Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.

Angustiada pelo seu amado transportar o nome Montéquio, Julieta questiona: “What’s in a name?”.  Afinal, diz-nos a fidalga da casa Capuleto, não teria a rosa o mesmo doce cheiro acaso o seu nome fosse outro? E não manteria Romeu a sua divina perfeição sem aquele nome inimigo? É bem provável. Aliás, por princípio, no que diz respeito a tragédias, tendo a concordar com o Bardo. Ironicamente, os escolhos ao amor dos jovens residem justamente no nome das respetivas famílias. Não é raro um nome ser mais do que um nome. Um nome é bastas vezes uma história, e proferi-lo é o suficiente para convocar a memória e o passado.

Pronunciar Holocausto é evocar um horror cujas palavras serão sempre insuficientes para descrever. Não se trata de um simples nome, mas de um período da História encerrado em quatro sílabas. Até então, Holocausto talvez levasse a rememorar os sacrifícios de bestas aos deuses da antiguidade clássica ou a Yahweh. Dita hoje, o nome lembra o tempo em que um povo perguntou onde estava Deus quando homens modernos tentaram, através de uma eficácia burocrática e bestial, a sua extinção.

Pela importância daquele nome, outro termo ergueu-se: negacionista. Justamente para designar os que negavam, e negam, a existência do Holocausto; dos campos de extermínio nazis; e um plano cujo objetivo – a solução final – era a aniquilação completa de um povo. E se em muitos casos a abjeção serve propósitos de propaganda política de partidos pouco recomendáveis, ou deriva de uma profunda ignorância atrevida, nem por isso deixa de ser perpetrada em círculos bem-pensantes. Para os interessados, recomendo a leitura do livro de Richard J. Evans, Telling Lies About Hitler: The Holocaust, History and the David Irving Trial. Bastará dizer que durante muitos anos David Irving foi um respeitado historiador britânico. Felizmente, já não o é.

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A ubíqua utilização do termo negacionismo e negacionista a propósito da Covid19 e da vacinação vulgariza um termo carregado de um específico sentido histórico – e moral. Aqueles termos, empregues sem critério nem distinção, contribuem para uma discussão pública agreste e ressentida, e em alguns casos não permite sequer que exista. O que sucede, de resto, com o apodo fascista dirigido àqueles que não alinham com uma determinada visão e ideia da sociedade. Também este nome pouco ou nada deve à sua origem e conteúdos italianos onde de facto se implantou um regime fascista. Mas serve eficazmente para desqualificar um adversário e assim evitar a maçada de discutir ideias.

Mas se já não vamos a tempo de evitar a erosão do termo, importa, pelo menos, esclarecer quem se subsume à categoria do novel negacionismo. Não há país que não tenha o seu quinhão de alienados da realidade, histriões que aproveitam qualquer oportunidade para subir ao palco, propensos patológicos à crença em conspirações mundiais ou simples almas crédulas à mercê de qualquer dos anteriores.

Pessoalmente, desde que não resulte em baderna, não tenho qualquer problema com a excentricidade. Sem a possibilidade de a expressar, dificilmente um país se poderá considerar livre. Existe gente que acredita que a Terra é plana e a ida do Homem à Lua um embuste – filmado num recôndito estúdio de Hollywood. Portanto, neste ponto não há nada de novo debaixo do sol.

Mas até pelo efeito – perdoem o paternalismo – pedagógico e instrutivo é necessário que pessoas sabedoras da doença e dos efeitos da vacina e da sua aplicação discutam com quem à partida parece não merecer atenção. Servindo-se justamente de argumentos fundados em factos sólidos, provas e demonstrações científicas, clareando o ambiente brumoso da conspiração, alienação e patetice. Isto é a civilização. Por aqui ainda está em fase de gestação.

O uso voluntarioso do epíteto negacionista, sobretudo por uma comunicação social desleixada e, não raras vezes, deplorável, tem um efeito particularmente pernicioso. Ao invetivar com aquele termo todos os que não recitam fervorosamente uma determinada cartilha propagandeada pelo governo e por silêncio ou omissão sancionada por grande parte da oposição, oblitera-se uma importante discussão do espaço público.

Uma porção substancial das políticas seguidas pelo governo são, isso mesmo, medidas de conteúdo político. Determinações que limitam a liberdade individual, que beliscam a autonomia da vontade, que constrangem a atividade económica ou até aquelas que, tendo uma natureza mais técnica, implicam uma opção política. Exemplo? A vacinação de adolescentes dos 12 aos 15 anos. Não existe – pelo menos à hora em que escrevo – um consenso científico quanto à efetiva utilidade de vacinar essa faixa etária. Daí que a implementação desse processo tenha divergido entre países. Estamos, em grande medida, no domínio da política e não simplesmente em seguir prudentemente o que os especialistas recomendam.

Perante a incerteza, que é uma das constantes da ciência, é à política que cabe decidir, assumindo os riscos que poderão advir. Discutir a pertinência, necessidade e proporcionalidade de medidas governamentais não pode ser tratado como negacionismo. Mas, desinformada por uma comunicação social que utiliza indiscriminadamente o termo para designar magistrados desprovidos de lóbulo frontal e cidadãos que pretendem discutir e escrutinar a bondade das políticas governamentais, a opinião pública tende a ver todos como sendo, lá está, negacionistas.

E estes últimos acabam assim por receber tratamento igual ao dos primeiros. E a passar por gente desprovida de senso, quando, ironicamente, mandaria a prudência e o bom senso que houvesse discussão pública, aberta e serena sobre o que se fez e faz no combate à pandemia. O que se assistiu – e é provável que assim continue – foi à negação de uma discussão política e cívica séria, o que naturalmente empobrece uma democracia. Com todos os perigos que me dispenso a inventariar.

Suspeito que à pergunta “What’s in a name?” não possamos responder como Julieta. Fora das tragédias de palco, há nomes que são muito mais do que palavras: são quase ações que determinam, não raras vezes, tragédias reais.