Restaurante XPTO, algures em Fevereiro de 2020: Para lhe perguntarem o que deseja comer, esperou 30 minutos; para poder dizer o que deseja beber, aguardou outros 30 minutos; pão e manteiga, para entreter, esperou mais 30 minutos. Hora e meia depois, é informado que por motivo de força maior, a cozinha está temporariamente fechada. Por sorte, a cozinha reabre 15 minutos depois. Esperará mais 30 minutos, até a comida chegar à sua mesa. Ainda ficou sentado mais 30 minutos até lhe trazerem a conta. Ao fim de cinco horas, finalmente pôde sair do restaurante. Agora, imagine que em vez de lhe interessar comida, o que precisava era resolver um litígio civil, comercial ou administrativo. Neste caso, em Portugal, o seu Tribunal é exactamente este restaurante. Com uma importante diferença. Àquela casa de comida você nunca mais voltaria, escolhendo outra com um serviço mais decente. Mas essa liberdade não lhe é conferida se em vez de uma refeição precisar de uma sentença. Tem de continuar a ser “cliente” daquele tribunal. Não pode escolher outro.

Por isso, é legítimo perguntar, quem se vai aperceber que os tribunais estiveram fechados e agora reabriram? Certamente os advogados, claramente os mais prejudicados de todos os operadores judiciários. Com tribunais fechados ou abertos, os magistrados e os funcionários, continuaram a receber o seu salário, estivessem em teletrabalho ou simplesmente não trabalhassem. Os cidadãos, utentes dos tribunais, esses, estão como o cliente do restaurante: ao invés de lhe trazerem a comida ao fim de 4 horas, só tiveram o incómodo adicional de esperar mais 10 minutos. Só que no tribunal, as 4 horas, são 4, 6, 8 ou mais anos. De facto, com tribunais abertos ou fechados, o seu destino está traçado. Cada português, é um potencial Josef K, do Der Process de Franz Kafka.

Na obra mais recente de Maria Filomena Mónica (O Olhar do Outro), é constante, nos testemunhos que deixaram estrangeiros que viveram em Portugal entre Séc. XVIII e o Séc. XX, que a Igreja e a Justiça foram os mais significativos factores do atraso estrutural do “pobre e pequeno Portugal”, modo como éramos carinhosamente vistos pelos visitantes.

“É indispensável convir que a justiça em Portugal é claudicante e morosa, segundo dão testemunho as pessoas mais autorizadas. Nos processos civis, pode-se mesmo afirmar que é estacionária. Há demandas que caducam nos tribunais durante muitas gerações, sem esperança de chegarem nunca à desejada conclusão (…) A aplicação da lei em Portugal é rápida  e inexorável para os pobres, modificando-se sensivelmente quando se trata de burgueses abastados; e complacente, a ponto de não exercer o seu predomínio senão constrangida, sempre que se dirige a pessoas de elevada condição” (Maria Rattazzi, 1879, como mero exemplo, pode dizer-se por todos)  

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Passaram-se muito anos e nada pode ser comparado, como dizemos em direito, mutatis mutandis. Quanto à Igreja, seria muito injusto comparar a Igreja Católica portuguesa do Séc. XXI com a Igreja dos séculos XVIII e IX. Também não há comparação no sistema escolar, onde a evolução foi extraordinária, face ao Portugal analfabeto, que existiu até pelo menos aos anos 60 do Séc. XX. Nos cuidados de saúde, que eram uma quase inexistência até 1974, a criação do Serviço Nacional de Saúde foi um avanço notável, tendo em conta o contexto miserável que o antecedeu. Diariamente se comprova, face à pandemia, que Portugal tem hoje dos melhores cientistas em várias áreas da medicina molecular, infeciologia, epidemiologia ou virologia. Temos bons laboratórios e centros de pesquisa. Nestas áreas, só recorreremos a estrangeiros apenas na medida em que qualquer outro país recorre e não mais que isso.

Mas quando passamos ao sistema judiciário, o panorama muda completamente. No essencial, o nosso sistema judiciário vive ainda com a mentalidade do Séc. XIX. Muita altivez, muita arrogância e bastante indiferença. Um sistema informático mal-amanhado, chamado CITIUS, ou outro ainda menos bem amanhado designado SITAF, não chegam para tirar o sistema judicial do Séc. XIX, onde confortavelmente se quedou.

O Ministério Publico, um mero acusador público, continua sentado nas salas de audiência num lugar mais alto, ao nível do Juiz, criando-se – não ingenuamente — a sensação que aquele poder é maior, que o dos restantes intervenientes na audiência de julgamento.

As novas regras de abertura, que implicam agora que quase tudo o que se passa nos tribunais, fique ainda mais distante da vista dos cidadãos, só vão agravar a falta de escrutínio, já hoje patente, sobre o funcionamento desta máquina opaca.

Os que hoje são menos novos, lembram-se de certo dos antigos comerciantes da Baixa que, com algum enfado, faziam o favor de nos atender, como se vender-nos alguma coisa fosse uma enorme maçada, perturbando o seu merecido descanso atrás do balcão.

O cliente digital seria seguramente o sonho desses comerciantes. Infelizmente, para eles, não chegou a tempo. Vai agora tornar-se realidade, mas para o sistema judiciário. Devem comemorar.