“Rompe-se-me a língua e leve / logo sob a pele lavra um fogo / […] fremem-me os
ouvidos / água de mim se esvai, um tremor / toma-me toda.” – palavras aladas com que Safo descreve a profunda turbação do seu corpo ao ver a mulher amada sorrindo com doçura e desejo para um outro. Na leitura desses versos incineramos o nosso corpo no seu, e o nosso mundo interior, libertando-se, toca a fímbria do dela.

Libertação, de facto, como quando, de alegria, se dança entre escombros à notícia de que a guerra acabou. Enovelada em releituras, a modernidade preferiu para a palavra Catarse o sentido de “purificação”, mas ofuscando-lhe aquele sentido preciso que apenas os gregos sabiam formular: “regressar puro”, ser recém-chegado ao mundo. Não pela primeira vez, mas uma outra. Pura

A palavra difundiu-se com idêntico conteúdo semântico por quase todas as línguas do mundo, ainda que sujeita a mil interpretações distintas: na medicina, a partir de Hipócrates, tornou-se desintoxicação daquilo que contamina, material ou espiritualmente, o corpo: o miasma; com Pitágoras, a resolução de um problema matemático; na psicoterapia, segundo Freud e Breuer em 1895, é a libertação de qualquer estado de ansiedade, apenas alcançada depois de recordados e revividos os acontecimentos que lhe deram origem. E, em sótãos inquietos e sós, quantas vezes, por quantos anos, não desejámos nós também – nós, homens e mulheres, e não pântanos – que por esta palavra, em sangue e saliva, se nos libertassem os dias.

De forma bem mais simples – mas quão mais complexa – Catarse significa “abandonar, deixar ir”. Toda a dor, toda a paixão que contra nós se ergue deve poder ser levada e abandonada num lugar preciso. Fora de nós. Os gregos faziam-no no teatro que, longe de anódino passatempo, era uma obrigação cívica e moral. Aristóteles, na Poética, reflete sobre a forma como a mimese – a ficção, a imitação – do mal mais absoluto, da irracionalidade, da perda total de si é fundamental para nos libertarmos dos medos e das sombras que de outro modo poderiam transformar-se em demónios. Pensemos em Medeia, Clitemnestra, Édipo e Prometeu e nos seus trágicos destinos.

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Nenhum ser humano é apenas bom ou apenas mau, nada é apenas preto e branco, somos todos uma gama infinita de tons de cinza. É muito mais poético aceitar a nossa natureza imperfeita e irracional representada num palco e consentir que assim seja – catarse. Vivendo agora num outono cultural durante todo o ano em que os teatros fecham como as folhas caem das árvores, esta palavra obriga-nos a rebelarmo-nos. E a dizermo-nos.

Catarse para Platão é a palavra, mas não sob a forma de monólogo. Apenas o diálogo, a lógica e a empatia, a compreensão e a aceitação, nos poderão salvar das trevas da alma. Precisamos de colocar o nariz fora da escuridão da nossa caverna, como Er, o protagonista do Livro X da República. Er, o valente filho de Arménio morto em batalha, ergueu-se na pira antes de o seu corpo ser cremado e narrou aos homens o que, a mando dos juízes divinos, havia testemunhado na vida após a morte.

Após uma marcha pelos Infernos durante quatro dias, as almas dos mortos chegavam à presença de Ἀνάγκη (Anânke), a deusa da Necessidade, cujo eloquente símbolo era um fuso. A seu lado estavam as suas três filhas, as Parcas: Cloto, que fiava e cantava o presente, Láquesis o passado e Átropos, “aquela que não pode ser dissuadida”, o futuro. Um arauto segurava um grande cesto contendo todas as possibilidades e modelos de vida, dizendo às almas que seriam as únicas responsáveis ​​pelo seu destino: não seria um sorteio cego, mas uma escolha precisa.

Er percebeu então como os espíritos, movidos pela ingenuidade e pela irracionalidade, muitas vezes caíam em erro: os que na vida anterior, por exemplo, tinham habitado uma polis pacífica e bem governada escolhiam viver sob um tirano, lamentando bem depressa a tranquilidade perdida para a crueldade; Agamémnon optou por viver como uma águia, para que nunca mais qualquer traição escapasse ao seu olhar, enquanto Ulisses, cansado de tantas viagens, escolheu não se mover mais.

Depois de fazer a escolha, cada alma recebia de Láquesis o daimon (δαίμων), o génio tutelar, que faria com que a vida escolhida fosse cumprida; depois devia dirigir-se junto de Cloto para confirmar o seu destino e, por fim, até Átropos que o tornava imutável. As almas caminhavam então pela deserta e quente planície do Letes e, parando junto às margens, todas elas (excepto a de Er) eram obrigadas a beber a água do oblívio; os falhos em prudência bebiam excessivamente para tentar esquecer a dor sofrida. Aquilo que mais impressionou Er foi o facto de todos os mortos escolherem uma nova vida a partir das experiências negativas vividas na anterior, permanecendo absurdamente presos ao passado.

“Mas tudo deve ser ousado”, prossegue o poema de Safo, “pois…”. E termina assim. Jamais saberemos o que diria a composição após esse “pois”: os versos seguintes perderam-se e não chegaram até nós. Talvez Er tenha descido ao reino dos mortos para poder anunciar ao reino dos vivos que a desculpa de “tudo estar escrito” não colhe.

Numa aria de Paisiello, num belo filme sobre livros e o esquecimento, num poema imprevisto, em êxodos e reencontros, libertam-se as palavras que não dissemos, cumprem-se os gestos que, por pudor ou vergonha, não chegámos a esboçar, redimem-se todas as horas esperadas em espírito e verdade. Digamo-lo. Melhor, digamo-nos. Hoje. E consintamos que o mal se encaminhe para a catarse final.

“Tudo deve ser ousado, pois…”.