Apenas mais um amortecedor político, é disso que se trata. Popularmente poderia chamar-se-lhe de uma operação de cosmética, nesta nova e contemporânea forma de fazer política.

Porquê chamar a este mecanismo amortecedor?

O que é um amortecedor, senão um mecanismo que consegue diminuir o efeito do choque, através da absorção da energia produzida pelo impacto de um evento. Mas tanto na mecânica como na economia não há forma de transferir essa energia para um universo paralelo, seria bom que a classe política, nestas circunstâncias tivesse a possibilidade, conhecimento e domínio para criar buracos negros. Pois estes, seriam a única possibilidade de anular os efeitos dessa energia absorvida pelo amortecedor vinda desse impacto, servindo este apenas como um mecanismo de contenção da energia retida que obviamente terá que ser devolvida à procedência. Esta é a lei da física, da mecânica e também dos mercados, por sua vez a mesma que se aplica ao mercado da energia e aos seus efeitos económicos.

Vejamos, com este mecanismo ibérico, consegue-se, a curto prazo, isentar alguns consumidores dos aumentos diretos que estão a ser sentidos pelos restantes. Não vou entrar no pormenor de que tipo e quantos, pois na realidade, se parte dos agentes económicos, sejam eles consumidores particulares, indústria ou serviços, suportarão a curto prazo esses custos, esses serão transmitidos através dos seus custos de produção, mais tarde, ao restante mercado.

Na prática o que se consegue com tudo isto é uma declaração política para a fotografia do momento e, através dela, criar a percepção de segurança e maior estabilidade, que é o contrário daquilo de que, segundo a acusação do primeiro-ministro e do Presidente da República, o CEO da empresa de energia teria feito ao atrever-se a gritar “O rei vai nu”, ou seja, “Haverá um aumento real mínimo de 40% na energia”. Sendo que estes 40% são a média, podendo significar, para algumas indústrias, aumentos entre 50% a 70%.

Alerto para as duas possibilidades, em como, estes aumentos virão a afetar, mais tarde, todo o mercado, como que numa segunda onda de efeitos. A primeira já referi, com a inclusão destes custos na cadeia produtiva e, por sua vez, a serem levados ao consumidor final. A outra, que já ocorre por toda a Europa, é o incremento das insolvências e do desemprego, que levará ao aumento da despesa pública com proteção social, redução das condições financeiras das famílias, por conseguinte um maior volume de incumprimento de crédito e obviamente uma recessão comodamente instalada.

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Apenas porque temos um mercado ibérico nos é permitido fazer esta operação de cosmética, e isto explica-se porque nunca nos deixaram ter as nossas redes de energia ligadas à restante Europa, muito por culpa dos interesses Gauleses relativamente ao perigo Ibérico, que é constituído, para os lóbis da sua indústria da energia nuclear, pelas renováveis, onde a Península Ibérica é cada vez mais competitiva. Acreditem que a nossa genialidade na criação de um suposto mecanismo ibérico começa e termina neste facto, apenas isso. Não há mistério por detrás, nem milagres que no futuro nos livrem dos seus efeitos.

Portanto poderíamos dizer que este mecanismo é apenas uma injeção de RNA-R (Recuse e Negue Aceitar a Realidade) vinda do SNS da retórica política, tão e somente para os incautos e pobres cidadãos desta luso-ibéria que andam infectados com o vírus da dormência do futebol, novelas cor-de-rosa, e as suas variantes: o novo telemóvel, carro ou férias seguintes.

É mais do que certo o aumento exponencial dos custos associados à energia e a sua permanência como um problema sério que teremos que enfrentar daqui para a frente, uma vez que este não é resultado de fatores pontuais e passageiros, mas sim de outros, circunstanciais, que vieram para ficar, como são os ajustamentos a que o cumprimento dos objetivos da independência energética da Europa e da Agenda do Clima obrigarão. Se é certa a permanência dos fatores que levam a estes aumentos, será inevitável que estes tenham vindo para ficar.

Se a energia se vai tornar cada vez mais um recurso caro e raro, devemos então procurar atuar sobre os fatores que influenciam a qualidade e quantidade, quer da sua produção, quer da forma como a consumimos. Assim sendo, o ênfase que se está a dar ao debate sobre quem pagará este mecanismo ibérico retira a atenção da opinião pública da verdadeira questão. Refiro-me à possibilidade de termos de forma clara e transparente acesso à informação da origem, qualidade e quantidade de energia que está à nossa disposição, porque é a partir desta informação que poderemos então, criar condições para saber diferenciar, entre os produtores de energia, as ofertas mais ou menos vantajosas e com isso criar condições para que os consumidores saibam o que consomem de fato e a partir daí poder optar – e, enquanto consumidor, pressionar através da decisão da compra, mas numa decisão informada de fato.

É urgente darmos relevância ao verdadeiro problema que é a falta de transparência sobre a forma como se efetuam as medições, registos e verificação dos lotes de energia que são colocados no mercado. Como estes são agregados, distribuídos e indexados aos consumos segundo as suas origens, ou seja, segundo sejam energias produzidas a partir de combustíveis fósseis ou sejam produzidas a partir de fontes limpas.

A forma como hoje, neste mercado da energia, se faz a integração destes lotes, dos tipos de energias, como são colocados e distribuídos no mercado, levanta, no mínimo, sérias dúvidas de transparência, uma vez que com as metodologias usadas para medir, relatar e verificar (MRV) é tecnicamente impossível para o regulador dar garantias de total precisão e transparência. Assim sendo, poderíamos falar num problema de desadequação de metodologias de MRV, pois atualmente, a forma como são efetuadas impossibilitam essa precisão e transparência.

Saliente-se que este não é um problema do regulador português, nem é um problema apenas restrito à energia, uma vez que a maioria das commodities que afetam a constituição do preço, lote e ciclo de produção, sofrem do mesmo mal, seria impossível que este mercado tivesse a capacidade de resolver o problema em si, a montante e a jusante dele. Esta falta de transparência existe desde que existem estes produtos, bens e serviços. Unicamente nunca, até hoje, nos demos conta dele, porque aquilo que, à partida, não era um problema, passou a sê-lo quando, após a Agenda do Clima, precisámos de fazer a accounting e accountability de países – entre países e dentro destes – dos diversos clusters de indústria, comércio e serviços.

O objetivo de redução de gases de efeito estufa e o cumprimento do Acordo de Paris mostrou-nos que, para a transparência, integridade e consenso de uma contabilidade mundial, era necessário olhar para todos estes produtos, indústrias e serviços elevando o nível de rigor como estes eram reportados. Foi a partir desta problemática e desafio global que se puderam identificar erros e distorções como estes de que falo aqui. Mais ainda, sendo o fator energia transversal a todas as contas e níveis das diversas cadeias produtivas (scopes de emissão 1, 2 e 3) de todas as partes envolvidas – países, indústrias, serviços e atividades humanas – ela, pelo seu grau de influência, é, por sua vez, das que mais contribui para a atual falta de confiança das contas de países e empresas na contabilidade climática.

Sendo o mercado da energia um dos fatores de maior peso nos custos de produção, nas contas e objetivos de redução das emissões de gases de efeito estufa e sendo ela um fator essencial ao funcionamento das economias, deveria ser uma prioridade para todos os governos, reguladores, políticos e sociedade em geral fazer um esforço para que lhe sejam garantidas a aplicação das melhores práticas que resultem em dirimir o problema de falta de consenso, por desconfiança devido à falta de transparência. Tal é possível resolver, hoje em dia, através do uso das tecnologias que se estão a adotar como soluções para a Ação Climática, refiro-me às tecnologias de contabilidade distribuída (*DLT) para accountability e às de medir, relatar e verificar (**MRV) para accounting.

Para resolver o problema, bastará que exista vontade política, porque ciência, conhecimento técnico e tecnologias já existem. Apenas um senão. Com o problema resolvido, através destas tecnologias e boas práticas não será mais possível a existência de instrumentos de propaganda como o da retórica, da poupança real que o mecanismo ibérico cria, quando, na realidade, apenas redireciona, retardando os seus efeitos, assim como também não haverá mais desperdício de tempo em debates sobre “quem vai nu”.

* Distributed Ledger Technology
** Monitoring, Reporting and Verification