Dia 8 de abril, saíram as notícias todas: Passos Coelho tinha apresentado um livro alegadamente contra os “adversários da família”, “a ideologia de género”, a “cultura de morte”, entre outras coisas. Tive logo uma opinião, como, aliás, todos temos, hoje em dia, tão depressa e com tanta facilidade. Gosto de dar fundamento às minhas opiniões, e por isso fui ao hipermercado mais próximo, mas o livro não estava lá. Tentei duas livrarias Bertrand, mas nada, “está esgotado, vendemos todos, já só há um no Colombo e um no Vasco da Gama”. Passei pelo El Corte Inglês, mas também estava esgotado. Tentei mais um hipermercado, mas nada; liguei a perguntar quando iam receber novo carregamento. Conclusão da história: perdi demasiado tempo, mas valeu por todas as gargalhadas que dei, e, pelo menos, já pude saborear as palavras deste “manifesto” por mim própria.

Tinha-me logo chamado à atenção um dos subtítulos – “Famílias Felizes” e pensei que dava um belo piscar de olhos ao Tolstói, e não é que um dos autores se lembrara do mesmo. Pobre Tolstói, as voltas que talvez desse na tumba se visse o seu nome tão mal empregue. Mas não posso falar por ele, porque não falo pelos mortos. Mas os autores de “Identidade e Família” gostam de falar pelos mortos, mais precisamente gostam de falar em nome de Deus nosso senhor e de Jesus Cristo. Sem dúvida que são as 22 pessoas de Portugal inteiro que mais querem um lugar VIP no céu, seja lá o que isso for. Nunca vi um tratado tão lambe botas a Deus. Eu nunca falei com Deus, mas acho curioso que tantos tenham falado e que usem o seu nome em prol do “bem”, do “amor”, dos “homens da boa vontade”. E se Deus nos aparecesse a todos, de repente, para dizer que era a favor do aborto, da eutanásia, do casamento homossexual, do sexo livre, do prazer, dos vibradores, do orgasmo clitoriano? Melhor ainda, seria Jesus aparecer a seguir a dizer que não gosta da sua família, que o pai engravidou a pobre da mãe e fugiu com uma devota (mais gira, e mais nova.) Só tenho pena que Saramago já não seja vivo, tinha aqui material para um outro Evangelho Segundo Jesus Cristo.

“A Igreja está firmemente empenhada na construção da civilização do amor”, escreve um dos autores. É cómico, uma das instituições mais assassinas da História da Humanidade, mas o amor pode ser uma forma de morte, não é? Se calhar referiam-se à pulsão de morte de Freud. Não é a Igreja que constrói o amor, nem o homem, nem a mulher, nem os transgéneros, nem os homossexuais. São as pessoas. Uma pessoa, sim, aquelas coisas com corações, pulmões, rins, que respiram, sentem, comem, bebem, fazem as suas necessidades escatológicas. Estou farta desta prisão dos sexos, dos géneros. Chega! (Hoje nem se pode dizer esta palavra sem ter dois significados, a língua está mesmo sempre a evoluir). Quando é que deixámos de ser todos pessoas e passámos a ter tantas características? O disparate é tanto, a “esquerda” e a “direita” parecem duas crianças a jogar ao jogo da corda, cada uma a puxar por um lado. Os homens querem-se como às mulheres, as mulheres querem-se como aos homens! Sejam todos masculinos, mas não se esqueçam de ser afetuosos. Sejam afetuosos, mas não percam a masculinidade! As exigências que se fazem são demasiadas e ridículas, as características são universais e atribuí-las a sexos e a géneros é falta de imaginação.

Sentirmo-nos homens, sentirmo-nos mulheres, sentirmo-nos transgéneros é tudo tão pouco. Queria que as pessoas pudessem sentir-se pessoas. Sentir arte, sentir palavras, sentir futebol, sentir o prazer de amar, de dançar, de comer, de passear, de sonhar, de viver. São mais as coisas que nos unem do que as que nos separam, e eu que sou tudo menos religiosa, perco-me a falar de utopias e do que parece o “amor ao próximo”. Não tenho nada contra a ideia de Deus, mas tenho tudo contra o que fizeram dela. O amor ao próximo é simples na teoria, mas uma faca de dois gumes na prática.

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Algumas citações do livro “Identidade e Família”, para deleite de todos:

“(…) as mulheres sempre foram a maioria da população, o que torna insólito que sejam dominadas pela minoria masculina.” Este argumento é bom. Porquê? Porque me fez rir.

“Outro tanto se pode dizer da educação sexual, que não é uma educação para o amor, (…) em vez de se educar para a felicidade, ensina-se a arte do prazer, na sua versão mais primária.”. Este argumento é bom também, porque aparentemente este senhor tem prazeres primários, o que, neste contexto, parece-me, um prazer primitivo, básico, limitado. Deduzo que o senhor se queira, portanto, livrar desse prazer. É altruísta, muitos o quererão em dose dupla, ou tripla.

“(…) porque matámos os afectos, corremos o risco de um suicídio colectivo (…) da capacidade de fazer amor com toda a gente, todos os dias e sem preservativos (…)”. Esta citação é excelente e cumpre o seu propósito, ou seja, divertir os leitores. Os autores afinal só são velhos de alma, por fora são estrelas de rock e querem fazer amor com toda a gente, e sem preservativos, claro, porque assim serão mais os abortos que conseguirão proibir! Mais à frente no livro, lê-se “Estas duas pessoas tornam-se adultos na verdadeira acepção da palavra: aqueles que geram vida. A vida humana acontece num contexto de relação. A natureza dessa relação que mais serve aquele acontecimento é a de amor.”. Mau, mas agora a idade adulta atinge-se na primeira concepção? Pensei que era aos 18 anos.

Mais à frente, “Por outro lado, se acreditarmos no Amor que é sempre criador de vida (…)”. Não acredito, não, o amor não é sempre criador da vida. A violação, o ódio, a agressão e outras palavras bonitas sem ser Amor também criam vida. Não sou eu que o digo, é a biologia humana, que tanto gostam de apregoar.

“(…) a solidão maior é a de nós não termos ninguém a quem amar, ninguém a quem dizer todos os dias, pelo menos, eu gosto de ti.” Aqui os autores arriscam-se a querer roubar o lugar dos santos padroeiros motivacionais do Amor, como o nosso senhor Gustavo Santos e o nosso senhor Pedro Chagas Freitas.

“a ideologia do género, negando a verdade biológica da identidade do homem e da mulher (…)”. Neste ponto da leitura, já só levo as mãos à cabeça. Se Deus soubesse que a criação de órgãos sexuais diferentes ia dar tantos problemas, tinha-nos deixado a todos tipo tábua rasa. Era bem feita.

Lá para o meio do livro, pareceu-me ver defender-se o cabelo comprido nas raparigas e o orgulho das mães pela beleza das filhas. Mas abstive-me de interpretar o que queria dizer, já estava em apneia de tanto rir. E não me considero suficientemente informada para debater ideias tão ilustres e divinas.

“O denominador comum a muitas das disfuncionalidades familiares e sociais é, de facto, a mais profunda descrença no Homem e na sua capacidade de amar.”. Ora, aqui está uma frase bem-dita. Depois da leitura terminada, fiquei sem dúvida mais descrente na capacidade dos Homens (de todos, sim? De todos os sexos, géneros e identidades). Não quero excluir nada nem ninguém.