Vem esta pequena e inocente sátira a propósito de uma petição que circula na Internet, intitulada «Pela destituição do Arqtº Manuel Salgado da liderança da Sociedade de Reabilitação Urbana». Tenho que começar por confessar ao leitor que foi apenas na vulgar condição de olissipógrafo amador e de amante da cidade de Lisboa, esta bela terra da qual sou um filho adoptivo, que assinei esta petição sem pestanejar.

Mas por que razão a assinei, confesso, quase de cruz, céptico e alérgico que sou a esta modalidade de intervenção cívica? Bom, talvez porque alimento uma secreta esperança de que esta petição seja apenas um primeiro passo, sem dúvida educado e civilizado, para denunciar e parar de uma vez por todas com as atrocidades urbanas deste grande criminoso. Penso, no entanto, que a gravidade dos delitos do Dono da Sala do Risco de Lisboa Ocidental nos permitiria ir um pouco mais longe, devendo talvez este “Micromegas” da arte arquitectónica lisbonense poder bater com os costados inteirinhos na prisão de alta segurança de Monsanto.

Sim, porque um grande delinquente arquitectónico não merece um estabelecimento prisional plebeu incapaz de honrar a mania das grandezas e o estilo grand seigneur da personagem. Além do mais, o Parque Florestal de Monsanto, tendo sido concebido pelo Eng.º Duarte Pacheco e executado pelo arquitecto-urbanista Keil do Amaral, apesar de entretanto ter perdido, desde a sua criação em 1938, 300 dos seus primitivos 1200 hectares, continua a ser um lugar razoavelmente arejado, repleto de árvores como o sobreiro, a azinheira, o carvalho-português, o pinheiro-manso, o zambujeiro, o carrasco, mesmo o cipreste-do-Buçaco, espécies vegetais que proporcionam aos alfacinhas a salubridade do ar da sua cidade e certamente também um poderoso princípio de cura para muitas doenças, incluída aquela mais frequente entre grandes arquitectos: a ânsia de vencer a força da gravidade, tanto a física como a moral.

Pois bem, este Manuelzinho, primo direito do nosso “Dono Disto Tudo”, é de facto um grande criminoso que se passeia impune pela cidade de Lisboa, impante de arrogância e de satisfação para consigo mesmo, nela deixando as suas nefandas pegadas arquitectónicas, sem dar cavaco a ninguém. Será este sentimento de impunidade um traço genético da família do senhor arquitecto? Não o podemos saber. Mas isso pouco importa para o que agora queremos dizer ao leitor. E uma vez que estamos em maré de megalomanias, e porque se formulado em língua alemã o crime, qualquer crime, aliás, tem sempre um toque de grandeza wagneriana, permitam-me que enuncie o rol dos delitos do senhor arquitecto Manuel Salgado sob título germânico.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Eis então o Das große Verbrecher-Lexikon, ou Léxico do Grande Criminoso, a que pude conscienciosamente chegar após ter visto há dias atrás uma reportagem de talvez quinze a vinte minutos na TVI sobre alguns dos projectos fomentados e aprovados em Lisboa por este edil que, retirado embora recentemente da vereação do urbanismo de Lisboa ao cabo de doze anos de sacrifícios em prol do serviço público, manda realmente, e pretende continuar a mandar soberanamente, na Sala do Risco da Lisboa Ocidental, vulgo Sociedade de Reabilitação Urbana.

Pois bem, aqui fica o clip da cidade de Lisboa na sua versão Pedras Salgadas em Ponto: ele é o Hospital da CUF em Alcântara com uma alarve área de implantação de 75 mil metros quadrados e uma volumetria absolutamente desproporcionada; ele é a sede da EDP, no Aterro da Boavista, entre o Cais Sodré e Santos, um mamarracho com dimensão e formas espalhafatosamente exibicionistas e descaradamente intrusivas, ao ponto de obstruir a vista regular do rio Tejo mesmo de uma cota elevada como a do alto de Santa Catarina, cujo usufruto foi entretanto incompreensivelmente vedado aos lisboetas há mais ou menos 420 dias, sem qualquer explicação decente por parte da Câmara Municipal de Lisboa. Sobre este edifício, dizem-nos os escribas de serviço à causa que a sua arrojada abstracção arquitectónica, feita de uma «simplicidade aparatosa», e, pasme-se, dando nota de um «redenção ambientalista do sector da energia», garante aos lisboetas e aos turistas que com ele chocam uma depuração formal de dimensão verdadeiramente internacional, capaz mesmo de diluir a percepção do número de pisos que o compõem. Chiça!

Continuemos: ele foi a demolição de um quartel dos bombeiros novinho em folha junto ao Hospital da Luz, a qual permitiu entretanto aumentar os metros quadrados de lucro à Espírito Santo Saúde, ficando evidentemente o projecto a cargo do próprio Manuelzinho; ele é o mamarracho na Av. Fontes Pereira de Melo, feito mais ou menos à socapa junto do Imaviz, que de repente foi aumentado em mais dez andares após o BES do primo Ricardinho ter entrado no capital da coisa; ele é aquela a que com propriedade podemos chamar Salgado Tower, o edifício dourado à la Trump previsto para junto da Cervejaria Portugália na Avenida Almirante Reis; ele são, enfim, os atropelos e as ilegalidades em tudo quanto é sítio na velha e na nova-rica Lapa e onde o genial projectista inventa, por assim dizer, terreno edificável que não existe para em seguida o poder leiloar a especuladores estrangeiros de duvidosa reputação. Enfim, a lista poderia ser bem mais longa – e sobretudo miudinha q.b. Mas não há necessidade.

Ora, um filho da mãe destes, que ajudou o capo António Costa a montar os desavergonhados tachos para as fagmilias  socialistas na Câmara Municipal de Lisboa, e de que o próprio Costa, e o seu boneco predilecto, o Medina, beneficiaram, com a oferta, a preços de saldo, de luxuosos andares para as suas virtuosas pessoas, a título de inquilino o primeiro (o Tonio Kostas instalado nos Restauradores) e de proprietário o segundo (o Nandinho Médicis aninhado na Av. Duque de Ávila) merece não apenas ser destituído da liderança da Sociedade de Reabilitação Urbana, mas, a provarem-se os inúmeros indícios de graves irregularidades, devidamente enjaulado na prisão de alta segurança de Monsanto, podendo porventura aí continuar a brincar às casinhas com outros meninos da sua criação, caso o meritíssimo juiz assim o decida, em todo o caso apenas àquele tipo de casinhas que se fazem com o Lego de contrafacção “chenesa”.

Entretanto, a Câmara Municipal de Lisboa, sabemo-lo, apodrece de rica, a alarve. Com o imposto de transacções imobiliárias e aos preços a que o casario está em Lisboa, é sempre, sempre a embolsar. O que nos leva a concluir, um tanto ou quanto abruptamente, que sob uma ordem soberana do Costa, previamente autorizada, evidentemente, por Mário, il Dottore, o Merdina Médicis bem poderia começar a pensar em atribuir um subsídio a todos aqueles lisboetas que, contra a superior vontade dos arquitectos de génio que põem e dispõem nos negócios imobiliários da edilidade alfacinha, teimam ainda assim em viver em Lisboa. Tomando de empréstimo o vocabulário de um conhecido filósofo alemão do século XIX, dir-se-ia que a arte do senhor arquitecto Manuel Salgado, o Dono e o Senhor da Sala do Risco da Lisboa Ocidental, não representa nem um estado dionisíaco, nem um estado apolíneo do seu nobre ofício. Não. Todo ele respira apenas aquele tipo de vontade férrea capaz de mover montanhas, em suma, todo ele simboliza apenas aquela espécie de embriaguez com o poder própria da mais pura e grande das vontades. Diz o tal alemão: «Na arte arquitectónica devem adquirir visibilidade o orgulho e a vontade de poder; a arquitectura é uma espécie de eloquência do poder expressa em formas, eloquência que umas vezes persuade e mesmo lisonjeia, e que outras vezes se limita a dar ordens». O senhor arquitecto não poderia estar mais de acordo.

O velho, honrado e castiço ditado segundo qual «quem não viu Lisboa nunca viu coisa boa» deve de ora em diante ser substituído por um novo, sem dúvida um pouco mais moderno e actual: «Quem nunca viu Lisboa como ela foi outrora, que a tivesse visto enquanto era tempo».