Estabeleceu-se que a 8 de Março, quer elas gostem quer não, celebra-se o Dia Internacional da Mulher. Os partidos apresentaram saudações de que nem a Assembleia Municipal de Lisboa se conseguiu livrar. De resto, com tanto entusiasmo que a Mesa já agendou e adiou três ou quatro vezes a discussão e votação dos respectivos documentos. Chegados a Abril, continuamos à espera. E o que diziam esses documentos? Graças a Deus, nada. Ou melhor, no inescapável estilo nariz de cera que os democratas dominam, contavam da história a parte que lhes compete e proclamavam apreços de circunstância. Fiquei compenetrada da altíssima gratidão que os partidos sentem por mim enquanto mulher, entre outros exageros.

Quem disse o que havia a dizer sobre este assunto, e na medida certa, foi Barbara Castle. Ministra do Emprego e da Produtividade de um governo de Harold Wilson, em Junho de 1968 enfrentou o problema da greve das operárias da fábrica da Ford, em Dagenham, perto de Londres. Elas trabalhavam nas máquinas de cozer estofos e queriam ganhar o mesmo que os homens. Enquanto houve estofos os carros foram continuando a sair, mas quando o stock acabou a fábrica viu-se obrigada a parar a produção. Uma greve aparentemente ignorável transformou-se num problema nacional. Gerou discussões no governo, intrigas no partido, as facções, as estratégias, e as pressões habituais, embaladas em doutrina filosófica e exclusivamente empenhadas nos mais altos interesses do mundo britânico. Barbara Castle teve de intervir. E rejeitou os termos daquele delírio explicando que a greve assentava numa questão de “justiça básica” (“common justice”). Estávamos em 1968.

Há quem queira continuar a comportar-se de acordo com as circunstâncias de 1968, como se, de então para cá, as coisas não tivessem mudado. E mudaram muito. As universidades têm mais alunas do que alunos, os hospitais e centros de saúde têm mais médicas do que médicos, os tribunais têm mais juízas que juízes, e peço desculpa por esta frase deliberadamente binária. Insistir na mesma retórica, nas mesmas ideias, e nas mesmas posições que em 1968 é a base de um comportamento extemporâneo e anacrónico. Para mudar esse comportamento temos de começar por repelir a ideia de que nós, as mulheres, formamos um sólido compacto e de substância uniforme. Não formamos. Isso é humilhante e redutor. Não pensamos todas da mesma maneira, não sentimos o mesmo, não temos as mesmas preocupações, não temos nem somos obrigadas a ter as mesmas ideias.

Nem somos todas maravilhosas, outra cretinice que se ouve por aí. Pura bajulação e mentira. Conheço mulheres horríveis, como toda a gente conhece mulheres horríveis, e custa-me dar exemplos pela indelicadeza de deixar algumas de fora. Mas em que mundo é que Dilma Rousseff é maravilhosa? Ou Cristina Kirchner, o estojo de botox e populismo que governou a Argentina? Ou aqui em casa, Ana Gomes, o polícia das “redes” e da televisão? Três mulheres superiormente horríveis, se me permitem a simplicidade. E volto a pedir desculpa, desta vez a todas as mulheres horríveis que não mencionei.

De maneira que não, não somos todas idênticas. À partida, a única coisa que temos em comum, e aquilo que define as mulheres, é sermos a fêmea da espécie. Isso é indissociável dos homens. E tal como os homens, também nos aproximamos e afastamos por motivos variadíssimos, quase sempre externos à condição de mulheres. Ninguém, à excepção dos idiotas e dos piadistas, espera dos homens que eles se comportem ou reconheçam como idênticos entre si. Não somos vítimas, não nos podemos reconhecer como vítimas, nem podemos dizer às nossas filhas que elas são vítimas logo ao nascer. Ser vítima é um estatuto de menoridade. As vítimas precisam que tomem conta delas, precisam que os outros, mais fortes ou mais espertos, tomem conta delas. Nós não precisamos e, acima de tudo, não queremos que tomem conta de nós. Por muito que isso custe à esquerda.

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