Seria necessário ser muito ingénuo para acreditar que a política estaria suspensa durante o período de emergência. Seria obviamente o desejo do governo. O PM desejaria liderar uma união nacional, do PCP ao CDS, mas é demasiado realista para acreditar nessa ilusão. E, após um par de semanas de solidariedade nacional, o regresso da política já se deu. Hoje, há um confronto claro entre o Bloco e o governo, mesmo que seja muito dissimulado.

O PM começou por atacar o governo holandês de um modo violento, usando uma linguagem pouco habitual e inesperadamente violenta. Ora, Costa — político profissional desde que saiu da universidade — nada faz por acaso. Sabe muito bem que os eurobonds nunca seriam aprovados nas próximas semanas. Portugal tem diplomatas muito competentes em Bruxelas, que seguramente explicaram ao PM o pensamento das várias capitais sobre a matéria. O PM também sabe que a oposição aos eurobonds que conta está em Berlim, incluindo no ministro das Finanças da sua família política socialista. A Holanda está apenas a ser a voz alemã, com um entusiasmo lamentável, é verdade, mas o poder está com os alemães e não com os holandeses. Costa nunca atacaria o governo alemão porque sabe que no futuro vai precisar de Merkel.

Os ataques de Costa à Holanda, em grande medida, devem-se à política nacional e à disputa que o PS tem com o Bloco por uma parte comum do eleitorado de esquerda. Em primeiro lugar, Costa está a tentar neutralizar os ataques que o Bloco vai fazer contra o governo por aceitar o que a Alemanha quer. Os ataques que Louçã e Catarina Martins fazem hoje a Centeno são os que farão amanhã a Costa. O PM sabe e está a preparar a sua defesa. Em segundo lugar, para o pior dos cenários, que obrigue Costa a abandonar o governo – haverá um limite para o que PS aceite fazer no governo para recuperar a economia – é necessário encontrar um culpado. O PM ficará aceitando o que a UE decidir, ou abandonará o governo culpando a Europa.

Louçã e Catarina Martins não esperaram para atacar o governo. Primeiro começaram por tentar dividir o governo, dizendo que Costa e Centeno têm posições diferentes em relação à política europeia.  Obviamente, não têm. A política europeia do governo só mudaria se decidisse recusar abertamente as posições da Alemanha, como faz o Bloco. A Holanda não passa de uma distração. Costa aceita a política de Merkel do mesmo modo que Centeno. A Catarina do Bloco está enganada, não é Centeno que “está alinhado com o governo alemão”; é o governo português.

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Depois, o Bloco diz que o recurso ao Mecanismo de Estabilidade Europeia é um resgaste e é uma solução semelhante à da troika. É mentira e o Bloco sabe muito bem. Mas nós também sabemos que a mentira é o modo como o Bloco faz política. Aliás, a ameaça já está feita: o governo faz uma aliança com o Bloco, ou então haverá “austeridade” em Portugal. Para Louçã e para Catarina, “austeridade” significa um governo sem acordos com o Bloco. Se Costa rejeitar o Bloco, aconteça o que acontecer, faça o que fizer, haverá “austeridade” em Portugal.

A crise económica torna a UE muito mais importante. Com eurobonds ou sem eurobonds, as ajudas que o país precisa vêm de Bruxelas, de Frankfurt. Não há alternativa a isso, e Costa sabe muito bem. Vejamos o calendário político no próximo ano. No dia 1 de Julho, começa a presidência alemã do Conselho da UE, que dura até ao fim do ano. No dia 1 de Janeiro do próximo ano, começa a presidência portuguesa do Conselho da UE, que irá até ao fim de Junho de 2021. Com presidências seguidas, além da crise económica, a aliança entre Berlim e Lisboa será inevitável (trabalhava na Comissão a última vez que houve presidências seguidas da Alemanha e de Portugal e vi como Sócrates fez o que Merkel quis, especialmente com o Tratado de Lisboa que reforçou o poder de Berlim). O PS sabe isso, e o Bloco também. Já estão a preparar-se para o conflito que aí vem. Quando Catarina Martins afirmou no Expresso, “a escolha do governo é entre o BE e o bloco central”, está na verdade a dizer que a escolha será entre o BE e a aliança do governo português com a Alemanha.

Em tempos de crise económica, as políticas exigidas para a recuperação económica e a necessidade da ajuda vinda da Europa, obrigam Costa a escolher Merkel e a abandonar Catarina Martins. Não deixará de ser irónico, depois de quatro anos de geringonça, assistir o Bloco a atacar Costa do mesmo modo que criticou Passos Coelho entre 2011 e 2015.

PS: Num momento em que o governo apela à unidade nacional para combater o Covid-19, é lamentável assistir a ministros, como fez a ministra da Saúde ontem à noite, a atacarem a saúde privada em público. Pode ser popular para alguns sectores das nossas esquerdas. Mas perante a doença, as pessoas não distinguem hospitais públicos e privados. Querem ficar curados, e para isso conta apenas a qualidade dos serviços médicos. Além disso, os grupos privados de saúde têm mostrado toda a disponibilidade para colaborar com o Estado.