1. A controvérsia em torno da vinda de Marine Le Pen a Portugal encerra uma questão paroquial, portuguesa – se vem ou não à Web Summit — que está resolvida (não vem) e uma questão mais substantiva: como se defendem as democracias dos inimigos da democracia? As respostas do Bloco de Esquerda, de outros comentadores e de Paddy Cosgrove a esta questão são diferentes e radicam quer na posição em relação à democracia liberal quer em relação ao estado da democracia hoje.  Os primeiros implicitamente consideram a democracia, em geral, e a portuguesa em particular, vulnerável e por isso pode ser ameaçada por pessoas como Marine Le Pen. O segundo considera que a democracia é suficientemente robusta e se reforça pelo confronto de liberdades de expressão por mais extremados e antagónicos que sejam os argumentos utilizados.

A Web Summit é o maior acontecimento que se passa fisicamente num território, Lisboa, mas que tem uma dimensão mediática global quer pelas dezenas de milhar de participantes, mas sobretudo pelos milhões que acedem aos seus conteúdos online. Sendo um evento privado e a maior conferência tecnológica da internet, na Europa, a primeira questão que se coloca é saber se deverá haver apoio das autoridades portugueses a este evento. Parece-me óbvio que sim, pela importância e impacto económico de curto prazo, médio e longo prazo não só na visibilidade de startups portuguesas, mas também na atração para Portugal de emprego em empresas tecnológicas de outros países.

Sendo este apoio nomeadamente da Câmara Municipal de Lisboa, ultraminoritário em relação à totalidade dos patrocínios obtidos pela organização, outra questão relevante é saber se tal deve dar direito de interferência, na organização do programa ou dos seus convidados. Ao contrário de outros, considero que não. Apoiar um evento, que aliás tem um retorno financeiro imediato para Lisboa e para o país (e que poderia ser maior se o IVA da hotelaria fosse de 13%, como há muito defendo, e não 6%), não significa obter um direito de veto em relação aos convites que a organização ache por bem fazer.

Paddy Cosgrave, mentor da Web Summit, e a sua equipa, decidiram convidar Marine Le Pen, como oradora, no meio de centenas de convidados e para um palco secundário. Noutra edição esteve Nigel Farage. Marine Le Pen, importa relembrar, passou à segunda volta nas eleições presidenciais francesas em que obteve 33,9% dos votos com uma plataforma política baseada no nacionalismo, no proteccionismo, no regresso ao franco francês, no controlo estrito da imigração. Marine está a desenvolver uma estratégia de des-demonização do partido criado pelo pai, Jean-Marie, e obviamente que a sua presença, mesmo em palco secundário, dar-lhe-ia bastante visibilidade e não pelas melhores razões.

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Alguns deputados (BE e PS) manifestaram-se contra o convite, Cosgrove fez um bom artigo defendendo o convite com o sugestivo título: “o que estão anarquistas militantes, líderes sindicais de esquerda, populistas de direita e libertários, a fazer numa conferência de tecnologia?”. Cosgrove inicia o artigo lembrando os seus tempos na Universidade (Trinity College), Dublin — quando ainda havia confrontos violentos e mortíferos entre os republicanos do IRA e os leais à Coroa Britânica – onde eram convidados ambos os lados deste violento conflito a estar presentes e a confrontarem as suas opiniões.  Afirma que desconvidar Marine Le Pen seria a coisa mais fácil de fazer, assim como evitar que opiniões “muito extremas”, “muito socialistas” e “muito nacionalistas” tivessem expressão. Isto agradaria certamente a muitos parceiros e stakeholders do eventoDefende, no entanto, a sua participação quer por considerar a liberdade de expressão uma pedra angular das nossas democracias liberais, quer porque banir, ignorar ou censurar posições extremas em nada contribui para explicar e compreender as raízes de um apoio crescente que essas ideias têm tido, mesmo que discordemos delas, como é o seu caso.

A grande referencia intelectual de Cosgrove, e minha, sobre liberdade, liberdade de expressão e quando se (não) justifica o poder coercivo do Estado parece ser esse importante livro clássico de John Stuart Mill – On Liberty —  que aliás cita. Vale a pena adicionar outras duas citações. Mill defende a liberdade enquanto “absoluta liberdade de opinião e sentimento em todas as matérias, práticas ou especulativas, científicas, morais ou teológicas”. A única restrição a esta liberdade é assim justificada por Stuart Mill: “o único objetivo pelo qual o poder pode ser exercitado sobre algum membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é de prevenir efeitos nocivos (harm) em relação a outros”. O conceito chave de Mill que pode justificar a coerção sobre um indivíduo é “harm”, que infelizmente pode ter diferentes significados em português desde prejudicar, a ofender e causar um dano em terceiros. Um defensor da democracia liberal, na tradição de Mill, defenderá então a presença de Le Pen a menos que consiga provar que a sua vinda produziria “harm” direto noutros. Adicionalmente considero que Cosgrove, implicitamente, considera que a democracia, na Europa e em Portugal, é sólida, está para ficar e é resistente ao livre debate de ideias por mais extremas que sejam.

O que se seguiu é conhecido. Cosgrove esclareceu que retiraria o convite caso o governo português lho pedisse. O Ministério da Economia de Caldeira Cabral rapidamente esclareceu, e bem, que não interferia nos convites e na programação da organização. A Web Summit fez a sua avaliação e decidiu desconvidar Le Pen. As más línguas dirão que isso se deve às negociações em curso para manter a Websummit em Lisboa (supostamente este seria/será o último ano). Há uma razão mais prosaica. Imaginem que Le Pen vinha mesmo. O Governo e a CML teriam de fazer reforços de segurança. Organizações como o SOS racismo e o Bloco de Esquerda manifestar-se-iam contra ruidosamente. Teriam o seu direito democrático de o fazer. Certamente que os organizadores da Websummit não pretendem fazer do evento o Davos da tecnologia.

2. Aquilo que também distingue a posição quer do Bloco de Esquerda, quer daqueles que são contra a vinda de Le Pen a Portugal, das da equipa da Web Summit, é que aqueles consideram que a democracia portuguesa (e as de países europeus?) é vulnerável e por isso necessita de algum “proteccionismo”. São herdeiros, porventura, alguns sem disso terem conhecimento, do conceito desenvolvido por Karl  Loewenstein de “democracia militante”. Escrevendo, no auge da ascensão de Hitler e do fascismo para a American Political Science Review (1937) advertiu que “a Democracia e a tolerância democrática  têm sido usadas para a sua própria destruição. Sob a capa dos direitos fundamentais e do Estado de direito, a máquina antidemocrática pôde ser construída e posta em prática legalmente”. Visto que o fascismo, na sua opinião não é uma ideologia, mas uma técnica de alcançar o poder usando uma “táctica emocional” própria e os instrumentos postos à disposição pelas instituições democráticas, a forma de o combater é precisamente através de uma “democracia militante”  que promove legislação que obstaculiza a emergência e desenvolvimento de partidos que promovem a ascensão do autoritarismo, a redução do parlamentarismo e a supressão das liberdades individuais.

A análise de Loewenstein foi pioneira pois advertiu contra aquilo que designou como  os “fundamentalistas da democracia” que não percebem que para defender a democracia é necessário alguma restrição aos princípios democráticos. Pelo período que viveu, Loewenstein assinalou sobretudo a vulnerabilidade dos regimes democráticos face quer ao fascismo quer ao comunismo. Desde essa altura até hoje tem havido um abundante debate sobre as consequências e causas das restrições de natureza constitucional, nos sistemas eleitorais e outras que dificultam o desenvolvimento de partidos extremistas. É difícil resolver o dilema democrático entre por um lado o argumento para banir partidos que professam ideologias fascistas ou comunistas (como estabelecem as constituições de alguns países) na base de que poderão, após conquista do poder, suprimir essas liberdades, mas por outro lado o argumento que essa supressão vai contra os princípios da democracia liberal de liberdade de associação, expressão e representação política de todos os cidadãos. Aliás é interessante explicar porque é que certos países proíbem expressamente certo tipo de partidos do “jogo democrático” e outros não, tema abordado recentemente em livro por Angela Bourne.

Liberalismo e qualidade da democracia é o que separa a Web Summit do Bloco de Esquerda. No BE uns não são democratas liberais, outros serão, mas acham que a democracia é vulnerável. Na Websummit são liberais e consideram que a democracia é resiliente e se fortalece com o embate de posições extremadas e antagónicas. Fico satisfeito que Le Pen não venha, pois apesar de democrata liberal revejo-me na preocupação com a vulnerabilidade da democracia em vários países europeus face ao populismo crescente que seria alimentado com a sua vinda.