Quer-se saber o que o cão pensa do mundo, o que o tirano deixou por fazer, o que a criança teria feito, e vai-se consultar os seus diários. Por infelicidade, apesar de copiosos, não são normalmente muito interessantes. Não é que não possam ter interesse: mas são interessantes como quando se cobiça a revista da pessoa sentada ao nosso lado no dentista; e no restante são apenas como quando finalmente se obtém com mil ardis essa revista. De facto, a grande maioria dos diários são parecidos entre si. Os seus autores, nomeadamente o cão, o tirano e a criança, têm um tipo reconhecível de opinião sobre si próprios, a saber, favorável. Em todos os diários é essa opinião que move o sol e as estrelas.

À força de ler diários tão parecidos, não é descabido concluir que tudo o que neles é narrado terá acontecido a uma única pessoa. Um autor poderá à primeira vista parecer-nos ser uma criança, ou um tirano ou um cão; mas, como numa festa da escola, todos os autores aparecem nos seus diários com bigodes, pantufas, camisas de noite e orelhas postiças que no fundo não enganam ninguém: serão com grande probabilidade a mesma pessoa. A suspeita é reforçada porque na maior parte dos diários não acontecem mais que dez ou onze coisas, e todas parecidas entre si: tirano na quinta, tirano no circo, criança no circo, cão mamã, cão de avião, tirano dona de casa, criança vai às compras.

A este panorama escapa o grande diário dos nossos dias: o Diário da República. Aquilo que lá vem registado em cada edição é tão variado que após lê-lo nunca alguém conceberá que duas pessoas se possam banhar duas vezes no mesmo circo, ou que exista um único cão. A razão é o processo técnico conhecido por autoria múltipla: dar a uma sociedade de escritores não-coordenados, muitos deles anónimos, a maravilhosa oportunidade de exprimirem o que lhes passa pela cabeça. Tudo neste processo contribui para sublinhar aquilo que as criaturas deste mundo não têm em comum; de sublinhar o singular com singularidade. A leitura do Diário da República espanta-nos com as coisas que acontecem; e com as pessoas a quem elas acontecem.

Ao ler todos os dias as duas séries do Diário da República repetimo-nos avisos, leis, preâmbulos, murmúrios de metafísicas, listas, reprimendas, rectificações e contas: coisas para a eternidade, coisas para ontem, e coisas para a semana que vem; registos e manifestos, atrasos e profecias. Que lindas vão neles as suas personagens, vindas de tantos lados, com os seus erros de ortografia e os seus falares regionais. O Diário da República é toda uma literatura. A sua prosa tem tudo para entusiasmar todos os que consideram vir a escrever um bom diário, ou que são tentados por uma carreira nas letras.

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