Não posso olhar para o lado sem, no limite, tentar compreender o que se passa no meu país. Sé é que tal exercício, é possível. Assinei uma petição on-line que a Amnistia Internacional lançou a nível mundial para investigar e analisar os milhares de mortes de trabalhadores que participaram na construção dos estádios e infraestruturas do mundial do Quatar. Mas, isso é no Quatar! Não é connosco.

Recentemente, surgiu uma entrevista na comunicação social que abordava as condições degradantes com que as empresas na China ligadas ao setor têxtil subjugam os seus trabalhadores. Alegando que os contratos de trabalho e as condições de segurança reduziam estes trabalhadores à condição de “escravos”. Afirmando ainda que não existia pudor nem consequências para as grandes marcas de moda internacional que alimentam este ciclo de degradação humana. Mas, isso é na China! Não é connosco. Nós somos sensíveis a todas as questões que se prendem com o respeito para com a legislação do trabalho, com as condições de segurança e para com a legislação internacional e as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Permitam-me discordar! Arrisco, mas com a confiança de que muitos trabalhadores, profissionais e famílias de vítimas de acidentes de trabalho que pereceram ou não, se reveem nesta minha indignação. É importante dar voz, ainda que recorrendo a algum sarcasmo, a todos os trabalhadores que pereceram no trabalho em Portugal! É possível estabelecer um paralelismo entre Portugal e os países ditos subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, porque também nós temos de explicar o que acontece no nosso país em matéria de sinistralidade laboral.

As estatísticas oficiais publicadas pela Eurostat relativas a 2020 (últimos dados publicados) posicionam Portugal no sexto lugar face aos restantes Estados-Membros com uma taxa de acidentes de trabalho de 3.2%. Sendo que os países que maiores taxas registaram foram a Finlândia (9,6%), a Suécia (5,0%) e França (4,6%). A título de curiosidade, a Consultora Britânica Claims.co.uk desenvolveu um estudo onde Portugal lidera o Top 5 dos países europeus que mais acidentes de trabalho registou na população ativa em 2019 (2848 acidentes de trabalho por cada 100 000 residentes), seguido de França, Espanha, Luxemburgo e da Alemanha (Claims.co.uk). A Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) registou até setembro de 2022 um total de 72 Acidentes de Trabalho Mortais a lamentar e 199 Acidentes de Trabalho Grave. O que significa que mantemos a “tradição de matar no trabalho” 2 trabalhadores por semana, e de mutilar fisicamente aproximadamente 20 trabalhadores por mês. Quanto a mim esta é uma das muitas leituras possíveis. Não é nada otimista, mas implica obrigatoriamente uma tomada de posição por parte da ACT e das políticas do governo nestas matérias. Não existem respostas certas, mas também não existe uma estratégia da ACT desde 2020. Os trabalhadores, os técnicos de segurança no trabalho, as empresas e todos os outros atores sociais neste contexto exigem respostas adequadas para mitigar este flagelo. Contudo, aceito se me disserem: “atenção que as estatísticas apresentam valores mais baixos em comparação com os períodos homólogos relativos aos anos anteriores”. Mas eu tenho a resposta para essa constatação: “acham mesmo que estas estatísticas confortam as vítimas graves?” “Ou ainda, as famílias das vítimas mortais?” Pois, eu acredito que não!

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É triste, porque cada vez que abro um periódico os títulos saltam-me à vista: “Homem gravemente ferido em acidente de trabalho” em Braga (15/10/22), “Homem morre em acidente de trabalho no porto de Leixões” (18/10/22), “Dois feridos graves após explosão em parque eólico em Vila Pouca de Aguiar” (18/10/22) ou ainda “Homem morre em Guimarães após uma queda de cinco metros numa obra” (21/10/22). Eu pergunto-me quando é que vamos olhar de forma responsável para este panorama negro. Acredito que deve existir mais investimento na investigação e análise das causas que contribuem para que estes acidentes de trabalho ocorram de forma sistemática. Não devemos permitir que estes processos de investigação e análise das causas dos acidentes de trabalho sejam processos de linchamento dos trabalhadores, mas que resultem em verdadeiros processos de aprendizagem para todas as partes envolvidas.

As empresas são o foco da questão, devem investir, desenvolver os seus próprios modelos de investigação e análise de acidentes e promover estas investigações e análises de acidentes a todos os níveis em contexto organizacional. Porquê? No sentido de compreender o que está menos bem no que diz respeito aos vários sistemas que a integram, e consequentemente adotar as medidas de proteção adequadas para mitigar os acidentes de trabalho. Devem, ainda, investir na adequada formação e informação dos seus trabalhadores para os dotar de conhecimentos em matéria de segurança, através da correta identificação dos riscos e dos perigos a que estão sujeitos. Em última análise, cabe à Autoridade das Condições de Trabalho alavancar todas estas questões, todas as preocupações, e operacionalizar todos os mecanismos necessários para apoiar os trabalhadores, os técnicos de segurança, as empresas, as famílias e a sociedade. Numa lógica pedagógica de acompanhamento no terreno como um parceiro e não com o espectro da “caça à multa”, como está automaticamente associado.

Os acidentes de trabalho podem e devem ser evitados! Mas, para isso, devemos trabalhar em conjunto numa abordagem mais integrativa de responsabilidade partilhada entre todos os intervenientes nestes processos. Sabemos ainda que os acidentes têm custos muito pesados para os trabalhadores, para os colegas, para as equipas de trabalho, para as empresas, para os técnicos de segurança, para as famílias, para a sociedade e para a imagem que o nosso país projeta para o exterior.

Esperemos nós que não exista a necessidade de a Amnistia Internacional intervir também em Portugal, à semelhança do Quatar, para obrigar o Estado Português (Nós, os portugueses) e as empresas portuguesas a assumir as investigações e análises de acidentes de trabalho como um valor, que permita responder de forma credível às exigências que resultam da legislação de um “país civilizado”.