Os russos e russas com mais de 60 anos são o verdadeiro bastião político-eleitoral de Vladimir Putin. Foi esta geração que sentiu na pele as agruras infernais da crise económica, política e social dos anos 90. Associaram-na à liberalização e democratização implementada por reformistas neo-liberais, como Yegor Gaidar. O homem comum não a interpretou como um prolongamento das muitas maleitas do totalitarismo soviético que, não obstante a Glasnost e a Perestroika, perduravam culturalmente, criando simbioses perversas com o capitalismo selvagem e com a corrupção institucionalizada. Um futuro democrático, capitalista e próspero, proclamado como uma inevitabilidade histórica, seria falsificado pelos traumas da penúria social e pela crise institucional profunda que culminou estrondosamente em 1991 com o fim da URSS. Durante este período, “tudo o que era sólido e estável dissolveu-se no ar.” (Marx/Engels)

Para as babushkas, Putin foi o líder que pôs fim à desordem generalizada e que submeteu os todo-poderosos oligarcas, que personificavam a corrupção que grassava impune por todo o sistema, aos diktats do Kremlin. Revitalizou assim a credibilidade do estado e, claro, do estatismo paternalista e coercivo, atributo ancestral e basilar da cultura política russa. Para os que viveram os anos 90, pouco importa que Putin instituiu, a partir do ano 2000, uma vertikal de poder que pouco ou nada tem que ver com a democracia liberal ocidental. O que elas e eles desejavam era, acima de tudo, a estabilidade.

Verdade seja dita, tivesse Putin enveredado pela democratização e liberalização, é possível que a Rússia não tivesse sobrevivido como estado-nação. O primeiro e mais significativo efeito da Glasnost de Gorbachev foi, recordemos, o ressurgimento dilacerante das “questões nacionais” no “estrangeiro próximo” e dentro da própria Rússia. Quando a Rússia nasce como estado-nação, nasce também como um império. Desde os seus primórdios, congrega dentro de si uma multiplicidade de etnias e de regiões culturalmente diversas sob o domínio de Moscovo. Por exemplo, a libertação do jugo imposto pelos mongóis foi, ao mesmo tempo, uma expansão imperial. Esta dimensão imperial da identidade nacional não justifica o imperialismo, mas ajuda a compreender a eterna obsessão de Moscovo com a integridade da Rússia. Não se trata apenas de defender a integridade da nação. Trata-se, também, de preservar uma nação-império. Quem ignorar ou menosprezar esta peculiaridade histórica jamais compreenderá a cultura política russa.

Tentemos compreender melhor o trauma dos anos 90. Devemos, antes de mais, focar-nos na turbulenta confluência do colapso do comunismo soviético com a constituição de uma nova ordem política, social e económica. O fim do comunismo confunde-se com o princípio da nova ordem, instituída, em grande parte mas não apenas, pelas reformas de Gorbachev. É certo que as rupturas revolucionárias nunca são absolutas, como demonstra a Professora Tomila Lankina nos seus fascinantes textos sobre a persistência das tradições (familiares) pré-revolucionárias durante e após o comunismo soviético. Todavia, ao contrário da Revolução de 1917, a fronteira entre o passado e o presente não foi demarcada nos anos 90 pelo sangue dos membros do ancien regime. Os burocratas do sistema soviético não foram purgados e o omnipotente Partido Comunista não foi dissolvido. Aliás, Gorbachev sempre foi muito claro acerca dos seus propósitos. O que ele e os que o apoiaram pretendiam era, acima de tudo, reformar radicalmente o sistema existente. O objectivo central, diria eu, era salvar a nomenklatura da ira do povo. Gorbachev nunca foi um revolucionário, mas os efeitos das suas reformas revelar-se-iam revolucionários.

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Archie Brown, Professor de Política Russa na Universidade de Oxford e amigo de Gorbachev, disse e escreveu que o grande reformista acalentava a esperança de transformar gradualmente a Rússia numa social democracia escandinava. Contudo, os que implementariam as reformas seriam os mesmos apparatchiks que sempre se opuseram a qualquer transformação do sistema. Não foram poucos os que se opuseram a Gorbachev, recorrendo para tal à muito soviética e eficaz resistência passiva.

A legitimidade dos burocratas aos olhos do povo angustiado era nula, facto que comprometia a sua capacidade para reformar o sistema. Este deficit de credibilidade do estado, a nem sempre ocultada dissonância entre os líderes e os apparatchiks, adicionado à reconfiguração caótica da ordem existente e às expectativas defraudadas acerca do capitalismo emergente, entre outras coisas, criaram um estado de coisas que Zygmunt Bauman, referindo-se ao caso Polaco, designou como “liminal state” (estado liminar) num artigo deveras interessante entitulado “The Polish Predicament: a model in search of class interests”. Segundo Bauman, o estado liminar caracteriza-se, acima de tudo, pela indeterminação ou, se desejarem, pela fluidez. Ocorre no interstício da dissolução do velho regime e da constituição de uma nova ordem político-social. O estado liminar expurga a certeza da realidade. Nada parece concreto no fluir infernal das contingências que acompanham a transformação total da ordem social. O seu corolário existencial e psicológico é o mais profundo e irremediável angst: a insegurança ontológica como um modo de vida.

Um jornalista francês que testemunhou este conturbado período em Moscovo descreveu-o como “viver suspenso num buraco negro, sujeito a incertezas metafísicas.” Claus Offe, eminente sociólogo alemão, caracterizou desta forma o período de transição do comunismo para o pós-comunismo (a tradução é minha): “Esta sublevação é uma revolução sem um modelo histórico e uma revolução sem uma teoria revolucionária. A sua mais notável e distincta característica é a ausência de quaisquer princípios teóricos elaborados e de argumentos normativos que contemplem as seguintes questões: Quem deverá implementar o quê, em que circunstâncias e com quais fins?” É certo, como argumenta Offe, que as revoluções raramente obedecem fielmente às ideologias que as inspiraram, mas também é verdade que a crença irreprimível nos princípios sempre conferiu uma certa previsibilidade aos comportamentos dos revolucionários. Reformistas impreparados que a imprevisibilidade transformou em revolucionários sem projectos, um povo já depauperado que foi trucidado pelo capitalismo selvagem e pela corrupção, incertezas institucionais e a dissolução do império soviético. Caos. A era dos anos 90 não é uma mera “narrativa.” É uma memória de uma experiência verdadeiramente dolorosa. Não é um argumento que possa ser debatido. É um testemunho histórico corroborado pela veracidade inexpugnável de tudo o que é vivido e sentido na pele. Neste sentido, é um dogma que encerra a sua própria validação empírica. É por esta e por outras razões que o apoio das babushkas a Putin é incondicional.