O meu pai, a minha mãe e a minha irmã são professores. Tenho, por isso, uma convivência familiar com esta profissão desde que me lembro de ser gente. Recordo com particular nitidez a pasta de pele preta que todos os dias o meu pai transportava de e para a escola (“a burra”), daquelas assim bojudas que fecham com uma fivela de metal, e que guardavam os testes, a caderneta com as fichas de aluno, os manuais e marcadores para stencil e demais material escolar. A bata branca imaculada da minha mãe, e que esta levava no braço sem quaisquer vincos, e que se coloria com o seu sorriso rasgado para todas as crianças, guardando nos bolsos tesouros incalculáveis como fitas, pedacinhos de papel colorido e brilhante ou pequenas flores. Conselhos de turma, reuniões com encarregados de educação, festas escolares, visitas de estudo, avaliações, preparação de aulas fazem parte do meu imaginário sem excepção. Confesso que, ainda durante bastantes anos, o que observava do dia-a-dia profissional da minha família, das suas conversas e desabafos e das minhas visitas ocasionais às suas escolas constituíam ponto de comparação com os professores que ia tendo e, de certo modo, também avaliando.

Quando me tornei Psicóloga e comecei a trabalhar com outros adultos que eram professores e com adolescentes e jovens que frequentavam algum sistema de ensino, o meu conhecimento da profissão de professor adensou-se pela diversidade de prismas sobre a mesma que tive oportunidade de explorar. A Dulce [nome fictício] teve um importante contributo nisso. Quando me procurou encontrava-se deprimida, o seu marido estava desempregado e cuidava do seu pai que tinha uma demência. Com abatimento, reconhece a intolerância e ressentimento que sente para com os seus alunos e que, aos seus olhos, se tornaram preguiçosos e mal-educados. Sentia-se revoltada com os colegas da Direcção do Agrupamento que ignoraram o tanto que já tinha contribuído para se centrarem nas queixas recentes dos pais e também distanciada dos demais colegas de quem não tinha o apoio que desejava. Orgulhosa da energia e resiliência que a tinham caracterizado ao longo da sua carreira, do exemplo de vitalidade que sempre fora para a sua família e amigos, simplesmente não conseguia partilhar as suas dificuldades, o cansaço que a inundara e pedir ajuda. Queria voltar ao que era, e aguentar mais um ano, e outro, e outro…

O enorme desgaste físico e emocional a que estão sujeitos, a perda de reconhecimento social, a precariedade laboral e falta de estabilidade familiar em que tantos vivem, a diversidade de perfis de estudantes e níveis de ensino com que têm de trabalhar acrescida da carga de tarefas burocráticas, a exposição constante de si mesmos perante grupos de crianças e adolescentes tantas vezes indisciplinados, escrutinados e desvalorizados por pais e mães que por vezes se demitem das suas também responsabilidades educativas faz-me pensar acerca do auto-cuidado dos professores. Que condições encontrarão eles para assegurarem o seu bem-estar, se dedicarem ao seu desenvolvimento pessoal, cuidarem de si enquanto pessoas sem ser já em situações limite como as da Dulce?

Deveria fazer parte do início do ano lectivo a preparação não somente técnica e logística para o mesmo, mas também física e psicológica. Afinal de contas, os professores não são máquinas de “debitar” matéria, que ali estão sempre que toca a campainha para a aula, são pessoas e que muitas vezes se tornam referências nas nossas vidas.

Psicóloga especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, Psicologia da Educação, Psicoterapia e Psicologia Vocacional e do Desenvolvimento da Carreira

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