O início deste ano está a ser, provavelmente, o maior desafio coletivo que enfrentamos enquanto sociedade, em que travamos um “combate” sem tréguas contra a Covid-19. Aquele que, na altura, foi considerado o “milagre português”, tão elogiado nos primeiros meses desta pandemia, cujo exemplo permitiu que figurássemos nos rankings europeus e mundiais, referência do número baixo de contágios, sucumbe agora a uma realidade dura, difícil e cruel. Naquela altura soubemos atuar de forma decidida, percebemos os sinais, houve liderança pelo exemplo e pela ação e, por via dela, preveniram-se os problemas que poderiam ocorrer de forma massiva. Neste inverno havia que parar, avaliar a dimensão e estudar o que enfrentávamos. E, ao mesmo tempo, aproveitar o conhecimento que nos era fornecido pela ciência e pelo que vinha ocorrendo noutros países. Confinámos, foi declarado o estado de emergência pelo Presidente da República (comprovadamente uma decisão acertada, imperiosa e corajosa) e tivemos os nossos profissionais e serviços de saúde na primeira linha do combate, altruístas, solidários e competentes, como lhes é reconhecido.
É difícil aceitar que, quase um ano depois do dia 2 de Março de 2020, dia em que se registaram os primeiros casos de Covid-19 em Portugal, sejamos hoje o país do mundo que reporta o maior número médio de novos casos por milhão de habitantes (a incidência é calculada a sete dias para atenuar as oscilações), sendo a primeira vez, desde o início da pandemia, que Portugal está na pior posição comparativamente a outros países. Em plena primeira fase de vacinação, especialmente dirigida aos profissionais de saúde e aos utentes e funcionários dos lares, não há outro país no mundo a reportar tantos novos casos por milhão de habitantes e, concomitantemente, com uma subida brutal da mortalidade associada, atingindo níveis só superados, neste momento, pelo Reino Unido.
Tive oportunidade de partilhar algumas reflexões no decorrer destes dez meses de pandemia, relevando, logo de início, a grande ameaça deste vírus para a população mais idosa e os riscos daí advindos, perspetivando as consequências no futuro da saúde oral no pós-Covid e, mais recentemente, sobre a importância de uma boa comunicação em saúde. Creio que, acima de tudo, o que se constata é a falta de visão estratégica sobre a forma como se pode aprender com o ocorrido (cá e noutros países) e se devem prevenir as consequências mais nefastas. Por mais difícil que seja prever algo que ainda não tenha ocorrido, existe cada vez mais informação que nos pode ajudar a tomar decisões mais céleres e mais adequadas.
Creio, agora, ser imperioso o Governo instalar definitivamente um gabinete de crise que lhe permita enfrentar os próximos meses, que se vislumbram ainda mais caóticos. Não tenhamos dúvidas que temos de exigir dos nossos governantes mais do que decisões ao sabor da opinião pública e do alijar de responsabilidades, é necessário um planeamento estratégico e não apenas a gestão operacional corrente que se tem verificado. Nesse sentido, o desafio será, igualmente ,começar a preparar já o momento de transição que irá ocorrer após este período de confinamento rígido e de controlo. Sejamos sinceros, devemos ter já preparadas equipas que estejam a estudar e a equacionar o que podemos designar de período de transição após esta fase aguda da pandemia que estamos a viver.
Com os nossos profissionais de saúde vacinados, temos de pensar de que forma vamos começar a receber as pessoas nos Cuidados de Saúde Primários e poder começar a fazer o atendimento dos doentes que estavam a ser seguidos. Temos de começar a recuperar o muito que foi conseguido antes desta crise sanitária, seja no seguimento dos utentes com doenças crónicas, que não deixaram nem deixarão de existir, seja na recuperação de tempo útil no preocupante caso das cirurgias oncológicas adiadas. Tudo isto para além dos rastreios nos diversos serviços integrados de saúde centrados no doente e nos vários projetos que estavam a ser desenvolvidos e que precisam de ser retomados.
Neste particular, considero como bom exemplo o projeto de saúde oral nos cuidados de saúde primários com os médicos dentistas nos Centros de Saúde (onde já existe um elevado investimento das autarquias). Precisamos de pensar e planear de que forma podemos conseguir fazer, igualmente, um adequado planeamento para as cirurgias e para os muitos tratamentos adiados que, inevitavelmente, terão de ser retomados. Não podemos cometer, de modo algum, o mesmo erro. Urge uma visão do sistema de saúde como um todo! Temos de olhar para os bons exemplos dessa articulação, transversal a muitas regiões, entre o setor público, o social e o privado, decorrentes, nomeadamente, do importantíssimo contributo e arbitragem dos autarcas. É disso exemplo o Centro Hospitalar de São João, no Porto, o qual foi, e muito justamente, distinguido pela forma como liderou e lidera o combate à pandemia, como soube planear antecipadamente as respostas aos problemas, como soube, enfim, rodear-se, interagir e articular-se construtivamente com todos as forças vivas da região.
O foco, neste preciso momento, deve centrar-se em tudo fazermos para conseguir esmagar a curva de novas infeções, reforçando inequivocamente junto das populações a mensagem sobre a crucial importância de cada um fazer a sua parte. Melhorar a comunicação e ter uma ação concisa e clara para que a população retome a confiança nos governantes e nas instituições.
Sendo o planeamento estratégico um processo que tem como objetivo avaliar o meio envolvente em mudança, criando uma visão de futuro, tal desiderato engloba decisões a médio e a longo prazo que afetarão toda a organização e, por isso, são tomadas pelas hierarquias superiores. Até agora estivemos e ainda estamos sujeitos à tática, que lida com decisões correntes e adaptativas, de curto prazo. O desafio, repito, é não falhar na próxima fase e não ficarmos dependentes de confinamento após confinamento sem conseguirmos preservar os serviços de saúde e continuando a descurar os doentes não Covid. Podemos agarrar-nos às certezas e ao que temos de adquirido para o futuro próximo.
Acreditamos que este período mais negro vai passar, sendo que alguma “normalidade” neste setor não é reposta de um dia para o outro nos nossos serviços de saúde. Não podemos voltar a falhar. Existem quadros na sociedade civil, na academia, a quem o Governo pode e deve recorrer, como fez no caso do plano de vacinação ,ou mesmo no plano de recuperação e resiliência, para que se organize uma equipa e um plano estratégico para fazer face aos desafios que sabemos que vamos ter.