No dia 10 de Fevereiro do ano de 1842, a rainha D. Maria II mandou restaurar, por decreto real, a Carta Constitucional de 1826. Nesse exato instante, os liberais e os conservadores portugueses, a “direita” da nossa Monarquia Constitucional, sem disso se terem apercebido, desistiram do país.

A Carta fora a segunda constituição política portuguesa e tinha sido inicialmente outorgada por D. Pedro, pai da rainha, então ainda imperador do Brasil e fugazmente rei de Portugal, com o fim de estabelecer um compromisso entre o princípio monárquico e a soberania nacional, que conflituavam desde a Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820. Ao invés dos “excessos” da constituição vintista, que fora aprovada, em Novembro de 1822, por uma Assembleia Constituinte e que tinha retirado o rei do epicentro do sistema político, substituindo-o por um parlamento teoricamente representativo da nação, a Carta repunha o príncipe como primeira autoridade da pólis, reconhecendo-lhe o direito de estabelecer as regras da ordem política. O que, aliás, D. Pedro tinha feito, outorgando ao país a “sua” Constituição, subvertendo, desse modo, o princípio constituinte anteriormente exercido pela nação.

O conflito entre estas duas polaridades do novo liberalismo português – o vintismo, mais arrojado e democrático, e o cartismo, mais conservador e aristocrático – dividiu profundamente a sociedade portuguesa nas décadas anteriores, desde que as ideias do liberalismo e do constitucionalismo haviam chegado a Portugal, e continuaria a fragmentá-la até à implantação da República. O que essencialmente separava essas duas fações do liberalismo português era a resposta à questão seguinte: onde reside primordialmente a soberania, na nação ou no rei? E, embora nem os vintistas quisessem retirar ao rei a chefia do Estado, nem os cartistas recusassem os deputados eleitos pela nação, o facto é que estes preferiam atribuir o primado dessa faculdade ao monarca, enquanto que aqueles a reivindicavam para o populus.

Naquele mês Fevereiro, a Carta foi reposta pela segunda vez e entrará, desse modo, no seu terceiro, último e mais longo período de vigência legal dessa e, por ora, de qualquer outra Constituição portuguesa. Desencadeado a partir da cidade do Porto, o golpe palaciano que pôs fim ao setembrismo de Passos Manuel foi obra do ministro da Justiça do Governo em funções, António da Costa Cabral. Iniciado politicamente no extremismo jacobino do setembrismo mais radical, Cabral foi-se progressivamente desiludindo com as virtudes da revolução e aproximou-se progressivamente do Paço e da Rainha, até se transformar num pragmático paladino do conservadorismo da Carta Constitucional. O homem a quem Oliveira Martins chamaria, anos mais tarde, no Portugal Contemporâneo, “o nosso Marat”, evocando um paralelismo com o torcionário agitador da Revolução Francesa, era agora um conservador que não hesitou em guardar na gaveta os ímpetos revolucionários da juventude, oferecendo ao país uma monarquia moderada por uma Constituição onde o rei, dotado de poder moderador, veto absoluto e uma câmara alta parlamentar aristocrática e da sua confiança, voltava a ser o centro absoluto do regime. A Carta vigorou ininterruptamente durante um longo período de 72 anos, e, com ela, o liberalismo lusitano abdicaria da nação em favor do rei, da legitimidade popular em benefício da legitimidade tradicional e hereditária, deixando as novas ideias do século às mãos da República, que em seu nome se implantaria a 5 de Outubro de 1910. Olhando, de novo, mais para trás do que para o futuro, a direita prescindia dos valores que a modernidade política aportava para a Europa e para o Mundo, com os quais de abririam as portas da contemporaneidade democrática.

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De resto, esta atitude não consistia numa novidade. Algo muito parecido tinha já sucedido anos antes, na primeira tentativa de implantar o liberalismo em Portugal, em 1820, quando o país se dividiu entre os que queriam a Constituição e aqueles que a execravam. A “direita”, se assim podemos chamar aos sectores mais conservadores do país, voltara costas à Revolução Liberal de 1820, e rendera-se ao “partido apostólico” do infante Miguel e de sua mãe Carlota Joaquina. Nessa ocasião, a revolução burguesa e letrada, que já então procurava estabelecer, entre nós, o constitucionalismo liberal e uma forma portuguesa do “rule of law”, acabou derrotada por uma aliança espúria entre a aristocracia militar, o clero e o povo rural. Esses dois primeiros grupos sociais tinham ainda bem presente os suplícios por que os reis de França tinham passado na Grande Revolução, e acreditavam que “constituição” e “liberalismo” eram sinónimos de “jacobinismo” e “Terror”. Mas, erradamente, desconsideraram que, se a Revolução contou com o entusiasmo dos “afrancesados”, como o juiz Manuel Borges Carneiro, também atraiu os “anglófilos”, como Hipólito José da Costa, José da Silva Carvalho, José Ferreira Borges ou até, um pouco mais tarde, Silvestre Pinheiro Ferreira. De resto, a política do Concerto Europeu saída do recente Congresso de Viena instigava o regresso ao passado e dispunha-se a impedir, reprimindo pela força se preciso fosse, quaisquer ímpetos constitucionalistas e liberais nas monarquias europeias. A Revolução Liberal Portuguesa e a Constituição que dela resultara eram coisas de “maçons” e “malhados” que desrespeitavam a verdadeira tradição política nacional, como defenderam vários dos mais eminentes seguidores de D. Miguel, entre eles o famoso economista José Acúrsio das Neves e o não menos prestigiado visconde de Santarém. A visão que D. Miguel tinha sobre o país era a de um Estado organizado pelo princípio monárquico tradicional das Cortes estamentais convocadas à maneira antiga, reunindo as ordens sociais do clero, da nobreza e do povo. A Revolução Gloriosa Inglesa de 1688/9 e a Revolução da Independência Americana de 1776, não lhes ensinaram nada. Transidos de pavor pelo cadafalso erguido na Praça da Revolução, recusaram-se a aceitar a sensata sentença de Joseph de Maistre, que em quase todos os aspetos lhes era simpático, de que “não é pelo regresso ao antigo sistema que se pode pôr termo a uma revolução”. E foi desse modo que, depois da morte de D. João e de se ter comprometido com o seu irmão Pedro numa solução constitucional, D. Miguel mandou reunir as Cortes em 1828, fazendo-se nelas proclamar “rei absoluto”. Nessa ocasião, a esmagadora maioria da “direita” do país ficou ao lado do Infante. Alguns poucos liberais-conservadores, mais próximos da Inglaterra do que de França, como Palmela e o Marquês de Fronteira, preferiram o campo de D. Maria e de D. Pedro, embora quase nenhuns tivessem escolhido seguir os valores demasiadamente arrojados do vintismo, que ficaram entregues às mãos da esquerda liberal e dos radicais.

O século XIX português foi o período em que Portugal, à semelhança do que sucedeu em quase todos os demais países europeus e americanos, entrou na modernidade política. Por isto, queremos dizer que foi nesse tempo que os Estados foram quebrando os laços que os ligavam ao Absolutismo, que vivia sem instituições representativas e com reis que só tinham de obedecer à sua consciência racional e iluminada, para se começarem a configurar como Estados de Direito. Em Portugal, foram três as tentativas para o alcançar: a Constituição de 1822, democrática e quase-republicana, a Carta Constitucional de 1826, conservadora e monárquica, e a Constituição de 1838, conciliatória e de apaziguamento. A generalidade da direita virou as costas à primeira, à segunda e à terceira, só consentindo na reposição da Carta em 1842, como mal menor, devido ao temor que lhe provocara o setembrismo. Depois disso, descansou no processo desenvolvimentista de Fontes Pereira de Melo e confiou em que o caminho de ferro, pago pela dívida pública, afastaria a revolução. Mas os que conseguiram chegar à orla do poder não procuraram desenvolver o país a partir de uma burguesia industrial e autónoma, que lhe desse verdadeira força económica e social. Pelo contrário, encostaram-se ao Estado e ao poder político, e fizeram negócios e fortuna a partir da soberania e das vantagens que ela sempre aporta a quem a exerce. Convencida da eternidade do rotativismo, a direita ignorou a força viral do princípio da soberania nacional e, com isso, condenou a Monarquia a um fim que se revelaria traumático.

Quando vira o século, a direita portuguesa apresentar-se-á ao país sem qualquer doutrina política e económica, e sem uma classe média burguesa, industrial e forte, que fosse capaz de lhe dar corpo. Foi, por isso, com António Sardinha e o Integralismo Lusitano que se procurou reinventar e enfrentar o novo século. Infelizmente, daí não vinha nada de novo. O Integralismo de Sardinha não passava de uma ténue revisão de um passado ainda muito presente e de um miguelismo sem D. Miguel. Como doutrina, pouco mais era do que uma interpretação da política e da história que humildemente reproduzia o ultramontanismo literário de Joseph de Maistre, reforçado por um anti-maçonismo que justificava tudo o que se passara no século anterior por uma conjura contra “o Trono e o Altar”, esquecendo até que o próprio autor das Considérations sur la France fora maçon até ao último dia da sua vida. Mas foi no Integralismo Lusitano que o promissor jovem intelectual Marcello Caetano militou, como o fez quase toda a direita culta portuguesa, antes e durante a República, permanecendo fiel à ideia antidemocrática do sebastianismo miguelista, que Sidónio Pais avivaria momentaneamente. Quando, findos os turbulentos dezasseis anos da nossa Primeira República, se implantou a ditadura, foi com António de Oliveira Salazar que a direita se entendeu. Aí e nas décadas seguintes, a questão democrática não lhe interessou, como não quis saber do que se passava na Europa, voltou costas ao liberalismo económico e aceitou passivamente, por longos quarenta anos, o paternalismo autoritário do restaurador das finanças públicas, mais uma vez convencida que a sombra de um chefe chegaria para lhe garantir o futuro.

Chegado o 25 de Abril, não havia direita democrática em Portugal. Os que mais se lhe aproximavam, os homens da “Ala Liberal” e os tecnocratas marcelistas, sonhavam com o “paraíso” nórdico e com a social-democracia interventiva de Keynes, e diziam abominar o capitalismo perverso. E aqueles que, à direita do regime, pensavam para além de Salazar e Caetano, deixaram-se ficar cativos numa visão quinto-imperista de Portugal e do seu império ultramarino, desconsiderando o que ensinara Carl Schmitt, que justificadamente tanto admiravam: que a guerra é uma situação política extrema e, por isso, tem de ser sempre um momento excecional e passageiro, que carece de um fim político que seja percetível. É que os pretorianos também se cansam de fazer a guerra, como De Gaulle compreendeu na Argélia.

A história da República democrática em que vivemos desde o 25 de Abril de 1974 foi, por quase tudo que precede, compreensivelmente pautada por uma ausência permanente de uma direita democrática e culta, com expressão nos partidos e no poder. Nunca, desde aquela data, tivemos um partido de direita ideológica, simultaneamente popular, conservador e liberal, que soubesse o que fazer do Estado, quando e no momento em que o tivesse de governar. Nestes quase cinquenta anos, não houve um único think tank que pensasse o país à direita, pelos hipotéticos olhos de uma classe média e de uma economia que um Estado estruturalmente totalitário tem vindo, ano após ano, a destruir. Em Espanha, para não nos distanciarmos muito do retângulo, José Maria Aznar governa a importante Fundación para el Análisis y los Estudios Sociales, a partir da qual ajuda a preparar o futuro da direita espanhola e do seu país. Em Portugal, Aníbal Cavaco Silva, eleito pela direita e pela burguesia cansada da asfixia do socialismo, logo se afirmou keynesiano, não tendo revelado qualquer ideia de médio-longo prazo para o país. Em coerência com essa falta de convicções amplas, fez de Portugal um país de serviços e desaproveitou a oportunidade histórica que a adesão à CEE constituiu. O PSD diz-se de esquerda e o CDS, passado o tempo do “rigorosamente ao centro” de Freitas do Amaral, refugiou-se na marca da “democracia-cristã”, com a qual julgava dispor de uma quota segura de eleitorado, que lhe garantisse o futuro. Francisco Lucas Pires ainda lançou o “Clube de Ofir”, mas cedo se desiludiu e foi para a “Europa” escrever livros. Paulo Portas fez um jornal e, a partir dele, refez um partido. Mas abandonou qualquer convicção doutrinal nos dois momentos em que chegou ao poder, se é que alguma vez teve alguma. Pedro Passos Coelho acreditava na transformação de Portugal num país moderno e racional, mas desistiu de o tentar assim que percebeu que o esforço fora em vão. Hoje, em razão da completa ausência de cabeças pensantes no PSD, o partido que deveria liderar um bloco de direita alternativo à frente de esquerda chefiada por António Costa recusa-se a fazê-lo, por não se considerar de direita. O CDS, praticamente extinto das intenções de voto, dilui-se na insignificância de um neoconservadorismo ininteligível. A Iniciativa Liberal, ignorando a força histórica enquadrante de uma velha dicotomia que nunca a esquerda enjeitou, nega ser de direita, condenando-se, por consequência, à marginalidade política. É que um “partido de ideias” pode ser muito interessante, mas só o será, verdadeiramente, se conseguir realizar a missão natural de qualquer força política: levar as suas ideias para o poder. Quanto ao Chega de André Ventura, trata-se de uma formação política unipessoal, que vive em busca de nichos eleitorais e de votos, procurando conquistá-los com espasmos mediáticos perigosos e muitas vezes levianos, que ainda recentemente o levaram a atravessar a linha acentuadamente vermelha de um conluio perigoso com a extrema-direita antieuropeísta do clã Le Pen e de Salvini. Ventura vai a todas onde julga colher votos, sem perceber que há coisas que sujam.

Hoje, em Portugal, a direita livre e democrática, defensora dos grandes valores do Humanismo e do Individualismo Liberal, não existe. Em bom rigor, nunca existiu. Estamos, por isso, condenados, tal como no passado, ao socialismo.