“A extrema-direita é a maior ameaça à democracia em Portugal”, disse António.

“Então e a extrema-esquerda? Fala também da extrema-esquerda! Ou tens dois pesos e duas medidas?!”, ripostou Manuel indignado com a assertividade da afirmação.

Este diálogo, ficcionado quer quanto ao conteúdo quer quanto aos intervenientes, resume uma tendência que tem vindo a crescer no debate público e que tem como único objectivo abastardar toda e qualquer discussão. De acordo com esta infame técnica retórica, se eu disser X e não referir Y, então é porque sou intelectualmente desonesto, faço parte deste ou daquele grupo e, por isso, estou a defender uma posição de pendor clubista. Escusado será dizer que ao invés de ampliar os termos do debate, esta reacção cada vez mais instintiva apenas serve para o afunilar até ao ponto de o tornar completamente extremado e inútil.

Mas mesmo assim, mesmo correndo o inevitável risco de ataque da pandilha sangrenta das redes sociais, mesmo jurando a pés juntos que não sou comunista desde pequenino, assumo a personagem do António e volto a repetir que a extrema-direita é a maior ameaça à democracia em Portugal. Desde já, a propósito do que se entende por extrema-direita importa distinguir as suas duas subespécies: a extrema-direita com representação parlamentar e a extrema-direita criminosa dos carecas trogloditas que é a que serve de objecto a este texto. Ainda que admitamos a existência de perigosos canais de ligação entre uma e outra, André Ventura não é um criminoso bárbaro e não merece ser colocado no mesmo plano dos sanguinários apreciadores de suásticas.

Os carecas apreciadores de suásticas, esses portadores de ideias fresquinhas e arejadas como a supremacia branca e o ódio pelas minorias, foram, no passado dia 13 de junho, mais uma vez acusados pelo Ministério Público pelos crimes que sistematicamente cometem e entre os actos desprezíveis que praticaram (deixemos lá o insuportável “alegadamente”) contam-se “agressões que poderiam ter causado a morte, actos de intimidação e perseguição; ameaças de morte, insultos e apropriação indevida dos bens de pessoas desprevenidas, algumas sozinhas, e todas sem capacidade de resistência”, sendo que os alvos foram escolhidos a dedo “por serem negros, comunistas, antifascistas ou frequentarem eventos para homossexuais”.

Num dos casos detalhado pela acusação é bem visível a mediocridade destas figuras minúsculas: um jovem negro acabado de sair de um autocarro foi brutalmente agredido e esfaqueado, acabando mesmo por perder os sentidos, porque na lógica mirabolante destes loucos sanguinários “tinha a mania que era engraçado”.

Há certos assuntos onde as hesitações são indesculpáveis, e um deles, porventura o caso mais paradigmático, é o racismo seja ele de que índole for. As hesitações na condenação de comportamentos racistas, na afirmação da justeza da luta contra o racismo, no reconhecimento do racismo como um fenómeno global que não existe apenas lá longe na América fornecem aos carecas trogloditas a legitimação de que necessitam para continuarem a praticar os seus crimes e a espalhar o ódio e o terror. O processo público de limpeza de imagem de um criminoso patrocinado há algum tempo por uma televisão mostra que ainda há caminho por fazer num tema onde a dicotomia reinante nunca poderá ser entre esquerda e direita, mas entre humanistas e selvagens, entre democratas e inimigos da democracia.

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