A habitação para a classe média é um problema português e um dos combustíveis mais apreciados para fabricar demagogia, indústria em que os nossos governantes e peritos se distinguem como produtores de altíssimo rendimento. Vivemos perdidos num Estado grande, fechado sobre si mesmo, e um insaciável consumidor de recursos; mas, ao mesmo tempo, integrado numa economia aberta, que é a União Europeia com a correspondente livre circulação de pessoas e bens. O resultado? Uma economia nacional exausta, incapaz de pagar bons salários. E uma construção aos mesmos custos que no resto da Europa: obedece às mesmas regras, quando não obedece, muitas vezes, a regras mais apertadas; os materiais e tecnologias custam praticamente os mesmos preços; a mão-de-obra talvez seja mais barata, mas os impostos são seguramente mais altos. Em resumo, como resultado, a habitação atinge valores que a classe média não consegue pagar. O que começa a causar sarilhos ao próprio Estado. Há vagas de emprego para enfermeiros e professores que ficam por preencher. Abrem-se concursos e não aparecem candidatos, porque as pessoas não conseguem pagar uma renda para trabalhar em Lisboa. O salário não é suficiente.

Por um lado, a solução óbvia é desenvolver a nossa economia; e, por outro lado, inundar o mercado com casas, na velha sensatez de aumentar a oferta para provocar a descida de preços. Só que ambas as abordagens demoram tempo. Precisamos de respostas rápidas, mesmo admitindo que elas comportam defeitos, para acudir ao problema e tentar impedir que se alastre, como no caso dos concursos vazios, a outras áreas da sociedade. Com uma subtil diferença aqui, outra ali, no fundo as respostas rápidas que vemos discutir são duas: a chamada “renda acessível” e o subsídio de apoio às rendas.

A renda acessível é a construção ou reabilitação de casas, promovida pelo Estado ou pelas autarquias, atribuídas por sorteio. O Estado não consegue construir o suficiente, nem consegue convencer os privados a construir em condições tais que permitam, no fim do processo, alugar estas casas a preços comportáveis. Assim sendo, haverá sempre mais famílias do que casas disponíveis, o que justifica o sorteio e outras excentricidades. É um modelo que vive submerso em burocracia: começa na escolha dos terrenos ou dos edifícios a reabilitar; passa por concursos disto e daquilo; por empreitadas e alvarás; pelo licenciamento das obras urbanísticas e pela escolha meticulosa de quais os regulamentos a respeitar como se tivessem sido desenhados tão perfeitamente quanto o narizinho do menino Jesus, e quais os que podem ser desprezados por arbitrários e decorativos como efectivamente são; passa ainda por verificações, inspecções, e fiscalizações de toda a pena e pinta; passa por admitir a família Mendes e a família Castro, mas excluir a família Freitas, a família Gomes e a família Lopes; e acaba no sorteio propriamente dito. Este fastidioso parágrafo serviu-me para mostrar a sopa de pequena, média, e grande corrupção que só não cresce à sombra da “renda acessível” se todos os que lhe tocam, nem que seja com um pau, forem querubins. Ou militantes do Partido Socialista.

Já o subsídio de apoio às rendas, por sua vez, fixa um conjunto de critérios (como o rendimento mínimo e máximo das famílias, o seu tamanho, o valor das rendas, etc.) e atribui um subsídio a todas as pessoas que reúnam aquelas condições. Até ao dia de hoje, e desde que é governada pela coligação Novos Tempos, a Câmara de Lisboa ajuda cerca de 800 famílias. Já se disse atrás, mas convém repetir que as respostas rápidas trazem com elas defeitos. Reconhecer que o subsídio de apoio às rendas não contribui para lhes baixar o valor, pelo contrário, até pode contribuir para as subir, é uma maneira de manter presente e firme a convicção de que esta resposta não se deve prolongar. E muito menos deve ser a única abordagem em matéria de políticas de habitação.

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De qualquer modo, o desenvolvimento da economia portuguesa está nas mãos das nossas empresas, da nossa fiscalidade, e dos nossos tribunais; mas depende sobretudo de decisões no plano do governo da República. Já os custos de construção e reabilitação podem depender em larga medida das decisões de política urbanística no plano municipal. A simplificação dos processos de licenciamento contribui para baixar os preços. O alargamento, em número e extensão, das áreas de reabilitação urbana (ARU) ajuda a simplificar os processos e, além disso, traduz-se numa descida de impostos. Estes instrumentos estão disponíveis para as Câmaras de Lisboa e Porto, onde o problema de habitação para a classe média ganha dimensões maiores, fazerem a parte que lhes compete.

Até lá, o subsídio de apoio às rendas tem vantagens decisivas que o distinguem do modelo de “renda acessível”. Uma dessas vantagens está na ausência de sorteio: é um modelo universal. A habilidade política está em desenhar uma resposta que consiga ajudar todas as pessoas que se encontrem nas mesmas circunstâncias. Tem um critério objectivo, não é aleatório. Outra vantagem é a flexibilidade. Esta política pode ser ajustada com o tempo, de acordo com as variações do mercado, do rendimento das famílias, e até com as variações de disponibilidade orçamental da própria Câmara.

Por algum motivo, as políticas conservadoras têm uma preocupação de prudência. Evitam abrir portas que, depois de abertas, e de por elas entrar ou sair sabe Deus o quê, não se conseguem voltar a fechar. Preferem soluções elásticas e ajustáveis, que permitam a correcção de erros, e que permitam também, acima de tudo, a adaptação progressiva às mudanças na sociedade.