Liberalismos há muitos. Há o liberalismo americano, cada vez mais degenerado e parecido com o nosso Bloco de Esquerda. Há o alemão e o japonês, que ainda vai mantendo o sabor clássico, originário do século 19 e forjado na luta contra a tirania. E há o nosso liberalismo lusitano…

Liberalismo não é só pagar menos impostos. Nem cada qual fazer o que lhe apetece com o seu tempo, com a sua propriedade ou com a sua pessoa. A definição mais clara de liberalismo, do liberalismo clássico, é negativa. Liberalismo é aquilo que é oposto à tirania, a toda a tirania. E o que é tirania? É might without right.

Tirania é o poder, sem razão, de roubar o outro da sua propriedade. Que pode ser feito por assalto, expropriação ou tributação. Tirania é o poder, sem razão, de roubar o outro das suas opções económicas e culturais, o que pode ser feito por monopólio ou monopsónio, sector público ou sector privado, escola pública obrigatória ou saúde pública única. Tirania é o poder, sem razão, de roubar o outro da sua vida por qualquer tipo de assassínio, seja aborto, infanticídio, eugenia ou eutanásia. Tirania é o poder, sem razão, de roubar a uma comunidade os seus costumes, tradições e instituições consensualmente aceites e retamente ordenadas para a vida livre e digna dos seus membros. Em suma, tirania é o poder político, social ou económico que usa ou abusa, sem razão, de um ser humano ou de uma comunidade. Poder sem razão que pode ser exercido pelo Estado e é detestável. Que pode ser exercido pelos ricos e é intolerável. Que pode ser exercido pela maioria, pelo “povo”, e é abominável, ou pela minoria, pela oligarquia ou autodenominadas “elites” ou “vanguardas”, e é execrável.

Se o liberalismo é contra isto tudo, será a favor de quê? Para além de ser contra tudo o que já foi dito, não é a favor de nada em concreto. Isto pode parecer vácuo, mas não é. Uma formulação alternativa é a seguinte: o liberalismo é a favor da livre prossecução da felicidade por cada um. E como todos somos diferentes e temos gostos e interesses diferentes (outro pressuposto liberal), o liberalismo não é favor de nenhuma via em especial, mas é contra todas as que defendem ou permitem might without right. No entanto, para que a prossecução da felicidade por cada um seja possível são necessárias algumas condições.

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Uma condição é que, para procurar a felicidade é necessário acreditar que ela potencialmente existe e que vale a pena procurá-la. Isto requer crença, explicita ou implícita, numa filosofia baseada no livre arbítrio. Quem acredita nalguma espécie de determinismo, seja económico, social, histórico ou religioso, incluindo o materialismo-dialético, não aceita a busca individual da felicidade. Por outro lado, também é necessária a convicção de que nem tudo é completamente aleatório no mundo e de que, apesar da boa e má sorte que influenciam as nossas vidas, a natureza não é arbitraria e o universo material e a dinâmica social laboram com ordem e sob o princípio da causalidade. A esta condição junta-se a necessidade de acreditar que o mundo é cognoscível, que é possível melhorar o nosso conhecimento das leis que o regem, e que esse conhecimento pode ser nalguma medida objetivo e, também, que será útil na prossecução da felicidade. Outra, é a fé na razão humana e na sua capacidade de se sobrepor às paixões e de guiar o homem nas suas ações na busca racional da felicidade. Finalmente pressupõe ainda a capacidade de cada um assumir responsabilidade pelos seus atos e pelas consequências que deles derivam; dito de outra maneira: assume que cada pessoa é, em certa medida, responsável pelo seu futuro.

O liberalismo assume ainda que existem algumas liberdades básicas como liberdade de pensamento e expressão, liberdade de consciência e religiosa, liberdade económica para produzir, trocar, acumular e consumir, liberdade para constituir família & liberdade de associação e, como condição essencial para o gozo de todas estas, postula um direito inalienável à vida. Acredita também que estas liberdades são direitos, não concedidos pelo Estado ou benevolência da comunidade, mas inerentes a todo o ser humano e por isso também eles inalienáveis, tal como a própria vida.

Para um liberal que acredita em tudo isto foi uma enorme deceção ler, na entrevista dada por três dirigentes fundadores da Iniciativa Liberal à Sábado, que eles “considera[m] que temas como a adopção de crianças por casais homossexuais, a despenalização do aborto ou a eutanásia ‘só são fracturantes para quem não é verdadeiramente liberal’” e que lamentem que “parece que há um partido [BE] dono dessas liberdades; que só esse, da esquerda, é que as defende. É mentira!”.[nota 1] Para um liberal que defende o acima exposto ser chamado de “falso liberal” é o menor dos insultos. Hoje, a designação “liberal” é usada e abusada para tudo e o seu contrário. Não nos esqueçamos que, nos Estados Unidos, o Bloco de Esquerda se chamaria “Bloco Liberal”. Depois disto, é a menor das surpresas, que os dirigentes da Iniciativa se mostrem ofendidos pelo Bloco ser alvorar em único defensor de um princípio comum a todas as tiranias: o poder de umas pessoas tirarem arbitrariamente a vida a outras pessoas.

Mas para o liberal que acredita que o liberalismo não é apenas sobre impostos e regulação económica, mas é essencialmente sobre a pessoa humana e a sua dignidade, sobre o seu direito à vida, sobre o seu direito à liberdade, e sobre o seu direito à liberdade para a prossecução da felicidade, tal declaração é suficiente para demonstrar que o “liberalismo” da Iniciativa Liberal não é o nosso liberalismo. E não o é porque, ao não basear a sua defesa das liberdades (económicas ou outras) na defesa incondicional da vida humana, do seu início ao seu termino natural, é um “liberalismo” construído sobre a areia: resvalará para tirania à primeira maré conjetural.

Infelizmente a única diferença visível, hoje, entre a Iniciativa e o Bloco é que os bloquistas são doidos varridos em tudo, até na economia, e que os iniciativistas são doidos varridos em tudo, menos na economia. E a riqueza da nossa vida, a nossa felicidade, nem sequer está principalmente na economia…

Fica a esperança, e faz-se o voto, que a Iniciativa Liberal faça uma reflexão séria sobre as bases filosóficas do seu liberalismo, que lhe permita repudiar os desvios bloquistas atuais contra a dignidade da vida humana e evoluir para um liberalismo que seja confortável aos que abominam todo o tipo de might without right. O que passa pelo repúdio expresso de todas as formas de “homem mata homem porque tem poder, sem razão”, incluindo aborto e eutanásia.

(Us avtores não segvem a graphya dv nouo Acordo Ørtográphyco. Nem a dv antygv. Escreuem comv qverem & lhes apetece.)

[nota 1] O grosso destas lamentáveis ideias mantêm-se ainda hoje no programa da Iniciativa Liberal.