1Na próxima sexta-feira, 24 de Fevereiro, será assinalado um ano após o início da infame invasão da Ucrânia pela Rússia. Naquela data, no ano passado, grande parte dos analistas previa a vitória da Rússia em poucos dias, no máximo, em poucas semanas.

Surpreendentemente, a Ucrânia resistiu com heróico patriotismo. E a surpreendente resistência ucraniana foi acompanhada por um também surpreendente renascimento do espírito de unidade — europeia, atlântica, ocidental — contra a infame invasão da Ucrânia pela Rússia czarista-comunista do sr. Putin.

Este é sem dúvida o momento para reflectir sobre os tremendos desenvolvimentos do último ano — e é um facto muito louvável que a melhor imprensa nacional e internacional esteja precisamente a promover essa reflexão.

2Entre nós, o meu querido Amigo e Colega Miguel Monjardino acaba de publicar um livro de vasto alcance para esta reflexão estratégica. Diz ele, numa síntese particularmente desafiante:

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“Uma das nossas ilusões desde o final da Guerra Fria em 1989 e o colapso da União Soviética em 1991 foi acreditar que o futuro das democracias liberais estava assegurado e que a rivalidade entre as grandes potências era mesmo uma coisa do passado. Muitos, com importantes responsabilidades políticas na Europa, também pensaram que a guerra tinha deixado de ser possível na Europa. Putin pôs fim a todas estas ilusões. Em Pequim, a Guerra Fria e a competição ideológica, tecnológica e económica com as democracias liberais nunca terminou.” (Por onde Irá a História? O desequilíbrio do sistema internacional e o futuro da geopolítica, Clube do Autor, 2023).

3Um dos elementos centrais nas ilusões ocidentais recordadas por Miguel Monjardino está, em meu entender, no enfraquecimento da ideia de Ocidente e de orgulho na distintiva tradição ocidental. Este enfraquecimento, quando não mesmo hostilidade activista, emerge curiosamente de dois sectores que se apresentam como rivais: a chamada esquerda “woke” e a chamada direita “autêntica”. Ambos acusam as democracias liberais do Ocidente daquilo a que chamam “dominação oligárquica e elitista”.

Mas o Ocidente existe e tem pelo menos uma especificidade crucial que é incompreensível para os tribalismos rivais que o atacam: o Ocidente não assenta numa doutrina monista oficial ditada pelo estado, mas, pelo contrário, assenta numa conversação pluralista permanente entre várias vozes e várias propostas, muitas vezes diferentes, algumas vezes rivais. Esta ideia de conversação — herdada de Atenas, Roma e Jerusalém — está hoje centralmente presente nos princípios da liberdade de expressão e de soberania do Parlamento. Mas é na ideia de Universidade — a mais antiga instituição ocidental — que a ideia de conversação a várias vozes, na busca da Verdade, do Bem e do Belo, sempre distinguiu antes de mais o Ocidente.

4Ora é precisamente na Universidade que encontramos hoje um campo de batalha preferido dos tribalismos rivais da esquerda woke e da direita autêntica. Num excelente Editorial da edição de 11 de Fevereiro (pp. 9-10), a distinta revista britânica The Economist dá vários exemplos de tentativas rivais de “vencer debates através do controlo das instituições onde esses debates deveriam ter lugar”. (A chamada de capa para este artigo intitula-se “Academic Thought Police”).

Nas inúmeras instituições da Universidade (estatal) da Califórnia, por exemplo, a contratação de professores não está agora apenas dependente da qualidade académica. Exige ainda a assinatura de uma declaração de “Diversidade, Equidade e Inclusão” (o chamado “DEI Statement” — que na verdade se resume a uma cartilha ideológica politicamente correcta promovida pela esquerda woke. Em contrapartida, recorda ainda The Economist, sectores da chamada direita autêntica tentam proibir nas Universidades dos estados onde detém maioria legislativa o ensino das chamadas “critical-race theories” (a revista cita, entre outros, o caso da Flórida).

5Sintomaticamente, tivemos também nas últimas semanas conhecimento de um outro caso de conformismo politicamente correcto, (a que voltarei com mais detalhe num próximo artigo): o livro do distinto professor de Oxford Nigel Biggar, intitulado Colonialism: A Moral Reckoning, acaba de ser publicado pela editora William Collins e amplamente elogiado na imprensa de língua inglesa pelo seu rigor académico e pelo sentido de equilíbrio e moderação.

Acontece apenas que o livro tinha sido inicialmente aceite (ou mesmo encomendado) pela editora Bloomsbury — que depois o cancelou, ao que parece devido aos protestos de jovens funcionários da editora. Protestos semelhantes tinham acontecido em Oxford, em 2017, quando Nigel Biggar tinha iniciado o projecto “Ethics and Empire”, que viria a dar origem ao livro. Foi na altura dito por vários activistas que “qualquer tentativa de criar um balanço comparativo entre bem e mal do império não pode ser fundada em rigor académico” (citado por Literary Review, Fevereiro de 2023, p. 6; uma estimulante entrevista/debate do autor com o jornalista Mathew Parris pode ser lida na revista The Spectator de 4 de Fevereiro, pp. 20-23).

6Voltando ao tema inicial deste texto, a passagem de um ano sobre a infame invasão da Ucrânia deve ser marcada por uma reflexão estratégica alargada. Nessa reflexão parece-me crucial recordar os princípios fundadores do Ocidente liberal e democrático — bem como as ameaças, externas e também internas, que esses princípios enfrentam.

Sobre as ameaças internas, oriundas de tribalismos rivais, vale a pena recordar as palavras de The Economist:

“Partidários em ambos os lados parecem indecentemente desejosos de criar instituições separadas para liberais e para conservadores. (…) Sem dúvida que isto faria felizes ambas as tribos rivais. Mas seria um desastre para o país. A democracia depende de cidadãos que consigam encontrar compromissos. O liberalismo depende da capacidade de levar a sério o argumento de um oponente e de aprender com ele. A América [e o Ocidente em geral, acrescentaria eu] precisa de instituições que possam ter estes debates, em vez de incubadores monoculturais de ideologias mutuamente exclusivas.” (Edição de 11 de Fevereiro, p.10).

Post scriptum: Homenagem a João Salgueiro (1934-2023). Não é possível em poucas palavras resumir a profunda dívida de gratidão que Portugal tem para com João Salgueiro, que nos deixou na passada sexta-feira. Foi um exemplo de integridade pessoal e sentido de dever, de comprometimento com os ideais democráticos e liberais do Ocidente, um católico pioneiro na tentativa de transição pacífica do antigo regime para a democracia. Tive o privilégio de o conhecer pessoalmente, bem como sua mulher encantadora, Maria Idalina Salgueiro (que tinha sido colega de minha mãe na licenciatura no ISCEF, nos idos anos de 1950, creio que havia apenas três mulheres nesse curso). Com lágrimas nos olhos, recordo que fui educado desde criança, à mesa de jantar, sempre de casaco e gravata (“à inglesa”, como se dizia em minha casa) a ouvir elogios enfáticos ao casal João e Maria Idalina Salgueiro. Tive depois o privilégio de os conhecer pessoalmente, primeiro no âmbito da SEDES, de que ambos foram fundadores, bem como no Centro Nacional de Cultura, depois no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica e na revista Nova Cidadania, que ambos apoiaram enfaticamente desde o início. Com eterna saudade, faço votos de que a memória do seu exemplo pessoal possa perdurar entre nós.