Quando for grande quero ser polícia
para bater nos pais de outros meninos
em frente aos outros meninos.
O meu pai sempre me disse:
cuidado a quem dás bastonadas.
Nunca dês bastonadas a um preto
senão vão achar que és racista.
Se deres bastonadas a um branco
estarás apenas a ser polícia.
Ainda bem que não somos pretos.
Imaginem se fôssemos pretos.
Já não podia ser polícia.
Em Março, foi detido um homem por estar a colar cartazes com este poema (Quando for grande, de Gisela Casimiro) no bairro lisboeta da Estrela. Os dois agentes que o detiveram acusaram-no de ofender a PSP, ao abrigo do Artº 187º do Código Penal, que condena quem “afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública”. Os cartazes eram parte de uma exposição de poesia visual e a sua curadora, Ana Cristina Cachola, foi também constituída arguida. Seis meses depois, o caso permanece no Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa.
Não consigo deixar de sentir grande admiração pelos agentes que detiveram o homem dos cartazes. Admiro a perícia com que conseguiram, em muito pouco tempo, interpretar linguagem poética com precisão, retirando-lhe a ambiguidade que, criando dúvida, poderia pôr em causa a visita à esquadra do meliante. Quem me dera ter essa capacidade de exegese. Ainda me lembro do que penei no liceu (curiosamente nesse mesmo bairro, onde ainda moro), a tentar decifrar odes maçadoras de Fernando Pessoa e sonetos impenetráveis de Camões (também podiam ser odes impenetráveis de Fernando Pessoa e sonetos maçadores de Camões, já não me lembro bem). E eu estava numa sala de aula silenciosa, com 50 minutos para gastar em leitura e interpretação, e não numa rua movimentada, de olho em condutores agarrados ao telemóvel e em donos que não apanham os cocós dos seus cães – o auge do crime aqui na Estrela.
Apesar de tudo, sempre gostava de saber que nota é que a minha professora de Português daria aos agentes que, apanhando o afixador de cartazes em flagrante, leram aquelas linhas e decidiram logo, sem hesitar, que se tratava de uma afirmação de factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança devidos à PSP. Até parece que a estou a ouvir perguntar: “Ah, sim? E a metáfora, meus meninos? E a hipérbole? Querem ver que aqui os génios descobriram um poema que não é subjectivo?” Imagino a turma toda a rir e os polícias, corados, de olhos no chão. Se se ofendem com um poema, não iam reagir nada bem ao serem alvo do sarcasmo (“Ai, o sarcasmo já percebem, não é génios?”) da stôra Maria do Carmo à frente de 30 adolescentes gozões. Se calhar, prendiam-na. Mas levavam negativa à mesma.
Numa busca no Google, descobri que o último poeta português preso por algo que escreveu foi Bocage, em 1797. Pina Manique mandou encarcerá-lo por “ideias contra a ordem social” expressas na Carta a Marília, poema que incluía versos como “Votos, suspiros arquejando espalhe / Coza as faces coa terra, os peitos fira” ou “Que molesto jejum roaz cilico / Com despótica voz à carne arbitra”, entre outras charadas que mostram que, no séc. XVIII, a vida de polícia-crítico literário era mais espinhosa.
Talvez Bocage não tenha sido o último. (A minha busca não foi exaustiva. Foi até bastante displicente. Já não tenho de ter medo das descomposturas da stôra Maria do Carmo pela minha preguiça). É possível que, desde 1797 até hoje, tenha havido outros poetas a dar com os costados num calabouço qualquer. Aliás, é muito provável que haja alguns no Estado Novo, uma época que a posteridade regista como pouco amiga da liberdade de expressão artística. Mas estou disposto a pôr as mãos no fogo em como não houve, no actual regime, nenhum caso de poeta preso por algo que publicou. Pena que à PSP, concentrada a identificar as figuras de estilo no poema de Gisela Casimiro, tenha escapado esta bem mais prosaica: em Democracia, um poema dar cadeia é ironia. E se há aqui figura de estilo que mina a credibilidade, o prestígio e a confiança que são devidas à PSP, é essa.
Já que a Polícia quer dedicar o seu tempo ao que é afixado nas ruas da Estrela, há outro tipo de cartazes, abundantes aqui no bairro, mais merecedores da sua atenção. São cartazes em que se oferecem explicações de várias disciplinas. Já trazem destacado o número de telefone do explicador, é só rasgar. A PSP não fazia mal em recolher vários papelinhos com o contacto de um explicador de Língua Portuguesa e distribui-los pelos agentes responsáveis por ler e interpretar poesia na rua. Iam ter rondas mais sossegadas.