Todos os sábados, ainda não nascia o sol e já se fazia sentir uma forte agitação no terraço. Era o barulho da betoneira que começava desde logo a misturar a areia e cimento, que depois transitava para o carrinho de mão ou para os baldes que se faziam chegar a quem estava a trabalhar. Foi assim, que cresci. Durante muito tempo fui vendo a casa dos meus pais a ganhar forma. Todos os tempos disponíveis serviam para formar paredes e teto para que a família tivesse uma casa. Foi um trabalho árduo, de muitos fins de semanas e férias hipotecadas para que hoje, a casa, não fosse uma propriedade do banco. Foi assim com os meus pais e com quase todas as outras casas de década de 90. Sem facilitismos, mas com possibilidade de se ser proprietário de uma casa.

Ter uma casa não pode ser um luxo, aliás está consagrado na constituição: “Artigo 65º Habitação e urbanismo Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”

Assim, consagrado em sede de constituição, relembra-nos que ter uma casa é um alicerce para uma base familiar estável e segura. Um alicerce que está à mercê de um mercado que deixa muitas famílias vulneráveis. A subida da Euribor pode fazer disparar prestações em 100/200 euros! Asfixiando desta forma os orçamentos familiares que não crescem na mesma medida.

Estamos a falar de quem consegue chegar ao mercado.

Agora, há todo um conjunto de famílias que não chega ao mercado imobiliário. Falamos em muitos casos de famílias monoparentais. Este é um problema estrutural do país que se tentou resolver logo após o 25 de abril, já cantava Sérgio Godinho “A paz, o pão, habitação Saúde, educação, só há liberdade a sério quando houver”. Porém, passado mais de meio século muito ficou por resolver.

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No levantamento promovido pelo IHRU (Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana), em 2018, identificaram-se 25762 famílias a residir em situações insatisfatórias. Isto é, habitações precárias, com alojamentos construídos com materiais módicos, sem eletricidade, água canalizada, saneamento básico ou iluminação pública.

O desenvolvimento das políticas de habitação social em Portugal foi casuístico, sem continuidade, sem sistematização temporal nem estratégia a médio e a longo prazo. Atualmente, subsistem graves problemas de acesso a habitação condigna, que supostamente serão resolvidos/atenuados com a famosa bazuca.

À partida a componente da Habitação do PRR pretende “relançar e reorientar a política de habitação em Portugal, salvaguardando habitação para todos, através do reforço do parque habitacional público e da reabilitação das habitações indignas das famílias de menores rendimentos, por forma a promover um acesso generalizado a condições de habitação adequadas.” Ainda dentro do PRR está consagrado no âmbito do Parque público de habitação a custos acessíveis, a concessão de apoio financeiro, mediante empréstimo, destinado a financiar projetos que permitam a ampliação do parque habitacional público a preços acessíveis, garantindo a existência de oferta de habitações de rendas acessíveis.

O investimento, no seu todo, consistirá na construção de novos edifícios, na aquisição para reabilitação e na reabilitação de habitações públicas de modo a disponibilizar, pelo menos, 6.800 alojamentos e subsequentemente arrendá-los a preços acessíveis.

Falamos em 167,8 M€ que no papel se destinam a financiar 1.590 habitações destinadas à promoção de arrendamento a custos acessíveis para as famílias que não encontram respostas no mercado tradicional por incompatibilidade entre os seus rendimentos e os valores de renda praticados.

No papel as medidas estão descritas. Porém, com o aumento da inflação, com a escassez de mão de obra e com o timing apertado para a execução do PRR podemos estar aqui duas décadas depois a falar das dificuldades de Portugal ter uma habitação condigna para toda a população. Estando desta forma hipotecada mais uma geração que não consegue viver numa habitação condigna.