O Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, mandou recolher os exemplares do livro de BD “Vingadores – A Cruzada das Crianças”, que estava exposto na Bienal do Rio de Janeiro, por ter uma imagem de dois homens a beijaram-se. Segundo o autarca, uma vez que a obra se destina um público infantojuvenil, não pode ter conteúdos obscenos.

Portanto, temos dois super-heróis. Trata-se de Hulkling, um extra-terrestre, meio Kree, meio Skrull, com capacidade de mudar de forma e força sobre-humana, que usa para esmagar os inimigos; e de Wiccan, um poderoso feiticeiro, capaz de manipular a realidade, criar campos de força e lançar relâmpagos. Fazem parte de uma equipa de super-heróis que passa os dias à bulha com inimigos. E Crivella considera que a obscenidade que pode influenciar negativamente as crianças é um beijo. É possível que já tenha ocorrido este diálogo no lar Crivella:

“Júnior, que você vai ser quando for grande, meu filho?

“Pô, papai, vou ser super-herói como o Hulkling! Pra bagunçar os caras ruins, destruir planetas…

“Muito bem, Júnior! Orgulho do papai!”

“… e celebrar a matança beijando meu namorado, Wiccan!”

“Como assim? Porque não celebrar a matança com um viril chope e uma ida ao baile funk, rolar com as preparadas, mesmo à cabra macho? Não sabe que a homossexualidade é demoníaca? Vá mas é destruir planetas. De preferência, planetas povoados maioritariamente por alienígenas gay!”

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É bizarro. O Rio de Janeiro ter um Prefeito puritano faz tanto sentido como Munique ter um Presidente da Câmara abstémio ou Nova Iorque um mayor narcoléptico.

Entretanto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro começou por proibir a censura do Prefeito. Numa segunda instância, voltou atrás e mandou recolher os livros. Finalmente, a Procuradora-Geral da República solicitou ao Supremo Tribunal Federal que se pronunciasse, tendo o STF anulado a decisão do Tribunal de Justiça do RJ. Ou seja, os livros podem ser vendidos à vontade, sem estarem lacrados em plástico preto.

Isto significa duas coisas: 1) a Justiça brasileira defende a liberdade de expressão; 2) o Prefeito Crivella e seus aliados não percebem nada de crianças. Se percebessem, sabiam que embrulhar um livro num saco preto, selá-lo com lacre e avisar que não é para ser visto por crianças, é o primeiro passo para as crianças quererem vê-lo.

Tenho de dizer que fiquei desiludido com o facto desta tentativa de censura a uma banda desenhada se ter passado no Brasil. Cresci a ler a Turma da Mônica, o clássico da BD brasileira, e espero que este ambiente censório não se estenda à imorredoira obra de Maurício de Sousa. Gostava muito que os meus filhos lessem os mesmos livros aos quadradinhos que eu li, mas não sei se ainda é possível gozar com a Mônica, por ser baixinha e dentuça, ou se não será discriminação em função da aparência física e opressão heteropatriarcal, que obriga as raparigas a conformarem-se aos impossíveis padrões estereotipados de beleza. E duvido que se possa fazer pouco do problema da fala do Cebolinha sem ser acusado de bullying. Ou rir do seu cão, Floquinho, que é tão peludo que nunca se sabe se a boca é rabo, ou vice-versa, pois trata-se de uma clara metáfora achincalhante sobre as pessoas trans. Já para não falar de Cascão, o rapaz que não gosta de tomar banho e é censurado pelos amigos, no que pode ser visto como uma crítica a hippies. E também da Magali, uma menina com distúrbios alimentares. Tudo temas, como se diz agora, problemáticos.

Estou à espera do dia em deixe de ser apropriado dar estes livros a crianças. É que, hoje, quando vejo uma notícia sobre livros censurados, tenho mesmo de abrir o link para saber se é reaccionarismo ou progressismo. Desta vez, a censura veio de um reaccionário que não gosta de homossexualidade de dois super-heróis. Para a próxima, a condenação pode ser porque as personagens principais da história são homens e há poucas mulheres representadas. Ou porque são brancos e faltam minorias étnicas. Ou porque são gays, mas cis. Enfim, mais fácil do que dar beijinhos, só ofender um moralista, seja de que lado for.

O que é estranho é que Crivella é um homem profundamente religioso. Inclusive, bispo da IURD. Logo, alguém que sabe que o momento fundador do cristianismo – a morte e ressurreição de Jesus Cristo – começa, justamente, com um beijo entre dois homens. Sem esse ósculo fundacional entre dois marmanjos barbudos, Crivella não teria chegado onde chegou. Ele tem é de dar graças por haver homens às beijocas. Se Judas não tivesse traído Nosso Senhor, em nome de quem é que Crivella ia fazer os seus sermões retrógrados que o guindaram ao poder? Ou Crivella se retracta sobre o beijo, ou manda também embrulhar a Bíblia.