1 Faz agora dois anos, mudou-se de vida. O mundo, o país, nós. Houve uma espécie de ordem de António Costa – sempre há ele, vai para sete anos – e Portugal, como se fosse uma gaveta, fechou-se. Havia já notícias inquietantes de misteriosos vírus que vinham da China, doentes em hospitais da Europa, altas febres, o ar estava cheio de rumores, adivinhas, aflições. Mas não tinha a dra Graça Freitas avisado com invejável segurança que aquilo não era nada connosco? Tinha. Continuaríamos a viver como habitualmente (conhecida citação). Mal sabíamos nós porém que não continuaríamos e ainda menos que iríamos ter a companhia da dra. Graça diariamente e quase a toda a hora, durante meses e meses e meses. Da ultima vez que estive com humanos antes do mundo começar a girar a nossa roda foi, no mesmíssimo ano de 2020, na reunião anual do MEL, na Culturgest, nos dias 10 e 11 de Março. Muitos políticos, profissões liberais, estudantes, gente nova na plateia, algumas intervenções muito interessantes. Um arremedo da direita unida (que depois nunca mais ninguém quis transformar numa realidade útil). Presentes ao mais alto nível e intervindo, o PSD, o CDS, a IL e até o Chega, que o mesmo é dizer André Ventura, nesse tempo o Chega resumia-se ao dom da ubiquidade do seu líder.

(Pequeno apontamento de reportagem: lembro-me também do silencioso Passos Coelho se ter levantado da plateia onde durante horas ouvira atentamente o palco, para acompanhar Rui Rio que saía da sessão. Queria – vim a sabê-lo depois –. fazer-lhe algumas considerações a sós, sobre a sua já muito desconcertante liderança da oposição. O então líder do PSD, não parecendo discordar do discordante Passos, ouviu porém o que lhe dizia alguém de quem ele não gostava e que reciprocamente também não o apreciava por ai além. Mas nem Rui Rio ignorava o que significa Passos Coelho na direita portuguesa, nem este podia fazer de conta que aquele não era o dirigente-mor do maior partido da oposição, no caso, o partido de ambos – e a quem intimamente o mesmo Passos sempre vaticinara o fracasso político. A conversa não serviu de muito como se descobriria dois anos depois, mas tomei boa nota dela).

2 No dia seguinte, 12 Março, o país fechava como a tal gaveta e o Campo Grande – assim nos referíamos à família nesse tempo – mudava-se vinte e quatro horas depois para uma freguesia de Óbidos.

Ficámos 14 meses. Vivendo a certeza inquieta de uma nova circunstancia e de um novo modo de vida que brutalmente colidia com a concha de “segurança” onde nos instaláramos e na imunidade ao risco de que nos achávamos a salvo de tudo. Seguiram-se estranhas proibições, imposições, máscaras, distancia, confinamentos, filas de ambulâncias, contágios, “internamentos em cuidados intensivos”. Usava-se uma linguagem quase bélica e despropositadamente falava-se em guerra — eu própria assim falei do vírus: nas nossas demissionárias sociedades, “aquilo” era uma guerra. Passou tempo, a recuperação das rotinas possíveis foi-se reorganizando aos solavancos. A vida continuava mas “achava-se” que em décadas quase nada se vira assim de tão globalmente perigoso. Evocavam-se tragédias passadas, faziam-se comparações com outras datas infelizes e depois resumíamos tudo, concluindo que “afinal” éramos mais “vulneráveis” do que julgávamos. Que é outra forma de dizer que tínhamos medo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Um dia chegou a salvífica vacina que faz o que pode por entre os avanços e recuos de estonteantes “variantes” da Covid mas o que fez é muitíssimo: voltou-se a tona da vida. A tal “vulnerabilidade”, calcule-se, começou até a dissipar-se: sobrevivêramos. E não é verdade que o pesadelo estava a chegar ao fim? Podíamos deixar de ter medo.

3 Não podíamos. O verdadeiro pesadelo chegou sob a forma de outro vírus esse sim, chamado guerra. Letal mas anunciado: a Covid aterrara sem pré aviso mas Putin auto-sinaliza-se desde há anos. Sendo as coisas o que são e a natureza humana o que é, fez-se pouco caso: não habitávamos nós dentro de uma bolha supostamente segura, que banira a guerra como uma extravagancia fantasiosa? Não achávamos que depois de 1989 e 2001 a nossa vida terrena já tinha tido o seu lote de espantos e feitos? Que a envelhecida Europa nos certificava que a paz era eterna e que a guerra no nosso continente-berço caíra definitivamente em desuso?

Há 14 dias que não falamos noutra coisa, que empregamos com propósito termos bélicos, que abrimos a boca de incomensurável espanto perante quem não tem medo, corre riscos e afronta a morte a cada instante que pode ser o último. Já não estávamos habituados. Nem sequer nos lembrávamos que “se” podia ser assim. Mas na Ucrânia todos os dias eles nos mostram — com a vida — que só pode ser assim.

4 Lembro-me de Vladimir Putin numa mesa de jantar no Palácio da Ajuda, a poucos metros daquela onde eu me sentava. Devia ser pelo ano 2007, quando veio a Lisboa numa segunda visita oficial. Era um daqueles entediantes jantares onde se ouvem os talheres e normalmente não se conhece quem está ao nosso lado na mesa. Putin maçava-se ainda mais: alheado dali, comia pouco, não falava (cumpria os serviços mínimos protocolares), o rosto fechado e o mesmo olhar de sempre, com o mesmo aço lá dentro. Hoje interrogo-me: olhando para ele como olhei, teria dito ontem do que ele seria capaz hoje com calculada, fria e meticulosa preparação?

É certo que houvera o (inconfundível) passado do KGB onde, com brio implacável, ele excedera as expectativas de quem mandava; é certo que não perdoou nem esqueceu o pior dia da sua vida, esse 9 Novembro de 1989 onde. além de ruir o muro de onde lhe vinham as inabaláveis certezas que o guiavam, ruíra tudo o resto. E pela segunda vez: depois do fim do Império russo, o desmembramento do Império soviético.

Enquanto a América permanecia a potência que era e a China se tornara um indiscutível protagonista de primeira grandeza no xadrez mundial, a Rússia esmorecia. Perante a intencional e sobranceira indiferença do mundo, a imensa Rússia perdia poder, espaço, influência. Passara a haver só duas grandes superpotências. E ele Putin? E Moscovo? A Rússia deixara de contar? Parecia ao mundo que sim. E a Vladimir Putin, que não: era preciso pôr cobro ao vexame e termo á já indisfarçável humilhação. Recorrendo ao único modus operandi que conhece, Putin percebeu que poderia tratar de si, face a um ocidente distraído e desmobilizado do essencial: a humilhação não “passaria”.

5 E agora? Hoje, amanhã, daqui a oito dias? Para onde vai o vingador da nostalgia imperial perdida? Quer a Ucrânia toda pra que de lá possa partir para o resto da reconquista? Quer apenas uma parte para se oferecer ali uma zona de poder exclusivo que lhe permita outras excursões, Europa dentro? Até onde irá para limpar a sua humilhação politica internacional e a sua obsessão pessoal? Quer morrer dentro do império russo reconstruído com os que julga “seus”, compulsivamente unidos e a seus pés?

O homem mais solitário que hoje o mundo conhece – isolado externamente e já banido por parte considerável da população – quer o quê?

PS. O silêncio é espesso. Pesa. Os portugueses não sabem o que pensar nem o que os espera. Há duvidas que não se dissipam e receios não mitigados. São escassas e muito pontuais as intervenções – quase timoratas – das “autoridades”. Ouve-se o titular da nossa política externa, e pouco mais. O primeiro ministro “aproveitou” – aproveitou o quê? – para viajar até Africa com a espantosa justificação de que tinha duas viagens em atraso a Cabo Verde e à Guiné. O Presidente limitou-se aos serviços mínimos convocando um Conselho de Estado: nenhum destes responsáveis políticos tem nada para nos dizer de esclarecedor e consistente – a não ser o tema dos combustíveis – sobre o que “isto” significa para Portugal e os portugueses? Sobre o que eles próprios pensam, temem, conversam, decidem? E onde estão que não se ouvem (excepção para algumas palavras do general Eanes) os grandes senadores do regime? Que retivemos, numa hora destas, de ex-Presidentes, ex ou actuais dirigentes partidários, altas figuras do Estado, eurodeputados com assento nos dois grandes partidos europeus? Nada,  não foi? (Ou quase…)