A peça de teatro mais famosa do mundo começa com a pergunta ‘Quem está lá?’.  Em Portugal, ao contrário de outros países, não teve efeitos na concepção de deliberação moral, ou no desenvolvimento da dramaturgia, mas antes no mundo das telecomunicações.  A interjeição primitiva de atendimento telefónico português (‘Está lá?’), que alguns de nós ainda usam, deriva dessa peça.  É uma pergunta telefónica fundamental.

Coloca-se a dúvida prática de saber como lhe responder.   Ao telefone, uma boa resposta implica ter aprendido a referirmo-nos eficazmente a nós próprios.   A cantora observou que ‘eu’ é o nome que normalmente uso para chamar por mim.  Poucas vezes porém chamamos por nós; e ‘eu’ não é um nome que facilite a nossa identificação por terceiros.  A locução ‘sou eu’ é improfícua e enfurecedora em assuntos de telefone, e devia ser reservada para as conversas mais sérias com Moisés.   Parece em consequência adequado usar um nome próprio, e frases na terceira pessoa do singular que o contenham.  Esse nome próprio tem porém de ser escolhido com cuidado, visto que pode calhar ser o nome próprio de outra pessoa, e prejudicar os nossos objectivos.

Há remédios.  Quando alguém não percebe quem está lá, vamos respondendo de outras maneiras até a outra pessoa perceber, ou até percebermos nós que não há remédio.   Podemos nesse processo declarar uma profissão, ou coordenadas geográficas, ou genealógicas.  ‘O actual rei da Dinamarca,’ ‘A senhora de Benfica,’ ou ‘O fantasma do seu pai’ são exemplos de descrições usadas comummente ao telefone.  Apenas no caso de não produzirem efeito teremos de referir sinais particulares: óculos, corcundas ou locais de veraneio.   A pergunta ‘Está lá?’ quase nunca fica sem resposta.

A pergunta funciona inegavelmente na prática; mas pode acontecer que a prática não funcione aceitavelmente em teoria.   Os adolescentes e os investigadores ociosos são quem gosta mais de fazer perguntas teóricas.  Porque me é perguntado se eu estou?   E estou?   E se estou, como passei eu a estar? Acontece-me estar, ou decidi estar?  E que haverei de responder quando não estou?   As perguntas teóricas abrem possibilidades vertiginosas; e assim promovem uma sensação de náusea.   Todos os jovens investigadores se sentem intuitivamente atraídos por aquelas matérias.

As questões de atendimento telefónico são um assunto delicado de inquérito teórico, e por isso nunca podem ser bem tratadas ao telefone, ou confiadas a companhias de telefone, não vá outras pessoas estarem a ouvir.   É-lhes necessária uma situação de confinamento solitário, que só existe nas nossas vidas durante um curto período, e que só muitas horas de lazer podem permitir.   A peça de teatro que deu origem à pergunta telefónica que agora causa perplexidade aos investigadores é o modelo do seu inquérito.   Nessa peça conta-se em pormenor o que aconteceu a um jovem investigador com inclinações teóricas que decidiu ocupar o melhor do seu ócio a tentar responder à pergunta ‘Quem está lá?’.

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