um dado geoestratégico muito importante. Mas Pequim parece estar ciente de que não deve abusar da sua sorte. A China tornou-se a principal potência comercial global. Ora, um mundo dominado por crises militarizadas e sanções de uma dureza nunca vista será um mundo cada vez menos globalizado, o que cria dificuldades sérias para o modelo de crescimento económico chinês, a principal legitimação do regime de leninismo capitalista do Partido Comunista Chinês. Isso explica alguma ambiguidade e apelos ao compromisso de Pequim que valerá a pena, pelo menos, testar, nem que fosse com o objetivo mínimo e inicial de tentar criar uma zona segura dos ataques russos na parte ocidental da Ucrânia.

Uma revolução estratégica na Europa

Todos os sinais vão no sentido de uma mudança profunda e dificilmente reversível da orientação estratégica de muitos países europeus importantes. Esta revolução estratégia chegou até à Suíça, secularmente neutra, que desta vez tomou claramente partido contra a invasão russa da Ucrânia, através de sanções sem precedentes na sua história. As tradicionalmente neutras Suécia e Finlândia dão sinais de alinhamento crescente com a NATO. Pela primeira vez na história, a maioria dos finlandeses é favorável à adesão à Aliança Atlântica. A mudança mais significativa é na Alemanha, o mais populoso e rico estado europeu, central na geografia e economia do continente. A República Federal Alemã, mesmo depois da reunificação, tem sido uma filha traumatizada da Segunda Guerra Mundial e, por isso, uma potência muito relutante, sobretudo no campo militar. Nem tudo mudará instantaneamente com o discurso deste domingo do novo chanceler Olaf Scholtz, mas muito já mudou. A escala de investimento em defesa anunciada no parlamento alemão é colossal – triplicará o seu volume. A política externa de prudência extrema de Merkel parece morta. E a Alemanha está a caminho de se tornar uma potência normal, inclusive em termos militares. A ambição francesa de uma verdadeira defesa europeia pode, finalmente, tornar-se uma realidade, em cooperação estreita com a NATO.

Contra o militarismo expansionista do Kremlin

Em suma, a grande maioria dos europeus, mesmo os tradicionalmente muito relutantes, percebeu que num mundo cada vez mais perigoso a NATO é vital para nos defender. Para isso, porém, não bastam os EUA. É igualmente necessário um investimento forte da Europa na sua defesa. Terá havido vários erros de cálculo no caminho para esta crise, mas um dos maiores terá sido de Putin, que não contou com esta frente unida ocidental – assim ela dure. A política internacional é geralmente complicada, mas as mentiras flagrantes do Kremlin e a sua chocante agressão armada simplificaram as coisas. Acordaram e uniram a maioria dos europeus de uma forma que não víamos desde o início da Guerra Fria, quando as ameaças de Estaline levaram à criação da NATO e aos primeiros passos na integração europeia. Espero que as inevitáveis dificuldades e incertezas não minem essa coesão. Infelizmente, a vitória da Ucrânia não é certa. O que é certo é que um bloco ocidental coeso de resistência ao novo imperialismo russo é a melhor opção que nos resta para a defesa da liberdade e da segurança da Europa e de Portugal.