1 Os malefícios das leis turbo

Tal como agora é prática nos maços de tabaco, as leis turbo deveriam conter imagens deliberadamente chocantes que preveniriam os cidadãos dos seus elevados riscos e poriam os tribunais de atalaia.

A legislação repentista, escrita sobre o joelho, é seguramente mais velha que o primeiro motor turbo, mas alcançou, nas últimas semanas, um ritmo vertiginoso que é muito difícil de acompanhar e tem efeitos nocivos na saúde de pessoas e empresas.

Já sabíamos o que era ter um Presidente Turbo, mas a pandemia de Covid-19 trouxe‑nos outrossim um Legislador Turbo, frenético e imparável.

Em poucos dias (quando não horas) inúmeros diplomas do Governo e da Assembleia da República passaram do plano verbal das intenções ao Diário da República. Os exemplos sucedem‑se, como o da Portaria n.º 71‑A/2020, de 15 de março, que criou um original regime de lay-off que (segundo o Primeiro‑Ministro) não era bem um lay‑off, uma vez que os trabalhadores continuariam a trabalhar em vez de verem os seus contratos de trabalho suspensos, mas que, retificada ainda uma vez, acabou simplesmente revogada, após 11 escassos dias de vigência, por um Decreto‑Lei que aprovou um regime de lay‑off simplificado… Confuso? É muito natural, mas este caso terá de ficar para uma outra ocasião.

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Dedico estas linhas (e o seu título) à recém‑publicada Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril, que adiante designarei Lei Turbo, que aprovou o Regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia Covid-19, em especial à solução estipulada para os arrendamentos comerciais e para “outras formas contratuais de exploração de imóveis para fins comerciais”, onde se incluem designadamente os contratos de utilização das lojas dos centros comerciais.

Se recordarmos, por um momento, os símbolos que habitualmente representam a justiça – a balança como símbolo da equidade e ponderação e uns olhos vendados que nos asseguram uma lei igual para todos e um juiz objetivo e imparcial, que não se deixa influenciar – o Diário da República de 6 de abril que publicou a referida Lei n.º 4-C/2020 poderia ter como imagem de capa a garbosa deusa Jūstitĭa, de olhos bem abertos, segurando, com dificuldade, uma pesada balança de dois pratos com o fiel da balança a indicar que todo o peso repousa apenas num deles.

2 A Proposta de Lei Turbo

A referida lei teve a sua génese na Proposta de Lei n.º 21/XIV do Governo, a PdL Turbo. Vejamos:

26 de março: no comunicado do Conselho de Ministros, o Governo anunciou ter aprovado uma Proposta de Lei que criaria um regime excecional e temporário de mora no pagamento de rendas habitacionais e não habitacionais e a intenção de agendar a sua discussão para a Reunião Plenária da AR do dia 2 de abril;

30 de março: depois de alguns dias sem sabermos o seu paradeiro (atrevo‑me a dizer que ainda estaria a ser redigida), a PdL Turbo deu entrada no Parlamento;

1 de abril: vários grupos parlamentares apresentaram propostas de alteração à PdL Turbo. Presumivelmente na conferência de líderes que ocorreu nessa tarde, a discussão da PdL Turbo foi agendada para a Reunião Plenária da manhã seguinte;

2 de abril: num único dia, a PdL Turbo (i) foi discutida e aprovada na generalidade (ii), votada na especialidade, com rejeição de todas as propostas de alteração apresentadas, com exceção de três (duas normas que foram alteradas sob proposta do PS e uma outra sob proposta do BE), (iii) votada e aprovada em votação final global, apenas com os votos do PS e a abstenção de todos os demais grupos parlamentares (iv) e, finalmente, ainda viu dispensada a redação final e o prazo para apresentação de reclamações contra eventuais inexatidões.

3 de abril: o Decreto da Assembleia da República foi enviado para promulgação e promulgado (no próprio dia) pelo Presidente da República;

6 de abril: devidamente referendada, foi enviada para a INCM e publicada no Diário da República.   

Já diz o Povo que depressa e bem, não há quem e a Lei Turbo não o desmerece.

3 Uma lei que trata igualmente o que é profundamente desigual

A Lei Turbo prevê uma moratória para o pagamento das rendas relativas aos meses em que vigore o estado de emergência bem como ao primeiro mês subsequente, devendo o pagamento ser feito no prazo de 12 meses contados do termo desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda de cada mês.

Embora haja diferenças nos pressupostos, a solução é rigorosamente a mesma para os inquilinos habitacionais e para os estabelecimentos comerciais que foram obrigados a suspender a sua atividade, onde se incluem arrendamentos comerciais e também os suprarreferidos contratos das lojas dos centros comerciais.

A solução adotada para os arrendamentos habitacionais, que faz depender o recurso à moratória de uma quebra dos rendimentos do agregado familiar superior a 20% (face aos rendimentos do mês anterior ou do mês homólogo) que simultaneamente coloque a taxa de esforço com a renda acima dos 35%, além de prever um apoio para inquilinos e senhorios sob determinadas condições, é um pouco tosca, mas compreensível. O inquilino habitacional mantém a utilização plena do locado (na verdade, com tantas pessoas ausentes das escolas e do seu trabalho, as casas estão a ser mais utilizadas que nunca…) e se é verdade que este pode ser seriamente afetado nos seus rendimentos pelos efeitos desta pandemia, não creio que possa furtar‑se, legitimamente, ao cumprimento da sua obrigação de pagamento da renda.

Nada disso se verifica nos arrendamentos comerciais (e nos contratos de utilização das lojas dos centros comerciais). A Lei Turbo apenas abrange estabelecimentos que foram obrigados a suspender a sua atividade por determinação legislativa ou administrativa: (i) estabelecimentos abertos ao público destinados a atividades de comércio a retalho e de prestação de serviços e (ii) estabelecimentos de restauração e similares (ainda que mantenham atividade para efeitos exclusivos de confeção destinada a consumo fora do estabelecimento ou entrega no domicílio).

Por conseguinte, estão em causa somente estabelecimentos comerciais impedidos de manter a sua porta aberta, de usar a sua loja para o fim contratado.

Para este conjunto de empresas não está em causa uma quebra de rendimento de 20% ou 30% ou uma taxa de esforço com a renda de 35% ou 40%, como poderá acontecer nos inquilinos habitacionais. Na esmagadora maioria dos casos, as receitas com estas lojas caíram 100% e o valor da renda é, por isso, superior (infinitamente superior) ao valor das vendas, que é nulo…

Como escreveu há algumas semanas o meu querido amigo e ilustre Professor de Economia e Finanças Públicas, Fernando Rocha Andrade, “a recessão de 2009 era inevitável. O prolongamento dessa recessão por vários anos era evitável e foi estúpido. Da mesma forma, face às medidas tomadas para conter a pandemia, a recessão neste ano é igualmente inevitável. O prolongamento da recessão na Europa, para os anos posteriores ao fim da emergência sanitária, é evitável e, se acontecer, será igualmente estúpido.”

Ora, se as medidas tomadas pelo Governo e pela Assembleia da República se destinarem apenas a aliviar temporariamente a tesouraria das empresas que estão sem receitas por se encontrarem impedidas de exercer a sua atividade, a sobrevivência destas continuará irremediavelmente comprometida quando o efeito daquelas medidas cessar. Perderemos, escusadamente (e estupidamente), muitas empresas, postos de trabalho e receita fiscal.

No chamado regime de lay-off simplificado que o Governo aprovou no mês de março, o empregador, o trabalhador e a Segurança Social partilham as consequências negativas da atual crise empresarial com o objetivo de manter os postos de trabalho. Pelo contrário, a solução de mero diferimento do pagamento das rendas dos estabelecimentos comerciais que estão encerrados coloca todo o esforço sobre os ombros do comerciante, pondo em causa a sua viabilidade económica, o que acabará por destruir os mesmos postos de trabalho que, através do regime de lay‑off, se tentou debalde preservar.

Em condições normais, as rendas suportadas pela maioria dos milhares de pequenos e médios empresários que desenvolvem a atividade comercial (venda de bens ou serviços) representam uma taxa de esforço muito elevada na sua conta de exploração. Com a moratória agora aprovada, as rendas correspondentes ao período de inatividade continuarão a ser integralmente devidas, somando‑se aos encargos que se vencerão no referido período de 12 meses: exemplificando, se o arrendatário diferir o pagamento de 3 rendas neste período de emergência, nos 12 meses seguintes terá de suportar um aumento dos seus encargos em 25%.

Escusado será dizer que a maioria dos estabelecimentos comerciais não terá condições para suportar um aumento de 25% dos seus encargos com arrendamento no ano subsequente a este período de emergência. Governo e Presidente da República já nos preveniram – ainda que não fosse um grande segredo –, que o próximo ano será muito difícil e que uma parte das medidas de contenção do surto de COVID-19 ter‑se‑á de manter enquanto não for disponibilizada uma vacina. Na verdade, o Ministro das Finanças vaticinou, como melhor cenário, que a economia irá necessitar de pelo menos dois anos para retomar o patamar alcançado em 2019.

Por outro lado, o mero diferimento do pagamento das rendas é uma solução iníqua, uma vez que o arrendatário está impedido de utilizar o imóvel para o fim contratado por razões que não lhe são imputáveis. As circunstâncias em que as partes fundaram os seus compromissos sofreram uma alteração anormal que não está coberta pelos riscos próprios do negócio, pelo que a exigência de que o lojista cumpra integralmente a sua obrigação de pagamento da renda, tolerando‑se apenas a mora, afecta gravemente os princípios da boa‑fé.

Se tivesse havido uma discussão real da Proposta de Lei e uma ponderação da equidade das suas soluções, as diferenças entre a situação dos inquilinos habitacionais e comerciais seriam evidentes e a Lei Turbo teria tratado diferentemente o que é efetivamente desigual – equilibrando, assim, os pratos da balança entre proprietários e inquilinos comerciais.

Lamentavelmente, assim não sucedeu: a proposta entrou na AR no dia 30 de março e foi aprovada na manhã do dia 2 de abril, sem tempo para audições ou consultas de qualquer espécie, com os votos de um único partido e a abstenção de todos os demais (importa dizer que nenhuma das dezenas de propostas de alteração apresentadas pelos outros partidos na discussão na especialidade – e que foram rejeitadas na respetiva votação – modificava a solução de diferimento das rendas no arrendamento comercial, apenas merecendo uma referência a proposta de alteração do artigo 8.º assinada pelo Bloco de Esquerda, que concedia aos arrendatários comerciais 36 meses para pagamento das rendas em mora).

4 A aplicação da Lei Turbo aos contratos de utilização de loja em centro comercial

Considero inquietante que haja cartas de entidades gestoras de centros comerciais portugueses datadas do dia 30 de março que aludam à proposta de lei n.º 21/XIV (que apenas nesse mesmo dia deu entrada na AR) para sustentar que as obrigações do contrato não estavam suspensas e deviam continuar a ser cumpridas.

Considero menos surpreendente que, poucos dias após a publicação da Lei Turbo, a maioria das entidades gestoras dos centros comerciais tenha comunicado aos lojistas que este novo regime é o remédio que têm para oferecer, em alguns casos suspendendo temporariamente a faturação das rendas (mas não das despesas comuns, cuja faturação irá manter‑se, pois não são “rendas” nos termos da lei…), mas deixando claro que não renunciam ao seu recebimento.

Finalmente, considero abominável que uma realidade com várias décadas que as leis portuguesas têm recusado reconhecer – refiro-me aos chamados contratos de utilização de loja que são utilizados pelos centros comerciais – não obstante envolver centenas de empresas, alguns milhares de lojas e dezenas de milhares de trabalhadores, seja mencionada en passant, através da formulação pioneira e esconsa «outras formas contratuais de exploração de imóveis para fins comerciais», numa iniciativa legislativa que não faz mais que proteger, integralmente, o rendimento dos proprietários daqueles centros comerciais.

Ocorrem-me inúmeros aspetos nas relações comerciais entre os proprietários dos centros comerciais e os respetivos lojistas que poderiam merecer a atenção do legislador. Com exceção das chamadas “lojas âncora” dos vários centros comerciais cuja grande dimensão equilibra as forças em presença, o lojista é a parte mais fraca daquelas relações comerciais e é obrigado a aceitar, sem discussão, os contratos que lhe são apresentados, sendo obrigado a cumprir religiosamente um horário de 12 a 14 horas diárias todos os dias do ano, a partilhar as suas vendas permitindo que as auditem, a prescindir das benfeitorias que realize na sua loja, a oferecer garantias bancárias de dezenas de milhares de euros ou a aceitar um regime de penalidades manifestamente excessivo. Se não estiver disponível para isso, não pode estar presente nos centros comerciais, que é para onde se dirige a esmagadora maioria dos clientes.

Não obstante, aposto que estes contratos de utilização de loja vão continuar atípicos (e fora da lei) – ou seja sem uma lei que os tipifique e regule – e que o afã do legislador terminará com este curativo cirúrgico aplicado em cima da obrigação de pagamento das rendas.

5 Não, senhor legislador, não “é melhor que nada”!

Entendo que a Lei Turbo não afasta as regras gerais de direito e não obriga o arrendatário a recorrer à moratória caso a sua situação concreta justifique uma solução mais equitativa. A moratória é uma faculdade que lhe assiste, pronta a vestir, e não uma camisa de forças.

De resto, no caso específico dos contratos de utilização de loja dos centros comerciais, vários aspetos do seu clausulado habitual – que têm como objetivo, precisamente, afastar os regimes dos contratos tipificados na lei, em especial o contrato de arrendamento – podem até, paradoxalmente, proteger mais o lojista destes contratos que o inquilino dos contratos de arrendamento comercial. De acordo com essas cláusulas, o efetivo exercício da atividade a que as várias lojas e espaços se destinam é condição essencial da plena operacionalidade do centro comercial e dos padrões de qualidade inerentes ao comércio integrado. O centro comercial deve funcionar como um todo harmónico, subordinado a normas técnicas de manutenção e melhoramento da sua qualidade e operacionalidade, sendo as responsabilidades do proprietário indissociáveis da efetiva utilização das lojas pelos lojistas. Esse comércio integrado, em que o todo se supõe maior que o somatório das partes, está irremediavelmente posto em causa pela obrigação de encerramento temporário de todas as atividades comerciais não essenciais.

Por outro lado, a nossa velhinha (e nada repentista) lei civil prevê a possibilidade de resolução ou modificação do contrato segundo juízos de equidade em caso de uma alteração anormal das circunstâncias que não esteja coberta pelos riscos próprios do negócio (no artigo 437.º do Código Civil). Este regime convida as partes a entenderem‑se: se a parte lesada pela alteração de circunstâncias optar pela resolução do contrato, a parte contrária pode opor‑se à resolução se aceitar a modificação equitativa do contrato.

Numa situação extraordinária como aquela em que vivemos, o entendimento entre as partes é, claramente, a via mais adequada para encontrar as soluções mais justas para o presente e para o futuro destas relações comerciais.

No entanto, esta lei desincentiva o proprietário a chegar a esse entendimento.

Por estas razões, receio que a Lei Turbo, por ser uma lei injusta e parcial na matéria dos arrendamentos comerciais e um convite aos proprietários para recusarem qualquer entendimento diferente da moratória prescrita, seja bastante pior do que não haver lei alguma.

Um legislador sereno, conhecedor das outras leis da República, provavelmente não teria intervindo. E se decidisse intervir, por razões de segurança e certeza jurídica que posso facilmente considerar atendíveis, fá‑lo‑ia certamente no quadro de equilíbrio da lei geral civil, estabelecendo premissas e balizas para a modificação equitativa do contrato, ajustadas ao real impacto do encerramento nas receitas dos lojistas e ponderando a taxa de esforço daí decorrente, por forma a favorecer a viabilidade económica de proprietários e lojistas.

Infelizmente, este é o tempo – e temo que continuará a ser – do perigoso surto das leis turbo.

Mestre em direito. Administrador do Grupo BertrandCírculo. Foi responsável pelo Departamento de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça (2004-2006) e presidiu à Agência para a Modernização Administrativa (2009-2012).