Quem pode e em que condições pode declarar a guerra? Quais as regras que devem observar as partes em conflito – tipo de armamento, tratamento de prisioneiros, distinção entre combatentes e não combatentes? Num mundo de nações desunidas e grupos destatalizados, num mundo religiosa e culturalmente disperso, pode haver “Direito das Gentes” ou consenso geral sobre princípios e regras a observar?

A propósito da invasão e da guerra na Ucrânia, do ataque do Hamas a Israel e da resposta de Israel em Gaza, voltam-nos estas e outras perguntas sobre o Direito da Guerra, jus ad bellum, e o Direito na Guerra, jus in bello – as seculares tentativas de regular e humanizar os conflitos perante a sua inevitabilidade.

Lendo os poemas homéricos ou a narrativa bíblica damo-nos conta de que sempre houve regras, códigos de conduta.  Houve-os, por exemplo, entre os sitiantes e os sitiados de Tróia. O duelo entre Heitor e Aquiles, ou a entrega por Aquiles do corpo de Heitor a Príamo dão conta de alguns desses códigos de honra. Já na Bíblia, a violência está mais à solta. Em Deuteronómio, 20, Moisés fala ao povo e prescreve condutas a seguir na guerra aos povos estrangeiros, na guerra e conquista das terras da Palestina e em relação aos seus habitantes – hititas, amalecitas, cananeus e outros. Não são propriamente a Carta das Nações Unidas ou as convenções de Genebra …

A guerra na Idade Média

A diferença entre o Velho e o Novo Testamento é radical. E Santo Agostinho, Agostinho de Hipona, Pai e Doutor da Igreja vai, no século IV formular a primeira doutrina sistemática de guerra justa. E ensinará que a guerra, para ser justa, tem de ter como agente um príncipe justo e como causa uma justa causa, movida por recta intenção. O “príncipe justo” é o agente legítimo ou legal da guerra – um Estado, um Reino ou uma entidade pessoal ou colectiva, que represente uma comunidade política. Só esses podem fazer a guerra. Percebe-se que os autores cristãos, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, se preocupassem com a ideia de justiça e de “recta intenção” num conflito. Também S. Raimundo de Penaforte enumerava cinco condições e o canonista Henrique de Susa, sete.

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Entretanto, ao lado destas preocupações maiores, havia todo um direito da guerra e da paz nas represálias e guerras privadas na Europa do feudalismo político, nas terras do antigo império carolíngio e romano-germânico. Aí se instituíam, por costume e prática, inúmeros códigos a observar – e a violar. Nas lendas arturianas e nos romances do ciclo da Bretanha também se observam costumes e praxes que regulam a brutalidade dos confrontos, pelo menos entre as castas guerreiras.

É daí que vêm práticas como as “tréguas de Deus” e outros institutos e praxes com que a Igreja e os papas procuravam moderar os conflitos, por exemplo, através da proibição de fazer a guerra contra determinadas pessoas e em determinados lugares. Assim, o movimento Pax Dei desenvolve cânones que prescrevem a sacralidade dos templos, onde a guerra é proibida. As “tréguas de Deus” limitam a guerra no tempo e lançam o anátema da excomunhão sobre os violadores dos lugares sagrados, proibindo também a luta em dias santos e de guarda e actos de pilhagem, roubo e violação.

Havia todos estes belos conceitos e interditos, antigos apelos aos direitos humanos e velhas invocações da inviolabilidade dos corredores humanitários: conceitos e interditos que, então como agora, tinham contra si o clausewitziano fog of war, que tudo tende a ofuscar. Tudo: desde os massacres de prisioneiros nas batalhas da guerra dos Cem Anos, até às bombas misericordiosas da democrática América sobre os feudais japoneses de Hiroshima e Nagasaki, a caírem sobre civis, mulheres e crianças. Também nas batalhas da feudalidade, os nobres eram poupados, porque podiam pagar resgate, e os vilões, imprestáveis como moeda de troca, geralmente massacrados.

Da Reforma à Revolução

Os reis, os papas e o imperador, numa vontade de centralizar a sua auctoritas, combateram incessantemente as guerras privadas e as represálias dos feudais. Vão aparecendo textos neste sentido até à última metade do século XIV, como o De Bello, de Represaliis et de Duello, publicado em Bolonha, da autoria de Giovanni da Legnano.

A Reforma marcou o Direito das Gentes, como marcou tudo. Por um lado, ao romper e separar os cristãos em dois campos hostis, os católicos e as diversas igrejas protestantes, a Reforma prejudicou o jus gentium, já que dividia as “gentes”; por outro, e até pela competição – não esqueçamos que era um tempo em que a impressão de livros, jornais e panfletos já se generalizara na Europa – levou à rivalidade entre as diversas comunidades religiosas e nacionais, proliferando os escritos. Assim, a escola espanhola de direito internacional dos Magistri Hispanorum, com Francisco Suarez e Francisco Vitoria, vai demarcar-se do direito cristão medieval da guerra e da paz  na guerra, da teoria geral da guerra justa, das relações entre as nações e do direito entre os combatentes de Agostinho e Tomás de Aquino. O Tratado de Suarez tem um título eloquente: Opus de triplici virtute theologica, fide, spe, et charitate  (Tratado das três virtudes teologais – Fé, Esperança e Caridade). Virtudes particularmente difíceis de aplicar nas guerras religiosas.  Porém, saindo da linha jusnaturalista, Suarez, revelando o seu extremo realismo, vem sustentar que a lei é, também e acima de tudo,  um comando, uma norma, uma expressão da vontade e do exercício da autoridade pública.

Nesta época, o Direito das Gentes é sobretudo um direito da guerra. Depois dos teóricos católicos peninsulares chegam, em força, os protestantes holandeses, suíços e alemães. Mas um dos primeiros e mais ilustres tratadistas é um italo-inglês, Alberico Gentili (1552-1608). Profundo conhecedor do Grego e do Latim, Gentili doutorou-se aos 20 anos na Universidade de Perugia.  Depois, suspeito de heterodoxia protestante, emigrou para Heidelberg e Tübingen, onde leccionou; e em 1580 partiu para a Inglaterra de Isabel Tudor, a grande rainha dos protestantes. Aí, graças a boas relações na corte (o tutor da Rainha era um outro italiano, Giovanni Castiglione) passou a ensinar em Oxford. Em 1598, publicou De Legationibus Libri Tres e De Jure Belli Libri Tres.

O Direito Público Europeu

Gentili, que para Carl Schmitt – numa tese que tem os seus opositores – é o precursor da ideia fundadora do Ius Publicum Europaeum, defende que o jus ad bellum não pode basear-se na justiça da causa (que sempre será discutível entre inimigos) mas na qualificação dos beligerantes – que deverão ser, só e apenas, Estados soberanos, os únicos com direito a declarar guerra.

O holandês Hugo Grotius terá sido o último e mais famoso tratadista destas matérias, no período que precede o século XVIII, com o seu famoso De Jure Belli ac Pacis. Já no século XVIII, emerge um suíço, Emer de Vattel (1714-1767), que escreve um Droit des gens onde, no direito da guerra, sublinha que a guerra infame e ilegítima (vinda de não-Estados) não obriga as comunidades atacadas a respeitar as leis formais da guerra. E dá o exemplo da cidade de Genebra que, em 1602, atacada por bandos de savoyards, os manda enforcar, tratando-os como bandidos.

Num tempo em que a crença religiosa das comunidades e dos chefes políticos – reis, imperadores e oligarquias aristocráticas ou comerciais – pesava decisivamente sobre as opções em política externa, a guerra religiosa ficou mais ou menos secundarizada, a partir da Guerra dos Trinta Anos, terminada pelos tratados de Vestefália, de 1648-1649. Depois, em França, dá-se a ascensão do absolutismo com Luís XIV e, no Reino Unido, a guerra civil, a República de Oliver Cromwell e a Gloriosa Revolução de Guilherme de Orange e Maria, filha do último rei Stuart, Jaime II.

Até aos princípios do século XIX – de 1713, guerra da Sucessão de Espanha, a Waterloo, 1815 –, Londres e Paris estarão em guerra quase permanente, independentemente do regime político.  Regime que não muda em Inglaterra, mas que, em França, passa da monarquia absoluta de Luís XVI à República de 1789 de Robespierre, e de Thermidor à aventura napoleónica. É uma guerra essencialmente ligada a interesses e territórios coloniais nas Américas e na Índia, em que a França sai a perder.

Os prisioneiros

Um tema particularmente central e sensível do Direito na Guerra é o estatuto dos prisioneiros. Quem leu o Henrique V, de Shakespeare, estará lembrado da crudelíssima ordem do rei inglês durante a batalha de Azincourt para que os prisioneiros franceses feitos na primeira parte da luta fossem chacinados. Depreende-se, e é histórico, que eram muitos; e o combate continuava, os ingleses não tinham maneira de os vigiar e controlar e temiam que escapassem e se juntassem ao exército francês.

Mas era uma excepção: na Idade Média, o capturado ficava à mercê do captor; entre os grandes, pelos códigos feudais, pelo sentido religioso e pelo interesse pecuniário no resgate, as coisas resolviam-se humanitariamente; com os pequenos era outra história: a sorte do capturado que não podia pagar um resgate era aleatória, ou ficava à mercê dos sentimentos humanitários do captor, ou da ausência deles. Porém, à medida que as monarquias se centralizaram e o poder se concentrou nos monarcas, as coisas evoluíram para regras costumeiras de parte a parte. Regras que passaram a ser escritas – como aconteceu na guerra da Sucessão de Espanha e na Guerra dos Sete Anos.

Aí os beligerantes firmavam documentos sobre o modo de tratar os prisioneiros – os contratos de Cartel – que incluíam garantias de vida e tratamento, locais e condições de detenção e, claro, o montante do resgate, havendo ainda a possibilidade de trocas em espécie, isto é, de prisioneiro por prisioneiro. As garantias deixavam de ser uma questão de classe social, pois os monarcas eram, em princípio, responsáveis por todos os seus combatentes. E o factor reciprocidade funcionava, além do respeito pelos compromissos assumidos. Assim o atestam estudos sobre o tratamento dos prisioneiros na Guerra dos Sete Anos, na América do Norte, como o de Ian K Steele (Setting All the Captives Free: Capture, Adjustment, and Recollection in Allegheny Country) e o de Erika Charters, sobre os prisioneiros franceses na Inglaterra e Irlanda.

A evolução do regime de tratamento dos prisioneiros melhorou com a responsabilização pela sorte dos combatentes dos exércitos nacionais e dos respectivos soberanos; não esquecendo que os resgates, custos e rendas eram também um encargo público. E a reciprocidade – o facto de todos terem prisioneiros – era, apesar de tudo, uma garantia.

Foi na guerra da Crimeia (1853-1859) entre a França, a Grã-Bretanha e a Sardenha-Piemonte, aliadas ao Império Otomano, e a Rússia Czarista, que Florence Nightingale e as suas enfermeiras voluntárias se iniciaram no tratamento dos feridos de guerra. Logo a seguir, no dia 24 de Junho de 1859, Henry Dunant, suíço, calvinista e homem de negócios, chegou ao campo de batalha de Solferino, na Lombardia, onde franceses e italianos tinham combatido os austríacos. O quartel-general do Imperador Napoleão III estava em Solferino e Dunant ia visitá-lo. No campo de batalha estavam 40 mil feridos, privados de cuidados médicos. Dunant organizou o apoio aos feridos, mobilizando a população local; depois, regressou à Suíça e escreveu um livro sobre o que vira e fizera. A Memória de Solferino foi por ele distribuída por líderes políticos e militares da Europa, chamando a atenção para o sofrimento dos combatentes. Depois, com um conjunto de personalidades voluntárias, Dunant lançou, em Fevereiro de 1863, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, uma organização decisiva para o Direito Internacional Humanitário. Recebeu em 1901 o primeiro Prémio Nobel da Paz.

Graças a ele, em 1864 foi assinada a Primeira Convenção de Genebra sobre o tratamento de prisioneiros, feridos e vítimas dos conflitos. E em 1899 e 1907, em Haia, na Holanda, foram reconhecidos vários documentos relativos ao Direito da Guerra e da Paz, para regular e humanizar os conflitos entre “nações civilizadas” – uma vez que o realismo sobre a natureza dos homens e dos Estados sempre concluía pela inevitabilidade da guerra.

A Segunda Guerra Mundial começou como uma guerra “normal” entre Estados mas, a Leste, rapidamente passou a guerra ideológica de aniquilamento recíproco, com a luta entre alemães e soviéticos e o extermínio dos judeus em zonas ocupadas.  Na Ásia, foi marcada pelas brutalidades dos japoneses na China e pela “solução final” atómica, punitiva, desenvolvida cientificamente pela equipa Openheimer em Los Alamos e aplicada por decisão de Truman.  A jurisdição saída do triunfo anglo-americano e soviético, com as Nações Unidas, era mais uma tentativa de jurisdicionar futuras guerras.

Nos conflitos coloniais, os guerrilheiros não estavam abrangidos pelo jus ad bellum e, por isso, também não se lhes aplicava o jus in bello. Mas, tal como noutros conflitos bem mais antigos, a conveniência própria impunha-se, e ingleses, franceses e portugueses aplicaram, com algum sucesso, técnicas de contenção e conversão do inimigo, acompanhadas por uma intensa acção social junto das populações civis. O processo deu algum resultado, nomeadamente nos conflitos do Quénia e da Malásia, da Argélia e de Angola.

Nas guerras quentes da Guerra Fria, como o Vietname e o Afeganistão, os “imperialistas” de cada lado perderam – os americanos no Vietname e os russos no Afeganistão –, quando as respectivas opiniões públicas e dirigentes deixaram de apoiar o esforço militar perante os custos humanos e financeiros. E nos conflitos importantes da actualidade – a guerra russo-ucraniana e do Hamas contra Israel, não parece que o “Direito das Gentes” tenha evitado a guerra e que os direitos na guerra estejam a ser rigorosamente observados pelos contendores.

Contudo, apesar do utopismo de muitos destes textos e do avanço civilizacional que querem representar, tem funcionado sobretudo o princípio da reciprocidade… vamos ver por quanto tempo, dada a fragmentação dos Estados e a dispersão de armas cada vez mais poderosas por beligerantes “não justos” no sentido agostiniano e de Jus Publicam Europaeum.

Mais do que as numerosíssimas convenções aprovadas nos últimos 80 anos e sua manipulação propagandística e mediática junto da opinião pública, a dissuasão mútua garantida, o medo de ser destruído pelo inimigo com armas iguais às utilizadas, é o que mais eficazmente  tem vindo a regular e a limitar a guerra.