No debate mensal da semana passada – espere, não mude já de página, apesar de começar por “no debate mensal da semana passada” esta crónica não é assim tão maçadora. Dizia eu que no debate da semana passada o Primeiro-Ministro deixou um aviso grave: cautela com os populismos!

António Costa esteve excelente a repreender Rui Tavares por estar a utilizar o vocabulário dos extremistas. O PM propôs-lhe a vacinação contra o fascismo e Rui Tavares fazia bem em aceitar a pica e rever a sua retórica polarizadora. Palavras como “diálogo” e “conciliação” não têm lugar numa democracia decente. Tavares sabe o que faz. Com aquela voz melíflua, simpatia e bons modos de padre animador de campos de férias católicos, mesmo à populista, Rui Tavares não engana. É um demagogo na linha de Guilherme Oliveira Martins ou de João Bosco Mota Amaral e o seu objectivo é destabilizar o sistema. Começa-se na AR a questionar o Governo sobre a falta negociação com os outros partidos, e num instantinho temos André Ventura como Primeiro-Ministro.

Sei que parece inverosímil. Isto nunca aconteceria em Portugal. Temos a memória fresca da ditadura e agiremos em tempo útil para impedir a degradação do nosso sistema democrático. As nossas instituições são rijas, o escrutínio existe e funciona. É isso, não é? Já estive mais certo.

A verdade é que aproxima-se a dissolução da AR e a consequente queda do Governo. Com um PS desacreditado e um PSD reduzido, o resultado das novas eleições pode ser trágico. Não excluo um cenário eleitoral em que o Chega seja o partido mais votado. Para imaginarmos o perigo que isso representa ficcionei uma cronologia do que um Governo liderado por André Ventura poderia fazer ao país. É aterrador. Assustei-me com a minha própria premonição.

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Dia 1. André Ventura nacionaliza a TAP. Para auxiliar no acordo, convida o seu melhor amigo, com grande experiência em negócios, inclusive na própria TAP. O melhor amigo de Ventura não é nomeado, nem ocupa um papel institucional. Fica como consultor não remunerado, o que levanta suspeitas sobre porque é que participa nisto. É apresentado como um facilitador desinteressado. Ventura desvaloriza as críticas, acusando quem as faz de “populismo” e de não perceber que o povo não liga a estas bagatelas.

Dia 2. André Ventura substitui o Governador do Banco de Portugal, de quem não gosta, por um ex-colaborador, anterior Ministro das Finanças. Ouvem-se acusações de conflito de interesses, mas Ventura borrifa-se nas críticas. Acusa quem as faz de “perigoso populismo” e de não estar sintonizado com o povo, que não se interessa por questiúnculas.

Dia 3. André Ventura substitui a Procuradora-Geral da República, que tinha a mania de investigar pessoas ligadas ao Chega, por alguém mais agradável. Ventura indigna-se com as críticas que os populistas lhe fazem, acusando-os de fazerem uma política de casos e casinhos. Felizmente, o povo ignora e está com Ventura.

Dia 4. André Ventura substitui o Presidente do Tribunal de Contas, depois de este ter alertado para a hipótese de haver corrupção na distribuição de dinheiros do PRR. Ventura vocifera contra as críticas populistas, vindas de quem só se preocupa com rodriguinhos e não com as condições de vida do povo, como ele.

Dia 5. Descobre-se que o Ministério da Justiça do Governo de André Ventura não nomeou, para a Procuradoria Europeia, a candidata mais bem colocada no concurso. Aparentemente, tinha sido a responsável por investigar o departamento gerido pelo colaborador de Ventura que agora está no Banco de Portugal. Ventura faz uma vozinha a imitar os críticos que protestam. E chama-lhes populistas. O povo, diz Ventura, ri-se com ele destas mesquinhices.

Dia 6. André Ventura nomeia, para presidir ao Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informação, uma colega do Chega. Nunca se sabe quando é que vai dar jeito. Ventura pede críticas diferentes, já está farto do mesmo populismo todos os dias.

Dia 7. O país descobre que uma administradora da TAP saiu da empresa com uma indemnização de meio milhão de euros, apesar de, ao abrigo do estatuto do gestor público, não ter esse direito. A TAP é controlada politicamente pelo Ministro das Infraestruturas de Ventura, que, apesar de estar sempre a mostrar que quem manda na empresa é ele, diz-se chocado e afirma não conhecer esse caso. Garante tomar todas as providências para perceber como foi possível tal escândalo.

Dia 8. Descobre-se que o Ministro das Infraestruturas de Ventura mentiu: afinal sabia da indemnização, estivera a par das negociações e dera o seu aval. O Ministro demite-se. Não por mentir, claro, mas por ter sido apanhado. Ventura não condescende com a incompetência.

Dia 12. O Ministro das Finanças de André Ventura despede a CEO da TAP. Diz que o faz com justa causa, apoiado por um parecer jurídico inatacável que atesta que ela cometeu uma falha grave na demissão da administradora, apesar de, como já se percebeu, ela ter agido com a autorização do Governo.

Dia 13. Afinal, parece que o Governo de Ventura mentiu outra vez: não existe qualquer parecer jurídico. Existe apenas um relatório preparado pela Inspecção-Geral das Finanças, um serviço sob a tutela directa do Ministro das Finanças de Ventura que, com isso, é ilibado de suposta incúria. O Inspector-Geral conclui que a CEO foi bem demitida, apesar de nem sequer a ter chegado a ouvir. Fala-se em falta de independência, mas Ventura grita mais alto e ninguém ouve.

Dia 14. Mais petas do Chega. Vários membros do Governo de Ventura, que antes se tinham referido ao parecer, negam alguma vez ter falado em parecer, mas sim em “parecer”, que, obviamente, não é um parecer. Ventura concorda, ao mesmo tempo que censura a tentativa de aproveitamento político que os populistas fazem.

Dia 15. Descobre-se que o Ministro das Finanças de Ventura está há 5 meses a esconder um relatório de uma auditoria sobre a aplicação de fundos europeus (os mesmos que haviam motivado o aviso do então Presidente do Tribunal de Contas). Não só o relatório foi retido, como se descobre que o mesmo Inspector-Geral que justificou o despedimento da CEO da TAP admitiu tê-lo falsificado. Por dever patriótico, diz ele. Ventura aponta um lembrete para mais tarde condecorar este herói.

Dia 16. Ventura contrata, como adjunto, um ex-autarca do Chega que, quando era Presidente da Câmara, deu 300 mil euros para a construção de um centro de exposições que nunca saiu do papel. Ventura nega haver problema e não despede o adjunto, que acaba por se despedir depois de entretanto ser acusado num processo de corrupção. Por outro tema que não o pavilhão. Ventura lamenta o sacrifício de um estupendo político no altar do populismo.

Dia 20. É constituída uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão da TAP. Na CPI, descobre-se que a ingerência do Governo de Ventura na TAP vai ao nível do Secretário de Estado do Chega instruir a CEO para alterar um voo para agradar ao Presidente da República. Perante as críticas, Ventura apela à não instrumentalização da TAP para atacar o seu Governo. A empresa é importante de mais para ser arma de arremesso político por banda dos seus adversários, que com isto prejudicam o interesse estratégico nacional.

Dia 22. Na CPI, descobre-se que, semanas antes, na véspera de anterior audição da CEO noutra comissão, houve uma reunião secreta entre ela e membros do Grupo Parlamentar do Chega e do Governo de Ventura, para combinarem as perguntas e respostas que iriam apresentar ao escrutínio da Assembleia da República e dos portugueses. Os populistas salivam: em breve vão poder praticar o populismo.

Dia 23. Na tentativa de encobrimento da tal reunião secreta, um adjunto do Ministro das Infraestruturas de Ventura é demitido. A polícia é chamada ao Ministério para pôr cobro ao seu sequestro. Há queixas de agressões. Descobre-se que o adjunto tinha comportamentos suspeitos que eram do conhecimento do Ministro de Ventura, que nunca fizera nada. Descobre-se também que a única cópia do Plano de Restruturação da TAP que existe no Ministério que tutela a TAP se encontra no computador do adjunto suspeito de ser espião contra a TAP. Ventura está de férias. Ao contrário do populismo, que nunca descansa.

Dia 24. Descobre-se que este Ministro de Ventura também mentiu. Tinha dito que a CEO é que tinha querido ir à reunião secreta de combinação de perguntas, mas afinal foi o próprio Ministro de Ventura que a convidou. O Ministro tenta convencer os portugueses que ter dito à CEO que ia haver uma reunião e que havia interesse em que ela participasse não é, na verdade, informá-la da existência da reunião e de um convite a que participe. André Ventura concorda. Só os populistas é que não.

Dia 25. Descobre-se que o SIS foi chamado para recuperar o computador. André Ventura diz que é normal serem chamados os serviços secretos quando há suspeita de roubo. Os serviços secretos dizem que não é um roubo. Ventura insiste e diz que é normal. Todos os juristas e ex-membros da comunidade de informação ouvidos pela comunicação social dizem que não é suposto o SIS actuar em casos destes. André Ventura finge que não ouve. É uma boa estratégia, pois os populistas irritam-se quando são ignorados.

Dia 26. O Conselho de Fiscalização dos serviços de informação, composto por 2/3 de membros do Chega, ex-colaboradores próximos de Ventura, diz que o SIS agiu bem. Até porque não ameaçou o ex-adjunto. O ex-adjunto diz que foi ameaçado e que tem testemunhas disso. Ventura congratula o Conselho de Fiscalização e aproveita para difamar ainda mais o ex-adjunto. Uma democracia saudável é quando um cidadão critica o líder, mas o líder também pode criticar um cidadão.

Dia 27. André Ventura continua a dizer que reuniões secretas para preparar testemunhos na AR são normais. Todos os deputados dos outros partidos e mesmo o Presidente da AR, histórico do Chega, dizem que não, não são normais. André Ventura não se pronuncia sobre o seu ministro continuar a mentir sobre a reunião. Para não alimentar populismos, como é óbvio.

Dia 28. O líder do Grupo Parlamentar do Chega, num discurso inflamado, acusa os partidos da oposição de serem os responsáveis pelas fugas de informação que mostraram ao país que o Governo do Chega tem mentido bastante. Diz o líder do GP que, como essas fugas dão argumentos à defesa da ex-CEO num processo de despedimento ilegítimo, estes traidores à pátria estão a intentar contra o Estado. Como é apanágio dos populistas.

Dia 29. Uma investigação levada a cabo por uma deputada do Chega iliba os outros partidos das tais fugas de informação. Mesmo assim, o líder do GP do Chega não fica convencido de que a AR não esteja pejada de inimigos da Pátria. Populistas, com toda a certeza.

Dia 30. O Chega impede que a CPI peça as tais notas que o ex-adjunto do Ministro das Infraestruturas terá tirado nas reuniões. Diz que não há interesse em saber-se o que está lá escrito, apesar de ter motivado inéditas cenas de pancadaria num Ministério. A haver, é dos costumeiros e maçadores populistas, os únicos que se preocupam com o que se passa na bolha mediática.

Dia 31. No debate quinzenal na AR, André Ventura recusa-se a revelar quando soube que o SIS tinha sido accionado (ilegalmente, como considera toda a gente menos o Governo e deputados do Chega). Mais precisamente, recusa-se a esclarecer se foi o seu secretário de Estado adjunto (já não é o dos 300 mil euros para o pavilhão que não existe, é o irmão de outra Ministra, apesar de Ventura ter jurado que não haveria membros da mesma família no Conselho de Ministros) a mandar o seu Ministro das Infraestruturas accionar o SIS. Ou se foi o próprio Ventura. Esta indagação é desvalorizada como “populismo”. O povo, assevera Ventura, borrifa-se nestas questões das liberdades e garantias, quer é viver habitualmente e que a selecção ganhe.

Também Dia 31. No mesmo debate, André Ventura mente outra vez, desta feita aos deputados. Dias antes, garantira que o Ministro das Infraestruturas não o informara de que tinha chamado o SIS. Depois, o próprio Ministro das Infraestruturas confessou que falara com Ventura nessa noite. Posto perante isto, Ventura diz que, quando afirmou que não tinha sido informado se estava a referir a uma informação prévia, antes de o SIS ser chamado. Assegura ainda que as imagens da RTP o confirmam. Só que as imagens não o confirmam, desmentem-no. Mais uma vez, Ventura aldraba. Quem se atreve a referir isso é populista e, ao contrário de Ventura, não está preocupado com os problemas concretos das pessoas.

Ainda dia 31. No mesmo debate, numa tirada tonitruante, André Ventura deixa um aviso aos deputados que põem em causa a legitimidade da actuação do SIS: não se metam com as secretas!

Isto é só para ficarmos com uma ideia do que é que estes meninos são capazes. Faz bem António Costa em alertar-nos para estes populistas que mentem com desfaçatez, mesmo quando a realidade os contradiz com clareza. E que distorcem a linguagem para mais facilmente enganar, corroendo as palavras até perderem todo o seu significado. E que têm uma pulsão autoritária mal se apanham com um mínimo de poder, escusando-se ao escrutínio de uma forma arrogante e chocarreira.

Costa tem razão, estamos a chocar o ovo da serpente. Só que é um ovo Kinder. O que sair lá de dentro vai-nos surpreender.