Passados os “heróicos” anos mais difíceis da pandemia, voltaram os velhos problemas. Apesar de mais controlada, a pandemia ainda não desapareceu. Os heróis, aparentemente, sim. Urgências encerradas temporariamente — em vários locais e abrangendo diversas especialidades —, consultas externas com tempos de acesso insuportáveis, listas de espera cirúrgica em crescendo, muitos cidadãos sem médico de família, exames complementares com marcação e realização incerta. Há quem descreva o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como o caos. 

Apesar de tudo, é um exagero. Todos os dias, por todo o país, em hospitais e centros de saúde, são realizados milhares de atos médicos, de enfermagem e outros. Todos os dias são salvas vidas, é aliviado o sofrimento e concedida esperança a muitos de nós.
Apesar de tudo, o SNS ainda vive e não está ligado às máquinas, como em voz corrente se diz de quem se encontra em situação desesperada. 
 
Apesar de tudo, os portugueses têm um SNS universal e tendencialmente gratuito.
 

Mas, não sendo, ainda, a imagem do caos, o SNS tem muitos e graves problemas a necessitar de intervenção urgente e decidida. Para os políticos, aqueles que temos, a narrativa oficial em tempos de maior crise, de maior impacto dos problemas na opinião pública — melhor, no eleitorado — está na falta de médicos. Haja quem lhes diga que o maior, o grande problema do SNS, está numa falta, sim, mas de políticos. De políticos que tenham ideias — mais que ideias que tenham ideologia, que tenham um propósito, um projeto e a vontade corajosa de implementar as medidas concretas que dão corpo às intenções. 

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Entre os políticos que temos e os seus partidos, há uma expressiva união nacional de discursos quanto ao SNS. “A defesa do SNS” transformou-se num mantra repetido, entoado, mas sem conteúdo. Na metade esquerda da união, completa-se o ritual excomungando o setor privado e social, à direita faz-se o mesmo, transformando a excomunhão em adoração. Mas, nem a esquerda assume medidas concretas que combatam o peso crescente dos privados, nem a direita apresenta soluções consistentes que permitam integrar os privados no SNS sem desvirtuar a sua essência.

E, entretanto, acumulam-se os problemas no SNS, mas não só. Paradoxalmente, ou talvez não, o setor privado cresce além das suas próprias capacidades. A degradação do SNS promoveu a expansão dos seguros de saúde, dos que cobrem e cobram muito aos que, cobrando pouco, cobrem ainda menos. Com os seguros, os subsistemas, mais os desencantados e desesperados da saúde pública, chegam problemas semelhantes aos do SNS: tempos de espera prolongados, diminuição da qualidade do serviço, desumanização. 

Com duas agravantes fundamentais e preocupantes. Primeiro, a qualidade do seguro ou subsistema. Isto é, o valor que o privado recebe por cada ato, como fator de desequilíbrio no acesso aos cuidados. Depois, o final do plafond ou do dinheiro na conta de cada um como critério de transferência para o hospital público. Não acredito que seja isto que a direita pretende, não acredito que seja isto que a esquerda queira tolerar por inação. Até nem acredito que seja isto que os próprios administradores dos grupos privados querem, enredados que estão numa crise de crescimento difícil de controlar.

Tenho para mim, pois, que nos faltam políticos. Faltam-nos à Esquerda, faltam-nos à Direita. Falta-nos quem, à esquerda, assuma que o estado atual do SNS impõe medidas radicais. Quem proponha a requisição ao setor privado e social de todos os profissionais de saúde essências ao seu regular funcionamento, quem defenda a dedicação exclusiva dos médicos do SNS como princípio, quem defenda que, após a sua formação, os médicos devam permanecer obrigatoriamente no SNS durante 10 anos, sob pena de serem impedidos de exercer a sua profissão se assim o não fizerem. Mas também quem prometa intervir na gestão dos hospitais privados de forma a defender o direito universal à saúde, quem adote uma gestão do SNS mais centralizada, de âmbito nacional. 

Falta-nos à Direita quem se apresente a eleições propondo a contratualização com o setor privado e social de todas as consultas, cirurgias e exames que o SNS não consiga realizar em tempo clinicamente aceitável, definindo este com prazos curtos. Mas também quem defenda que todos os cidadãos que não tenham médico de família atribuído possam tê-lo recorrendo aos privados, que a gestão dos hospitais e centros de saúde seja privada, através de concurso público, mantendo o Estado o papel financiador e fiscalizador e que os profissionais de saúde sejam remunerados por objetivos, com prémios de produtividade, e não através de tabela única.

E haja ao centro quem argumente que o SNS é mais, muito mais do que ir gerindo os dias e as carreiras, mantendo tudo como está, esperando que o último, o que vai fechar a porta, seja outro.

Para aqueles, como eu, que iniciaram o seu curso em 1979, ano da criação do SNS, e se vêm a entrar na reforma ao lado de um SNS doente, moribundo se continuar a faltar a ousadia e a coragem à classe política, começa a sobrar o desencanto e a faltar a esperança. 
 
Que venha a esquerda radical, que venha a direita liberal, que venha o centro reformista. Tudo é melhor que o marasmo ou, parafraseando António Guterres, o pântano em que a política se transformou.