1 Perante a bárbara invasão da Ucrânia pela Rússia, vários analistas continuam a (literalmente) inventar os mais pobres argumentos para evitar ou atenuar a condenação daquela infame invasão da Ucrânia pela Rússia.

Uns têm discutido se a Rússia e a Ucrânia são de direita ou de esquerda. Alguns chegaram a dizer que, dado que ambas se designam anti-nazis, a diferença não deve ser ideológica — e que, por isso, os argumentos de ambos os lados devem ser relativamente equivalentes.

Com base em premissa semelhante — de que os motivos de cada parte serão relativamente equivalentes — esses e outros analistas insistem que a preocupação central deveria ser promover um compromisso entre a Rússia invasora e a Ucrânia invadida. Chamam a esse compromisso entre invadidos e invasores a “causa da paz”, a que outros chamam ‘pensamento complexo’.

2 Contrariamente a esses preconceitos — que enfaticamente considero terceiro-mundistas e iliberais —gostaria de recordar alguns argumentos bastante simples.

Em primeiro lugar, a diferença crucial entre a Ucrânia e a Rússia é que a Rússia invadiu brutalmente a pacífica Ucrânia. Essa é a diferença crucial.

Mas também existe uma outra diferença ideológica profunda e crucial — que fundamentalmente explica por que motivo a Rússia invadiu brutalmente a Ucrânia.

A Ucrânia quer ser uma democracia e quer pertencer ao mundo democrático da União Europeia e da NATO — usualmente designado pelas direita e esquerda radicais como “oligarquias capitalistas e globalistas”. A Rússia (tal como a China) considera a UE e a NATO (alegadamente “capitalistas e globalistas”) como seus inimigos cruciais.

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3 Cabe então perguntar: a NATO e a UE são de direita ou de esquerda? A resposta, em meu entender, deve ser inequívoca e enfática: são simultaneamente de direita e de esquerda, pela simples óbvia razão de que assentam em regimes fundados na concorrência leal entre partidos rivais — de direita e de esquerda democráticas — todos respeitando a soberania do Parlamento sob a regência das leis.

A isto, os partidos radicais, da direita e da esquerda, chamam “sistemas oligárquicos (ou capitalistas) que é preciso denunciar”. Mas vale a pena recordar que estes “sistemas oligárquicos ou capitalistas que é preciso denunciar” são precisamente aqueles que estão a apoiar a Ucrânia invadida contra a Rússia invasora.

4 Por outras palavras: não sei se a Rússia é de direita ou de esquerda. Sei que é uma ditadura sem concorrência leal entre direita e esquerda. E sei que as democracias da NATO e da União Europeia se distinguem da Rússia e da China por se fundarem na concorrência livre e civilizada entre direita e esquerda democráticas.

5 Winston Churchill, quando heroicamente defendeu a democracia ocidental contra as primitivas e anti-ocidentais ditaduras comunista e nazi — que em infame aliança invadiram a pacífica Polónia em Agosto/Setembro de 1939 — não defendeu a direita ou a esquerda. Falou em nome de ambas e da concorrência civilizada entre elas.

Defendeu precisamente que o regime demo-liberal ocidental é fundado na concorrência leal entre direita e esquerda democráticas. Ele próprio, aliás, foi inicialmente deputado Conservador (entre 1900 e 1904) depois Liberal (entre 1904 e 1924) e depois de novo Conservador (até Setembro de 1964, tendo morrido em Janeiro de 1965). Foi assim que ele descreveu a oposição entre democracia liberal ocidental e ditadura comunista e/ou nazi-fascista:

“Entre as doutrinas do camarada Trotsky e as do dr. Goebbels, deve haver espaço para cada um de nós, e mais umas quantas pessoas, cultivarmos as nossas próprias opiniões […] Não temos nós uma ideologia — se tivermos de usar essa palavra horrível, ‘ideologia’ — não temos nós uma ideologia própria na liberdade, numa Constituição liberal, no governo democrático e parlamentar, na Magna Carta e na Petição de Direitos?”

6 (Sir) Karl Popper [autor do célebre A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (1945)] uma vez disse-me em sua casa, em Kenley, a sul de Londres,— onde tive o prazer e privilégio de o visitar trimestralmente, ao longo dos quatro anos de doutoramento em Oxford (1990-1994), sob a supervisão do seu antigo aluno (Lord) Ralf Dahrendorf :

‘Mesmo que, muito improvavelmente, uma eleição desse apoio unânime a um só partido, teríamos imediatamente de inventar um outro. O regime parlamentar ocidental precisa de pelo menos dois partidos: um governa, o outro controla o governo e tenta ganhar as próximas eleições. Foi este regime liberal democrático que Churchill defendeu e foi esse ideal que nos salvou da barbárie nazi-comunista-fascista’.

Vim depois a aprender, sob orientação de Popper e de Dahrendorf, que Edmund Burke tinha defendido um argumento muito semelhante no Parlamento britânico no século XVIII — defendendo o pluralismo reclamado pelos colonos americanos, em seguida condenando o despotismo da revolução francesa e ainda condenando (em nome do pluralismo do Império Britânico) o centralismo do governador da Índia, Warren Hastings.

Popper — que era austríaco, exilado durante a II Guerra na Nova Zelândia, depois recebido na LSE em Londres — tinha uma admiração e gratidão imensas para com Churchill e a tradição liberal-democrática britânica, que ele via como exemplares defensores da cultura pluralista europeia e ocidental. Estou imensamente grato por essa admiração pela democracia liberal que Popper e Dahrendorf (alemão e britânico) me ensinaram para sempre (e que, em boa verdade e imensa gratidão, eu tinha sido educado a admirar em casa de meus pais e de meus avós — eles próprios com pluralistas preferências políticas — durante a atávica ditadura monista do chamado “Estado Novo”).

7 Ralf Dahrendorf, vale a pena recordar, tinha sido preso pelos nazis com 15 anos de idade. O seu pai, Gustav Dahrendorf, líder do partido social-democrata alemão, fora também preso pelos nazis. Após o fim da guerra, seu pai foi também preso pelos comunistas na Alemanha de Leste (chamada ‘democrática’) — porque se opôs a qualquer tipo de negociações com os comunistas para fundir com eles o partido social-democrata alemão. Foi finalmente libertado por pressão intransigente dos ingleses e dos americanos.

O seu filho, Ralf Dahrnedorf, como líder do partido liberal na Alemanha ocidental, foi depois membro do Governo de coligação social-democrata/liberal, depois Comissário Europeu pela Alemanha ocidental, a seguir reitor da LSE, depois reitor do St. Antony’s College em Oxford (onde tive o privilégio de o ter como supervisor de doutoramento), finalmente membro da House of Lords — onde fundou um pluralista ‘Club for the preservation of a non elected House of Lords’.

8 Foi em nome destes valores das democracias pluralistas ocidentais, herdeiras de Atenas, Roma e Jerusalém — e não em nome da direita ou da esquerda — que Churchill disse no Parlamento britânico, a 4 de Junho de 1940 (quando aliás liderava há menos de um mês, como Primeiro-Ministro Conservador, um Governo de Aliança Nacional entre Conservadores, Trabalhistas e Liberais):

“Apesar de largas partes da Europa e de muitos antigos e famosos Estados terem caído ou poderem cair nas garras da Gestapo e de todo o odioso aparato nazi, nós não vacilaremos.

“Iremos até ao fim. Combateremos em França, combateremos nos mares e nos oceanos, combateremos no ar, com crescente confiança e crescente força, defenderemos a nossa Ilha, qualquer que seja o seu custo.

“Lutaremos nas praias, lutaremos nos campos de aterragem, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas montanhas. Nunca nos renderemos! “

9 Em suma: estamos dispostos a negociar com a infame Rússia invasora da Ucrânia? Talvez. Mas, antes disso e fundamentalmente, como disse Churchill, convém que eles saibam que nunca nos renderemos!

Post Scriptum: 650 anos da Aliança Anglo-Portuguesa. Realiza-se nesta próxima quarta-feira, 16 de Março, uma Recepção na residência do Embaixador Britânico em Lisboa, HE Cristopher Sainty, para assinalar o início das comemorações da mais antiga aliança do mundo, ainda em vigor: a aliança anglo-portuguesa iniciada pelo Tratado de Tagilde (Braga), a 10 de Julho de 1372, consagrada em Londres no ano seguinte, a 16 de Junho de 1373, e ratificada pelo Windsor Treaty de 1386. Talvez seja uma boa ocasião para iniciar uma reflexão sobre a mais antiga aliança do mundo ainda em vigor — tão ignorada pelo “ópio dos intelectuais’, como lhe chamou Raymond Aron, ele próprio um Anglófilo convicto, director em Londres durante a guerra da revista da Resistência francesa La France Libre, amigo pessoal de Karl Popper e Ralf Dahrendorf.