À Xexão Moita e ao Nuno Teotónio Pereira

Foi na madrugada de ontem, há 50 anos, que as portas das prisões de Caxias se abriram para a libertação dos presos políticos. Relembro dois amigos que lá estavam e que já não estão entre nós: a Xexão (Maria da Conceição) Moita e o Nuno Teotónio Pereira. Faziam parte dos chamados “católicos progressistas” (1)  que foram, como muitos outros milhares de portugueses, presos e torturados pela tenebrosa polícia política (PIDE). O 25 de Abril de 1974, iniciou um processo de libertação a vários níveis e que se foi sucedendo no tempo. Uma das mais importantes foi a liberdade de expressão de associação e de participação política. Portugal era um país fechado à Europa e ao mundo. Os artigos de jornal, os livros, as músicas, tinham de passar pelo crivo do censor. Aqueles que ousavam criticar o regime ou a guerra colonial eram, na melhor das hipóteses convocados para declarações na PIDE, e na pior encarcerados e torturados, se se suspeitasse que tinham algumas ligações  “subversivas”. Partidos políticos contra o regime estavam proibidos, e até modestas associações eram encerradas, como o caso da cooperativa Pragma (1). As eleições eram uma farsa e os opositores, se suficientemente ameaçadores, mandados liquidar (Humberto Delgado). A outra grande liberdade conquistada com Abril foi a associada aos direitos das mulheres. Na sociedade fortemente patriarcal da altura, uma mulher casada necessitava de autorização do marido para sair do país. Num país predominantemente católico, o divórcio não era permitido e praticamente não havia divórcios. Os cônjuges ou tinham a felicidade de terem uma boa relação ou estavam condenados a viver em sofrimento e em silêncio. A terceira liberdade essencial, conquistada progressivamente, foi a associada ao direito à educação. No contexto europeu, quer ocidental  quer a leste (União Soviética), Portugal era dos países com piores indicadores na educação. Um em cada quatro portugueses com mais de 10 anos não sabia ler nem escrever. Outros indicadores de desenvolvimento humano (acesso a água, eletricidade e saneamento básico, esperança de vida à nascença, etc.) revelam um país que não só não garantia os direitos sociais e políticos fundamentais como era um país pobre e atrasado. Há dois únicos indicadores macro de que Portugal se pode orgulhar antes de 1974: uma taxa de crescimento económico significativa desde a fundação da EFTA em 1960, e um rácio da dívida no produto baixa. Acontece que estes indicadores pouco se refletiam nas condições de vida da maioria da população. O Estado não cobria os riscos de estar desempregado, nem de uma quebra de rendimentos na velhice pois a esmagadora dos idosos não recebia pensão de reforma. Isto era a realidade na metrópole. Nas então províncias ultramarinas a guerra colonial prosseguia sem um fim à vista, em particular na Guiné, com mortos e estropiados dos dois lados, e traumas que ficaram para a vida de quem a viveu.

O 25 de Abril de 1974, foi essencialmente o dia da libertação. Das várias libertações. Seguiu-se um vibrante período revolucionário que foi dos poucos, em todo o mundo, que se processou praticamente sem vítimas mortais.  Com instabilidade política – seis governos provisórios em ano e meio – e  instabilidade militar, com algumas tentativas de golpes. A normalização militar nos quartéis só regressou em 25 de Novembro de 1975. O caminho para a democracia não foi nem imediato nem linear. Um primeiro passo foi em 25 de Abril de 1975 com a eleição dos deputados constituintes, um segundo com a aprovação da constituição em 1976 e subsequentes eleições legislativas que deram origem ao primeiro governo constitucional.  Mas só com a revisão constitucional de 1982, que extingue o Conselho de Revolução e cria o Tribunal Constitucional, entramos na normalidade constitucional democrática.

Nos últimos cinquenta anos, Portugal mudou muito. Quem não se quiser ficar por narrativas e falsos factos basta olhar para os dados da PORDATA referentes às últimas seis décadas. Não vale a pena fazer juízos morais sobre algumas mudanças operadas em Portugal, nomeadamente no campo social ou familiar. Portugal mudou muito e não vai voltar ao passado por mais que alguns saudosistas o desejem. Construiu um estado social, que cobre agora os mais importantes riscos sociais (pobreza, desemprego, velhice), um serviço nacional de saúde, que não faz depender do rendimento o acesso aos cuidados de saúde e instituiu a escolaridade básica obrigatória até ao 12º ano.

Celebrar o 25 de Abril hoje, 50 anos depois, deve ser antes do mais transmitir aos mais novos a memória do passado, de tudo aquilo que oprimia os portugueses e que fez com que houvesse uma explosão de alegria e uma imediata adesão do povo português à liberdade trazida pela revolução.  Identificar tudo em que progredimos nestas cinco décadas e também os erros que cometemos no trajecto. Porém, as pessoas não vivem do passado, mas do presente e sobretudo das perspetivas de futuro. Assim, não basta celebrar Abril. Temos de olhar para os vários desafios que temos pela frente e dar-lhes uma resposta, sob pena de crescer o número dos que estão céticos sobre as virtualidades da democracia e são atraídos por formas autoritárias de exercício do poder. Apesar dos tempos turbulentos que vivemos, em Portugal e no mundo, é preciso lembrar que em Abril é sempre primavera.

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PS. O título deste artigo é o da letra de José Luis Peixoto para a música de Luis Varatojo e Filipe Raposo estreado na Praça de Comércio no passado dia 24 de Abril e projectado no céu de Lisboa numa bonita noite de luar. 

1. Muitos dos “católicos progressistas” juntaram-se na Pragma. Era uma “cooperativa de difusão cultural e acção comunitária” de inspiração cristã criada em 11 de Abril de 1964, um ano depois da encíclica Pacem in Terris. Os primeiros dirigentes dos corpos sociais foram Mário Murteira, Nuno Teotónio Pereira e João Salgueiro. Foi encerrada pela PIDE três anos depois por “difusão de ideias dissolventes e doutrinação política subversiva”. Ver Joana Lopes (2007) Entre as brumas da Memória: os católicos portugueses e a ditadura, AMBAR.