“A nossa missão no Banco Central Europeu é assegurar a estabilidade dos preços. Temos de o fazer com total independência e prestar contas perante o Parlamento Europeu. Não prestamos contas perante o Conselho Europeu, não prestamos contas a nenhum Governo em particular, seja um primeiro-ministro bastante respeitado e respeitável, como é o sr. [António] Costa, ou qualquer líder do Governo. A nossa prestação de contas é perante o povo europeu, por meio do Parlamento Europeu.”

Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), 28 de novembro de 2022

1 O equilíbrio entre os diferentes poderes constitucionais é um dos pontos cruciais do que se entende por democracia. Não é suposto que o Poder Executivo comande o Poder Judicial ou impeça o escrutínio político do Parlamento, do qual a sua legitimidade política depende e que é a sede por natureza do Poder Legislativo.

Numa democracia saudável, existe um equilíbrio entre esses três poderes — que, refira-se, se escrutinam mutuamente, ganhando assim uma interdependência.

No regime semi-presidencialista português, a figura do Chefe de Estado tem um papel reforçado neste sistema de freios e contra-freios que caracterizam as democracias modernas. Sendo eleito diretamente pela população, e tendo assim uma legitimidade reforçada, o Presidente da República é uma espécie de árbitro com um super poder (a dissolução do Parlamento), o que lhe dá uma força especial para escrutinar como entender a ação do Governo.

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Estes princípios básicos valem ainda mais num contexto de uma maioria absoluta. Ou seja, o Presidente da República tem deveres especiais e uma redobrada atenção quando um só partido pode aprovar livremente quase todas as propostas de lei que apresenta no Parlamento, quando pode controlar todas as entidades supervisoras e reguladoras e quando tenta condicionar a ação do Poder Judicial.

2 Tudo isto está a concretizar-se no nosso país desde março deste ano, quando o terceiro Governo de António Costa tomou posse. O PS comanda o Governo, manda no Parlamento, controla o Banco de Portugal e todas as entidades reguladoras (nas quais tem pessoas da sua inteira confiança) e quer controlar o Poder Judicial para impedir o escrutínio criminal das suas eventuais ações.

António Costa está tão imbuído de um poder quase absoluto que até tem a ousadia de criticar abertamente a política monetária europeia, ignorando ostensivamente a independência do BCE (e, por arrasto, do Banco de Portugal) — que é um dos principais vértices da arquitetura política da União Europeia que também se baseia no sistema clássico de freios e contra-freios.

E o que está a fazer Marcelo Rebelo de Sousa? Quando o Governo Costa entrou num processo de decadência política dificilmente reversível — e no qual o poder absoluto, como lógica de pura sobrevivência política, é a grande tentação — onde está o árbitro constitucional que deve defender o interesse nacional em nome de todos os portugueses?

3 Sendo direto: desde há muito que o Presidente da República optou por não desempenhar o papel de árbitro que o nosso sistema lhe impõe. Pelo contrário, Marcelo é um jogador que decidiu jogar na equipa de António Costa e que, só sob grande pressão, aceita sair de campo para voltar a vestir o equipamento de árbitro.

Não está em causa a cooperação institucional que o Chefe de Estado deve ter com o Governo — isso é perfeitamente aceitável e Marcelo Rebelo de Sousa tem sido verdadeiramente inexcedível. A promulgação de diplomas do Governo à velocidade da luz é um, entre muitos outros exemplos.

Não está igualmente em causa o papel respeitável que Marcelo teve no seu primeiro mandato, apaziguando a tensão política que existia entre a esquerda e a direita.

O ponto é que, cada vez mais, Marcelo Rebelo de Sousa é uma espécie de guarda-redes de António Costa quando evita que a oposição marque golos e ainda faz de número 10 e de ponta de lança da maioria do PS em dossiês fundamentais desde 2016.

De nada lhe serve ser uma espécie de Mozer ou Fernando Couto, quando exigiu a demissão da ministra Constança Urbano Sousa devido à tragédia dos fogos de 2017. Ou quando fez uma entrada a pés juntos à ministra Ana Abrunhosa — quando é a ministra Mariana Viera da Silva, a delfim de António Costa, a responsável pela maior fatia dos fundos europeus.

Todos percebem que são jogadas para disfarçar.

4 No caso do BANIF e do BIC, por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu desempenhar vários papéis ao mesmo tempo, como também se exige a alguém tão superiormente inteligente: foi guarda-redes, trinco especialista em caneladas e ainda fez de número 10 a distribuir jogo para o primeiro-ministro marcar golo.

Perante um António Costa acossado, com os nervos à flor da pele e sob escrutínio direto da oposição, o que fez o Presidente da República? Misturou alhos com bugalhos (enganando ostensivamente a opinião pública, como pode ler aqui), agiu como o advogado de Costa e ignorou olimpicamente que o primeiro-ministro pressionou o governador do Banco de Portugal para não retirar Isabel dos Santos da administração do BIC devido a suspeitas concretas de operações de branqueamento de capitais que estavam a ser investigadas pelo Ministério Público.

Tudo em nome de um acordo opaco que António Costa tinha feito com a filha de um Presidente da República de Angola que hoje é suspeita em 17 inquéritos abertos no Departamento Central de Investigação e Ação Penal.

Ficamos todos a saber que Marcelo Rebelo de Sousa (tal como António Costa) considera que a idoneidade — um conceito central na credibilidade do sistema financeiro da União Europeia e ao qual o BCE dá uma importância fulcral — é um bem transacionável em nome daquilo que o primeiro-ministro entenda que é o interesse nacional.

Se Marcelo e Costa mandassem na União Europeia, os tratados europeus que consagram a independência do Banco Central Europeu — a que aludo no início deste texto, citando uma resposta de Christine Lagarde à eurodeputada Lídia Pereira (PSD) — já teriam sido picados bem picadinhos numa Moulinex especial.

5 Nos últimos dias, Marcelo Rebelo voltou a ser um dos jogadores favoritos de António Costa. Saíram sete membros de um Governo de maioria absoluta em apenas oito meses de vida mas o Presidente da República nada disse.

Pior: o primeiro-ministro decidiu romper a regra de não voltar a sentar familiares na mesa do Conselho de Ministros — regra que o mesmo António Costa tinha estabelecido em 2019. O que fez Marcelo, o homem que tudo comenta a toda a hora? Ficou em silêncio, preferindo fazer concorrência ao painel de comentadores do Mundial na Rádio Observador e na CNN Portugal.

O que não deixa de ser extraordinário. Perante um primeiro-ministro que promove regras à medida das suas necessidades políticas — mostrando que entende que os princípios éticos são igualmente mutáveis —, o mesmo Presidente da República que desvalorizou os abusos sexuais na Igreja (pedindo desculpa depois) e que entende que devemos esquecer os direitos humanos quando se trata do país que organiza o Mundial (retificando o tiro mais tarde) fica calado.

Temos de ser sinceros: bate certo.

6 Tal como bate certo que a famosa dupla Marcelo/Costa do caso do irritante, que favoreceu objetivamente Manuel Vicente (o ex-presidente da Sonangol acusado de ter corrompido um procurador português), volte a agir da mesma forma cúmplice quando o princípio da separação de poderes está em jogo.

É preocupante que, após a demissão de Miguel Alves na sequência da acusação do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) Regional do Porto, tenham acontecido os seguintes factos relevantes:

  • O Governo publicitou uma carta de demissão de Miguel Alves em que está escrito preto no branco de que a ministra da Justiça perguntou formalmente à procuradora-geral Lucília Gago se o então secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro tinha sido acusado. Não foi o advogado de Alves, foi a ministra Catarina Sarmento e Castro;
  • O PS começou a atacar o Ministério Público, sinalizando de que havia motivação política por detrás da acusação;
  • Francisco Assis, militante do PS e presidente do Conselho Económico e Social, exigiu a interferência da procuradora-geral Lucília Gago precisamente na investigação que está na origem da acusação contra Miguel Alves e que envolve outras figuras do PS;
  • A procuradora-geral, correndo atrás de Assis e de outros comentadores, abriu uma averiguação especial para avaliar se há matéria disciplinar para abrir um inquérito contra o procurador titular da Operação Teia. Num momento em que o inquérito está prestes a terminar e no qual várias figuras do PS podem vir a ser acusados de crimes no exercício de funções políticas;
  • E o primeiro-ministro António Costa resolveu começar a armar-se em campeão nacional da autonomia do Ministério Público, deturpando a verdade histórica e ignorando o papel do PSD nessa matéria.

Com a legitimidade de ter afirmado várias vezes em público de que não havia até ao momento qualquer controle político da investigação criminal no mandato de Lucília Gago, tenho que dizer que a abertura da averiguação especial determinada pela procuradora-geral é o primeiro indício claro do início desse controlo político.

Lucília Gago está a ceder à pressão do Governo e do PS, o que faz, repito, com que o princípio da separação de poderes esteja em jogo. E o que faz o Presidente da República — que é o último garante de que esse princípio estrutural da nossa Constituição é respeitado?

Nada. Zero.

Tal como antes foi cúmplice (ou algo mais?) na substituição da procuradora-geral Joana Marques Vidal. Tal como antes ficou em silêncio com a passagem direta de Mário Centeno do Governo para o Banco de Portugal, contribuindo para a tomada do Banco de Portugal por parte do PS.

7 É óbvio que o nosso sistema constitucional fica claramente coxo quando o Presidente da República não cumpre o seu papel e não respeita as suas responsabilidades. Marcelo não tem sido o árbitro que a Constituição define para o papel de Presidente da República.

Perante um Governo desorientado que necessita de exigência e de escrutínio para melhorar o seu desempenho, Marcelo age como um aliado de António Costa — o que afeta dramaticamente o nosso sistema de freios e contra-freios.

O Presidente da República ainda vai a tempo de corrigir o seu posicionamento porque só ele poderá impedir a tentação do poder absoluto que o PS já está a sentir.

Contudo, se Marcelo não arrepiar caminho, o PSD e o espaço do centro-direita ver-se-ão confrontados a médio prazo com uma escolha inevitável: descolar do ‘seu’ Presidente.