1 Escrevo antes de conhecer os resultados oficiais das eleições presidenciais de ontem. Mas não hesito em prestar homenagem ao civismo dos portugueses neste dia da democracia.

Votei na Escola Raul Lino — o grande arquitecto da doce e conservadora Casa Portuguesa — no Monte Estoril. Cheguei às 14h10 a uma longa e ordeira fila que esperava cá fora. Tudo decorreu suavemente, sob a gentil e “unassuming” liderança de inúmeros jovens voluntários — vários escuteiros devidamente trajados, e várias jovens elegantes com batas brancas. Todos diziam “por favor” e “obrigado”, com um sorriso educado que se adivinhava por trás das máscaras.

Às 14h25,  eu já estava a sair. Com lágrimas nos olhos e voz embargada, agradeci a todos os voluntários que reencontrei no caminho de saída. Qualquer que seja o resultado, foi uma lição de civismo e de democracia. Foi o dia da democracia!

2 “O dia da democracia” foi também como o Presidente Joe Biden designou o dia da sua tomada de posse, a 20 de Janeiro — a data que a Constituição americana claramente define. Foi uma bela cerimónia, em que o novo Presidente proferiu um tocante discurso em defesa da tradição democrática americana e da reconciliação nacional.

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“End this uncivil war!”, disse o Presidente. E este foi o título da manchete do conservador The Daily Telegraph  de Londres, na quinta-feira de manhã. A frase do Presidente democrata americano e o enfático apoio do conservador-liberal diário de Londres falam por si: a esquerda e a direita democráticas estão a re-descobrir a causa comum da defesa da democracia civilizada contra a guerra tribal — e não-civilizada, “uncivil” — entre facções rivais.

3 Existe de facto uma “uncivil war” em curso que tem de ser derrotada. O estilo terceiro-mundista do sr. Trump — a que chamei aqui repetidamente general tapioca — levou a incivilidade ao rubro. Felizmente, o general tapioca foi derrotado nas urnas e nos tribunais pela grande democracia americana. Como também já referi neste espaço, é ensurdecedor o silêncio dos apoiantes do sr. Trump, lá fora e entre nós.

Mas há outro tribalismo a alimentar a “uncivil war” na América e no Ocidente. Num longo e muito estimulante artigo na conservadora-liberal The Spectator de Londres, Stephen Daisley chama-lhe, a meu ver apropriadamente, “progressismo coercivo”.

Trata-se de uma cartilha ideológica politicamente correcta que quer redesenhar central e autoritariamente os modos de vida descentralizados e os valores morais livre e espontaneamente partilhados ao longo de inúmeras gerações. Foi o sentimento espontâneo de auto-defesa contra a ofensiva autoritária do “progressismo coercivo” que gerou os 74 milhões de votos no ungentleman sr. Trump — a maior votação até agora alcançada por um candidato republicano ou/e por um candidato derrotado.

4 Esta é uma questão crucial que não pode ser esquecida. Um estudo não partidário citado por Stephen Daisley refere que o sectarismo partidário nos EUA atinge hoje níveis de ódio e tribalismo semelhantes aos registados na Bósnia e no Kosovo. Isto simplesmente significa que a famosa “balcanização” pode estar hoje a ameaçar a democracia americana — e a revelar sinais também preocupantes em várias democracias europeias.

Isto significa também que, em todo o Ocidente, deve existir um esforço comum de combate à balcanização, ao tribalismo e à “uncivil war”. Por outras palavras, o “trumpismo” não deve agora ser combatido com o “progressismo coercivo” do estilo Bernie Sanders (nos EUA), ou Jeremy Corbyn (no Reino Unido) — ambos muito populares entre minorias militantes, mas amplamente e tranquilamente derrotados nas urnas.

Por outras palavras, os extremos tribais de cada lado devem ser combatidos pelos moderados de cada lado. E a causa comum da democracia liberal pluralista — o regime da regra, obra comum de partidos rivais — deve ser reafirmada pela direita e pela esquerda democráticas.

5 Isto implicará um vasto esforço político, mas também e talvez sobretudo cultural e intelectual. Será importante estimular o re-encontro intelectual de vozes moderadas da direita e da esquerda. E será crucial criar espaços de conversação entre essas vozes, em vez de balcanizar a gritaria tribal entre vozes sempre muito zangadas — e em bom rigor, apenas semi-educadas.

Face à gritaria estridente das minorias militantes, da esquerda e da direita radicais e mal-educadas, é sempre gratificante recordar em tom moderado as sábias palavras de Winston Churchill sobre a filosofia política de seu pai — um conservador liberal — e sobre o segredo da mais antiga democracia parlamentar do planeta:

“Ele [Lord Randolph Churchill] não via razão por que as velhas glórias da Igreja e do Estado não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou por que as massas do povo trabalhador não pudessem tornar-se os principais defensores dessas antigas instituições, através das quais as suas liberdades e o seu progresso tinham sido alcançados. É esta união entre o passado e o presente, entre a tradição e o progresso, esta corrente de ouro [golden chain], até agora nunca quebrada, uma vez que nenhum esforço indevido lhe foi imposto, que tem constituído o mérito singular e a qualidade soberana da vida nacional inglesa.”