Friedrich Hayek defendeu que existe um caminho. Nós, os Portugueses, somos a prova viva que existe uma vocação.

Um talento inato para servir. Uma vocação perene que não se desmonta nem desnuda, antes se reveste e reinventa recorrendo-se do amplo guarda-fatos que o espírito do tempo preenche. Ou a espuma dos dias. Ou apenas a espuma, pois, de facto, esta subserviência tem nela algo de húmido, como que uma transpiração impregnada daqueles miasmas que nos desaconselham a qualquer ingestão.

Dezenas de cidadãos decidiram-se a juntar ao redor de uma lúgubre missão: a publicação de uma carta aberta às televisões generalistas nacionais. Terão sido vinte, trinta, mais? Honestamente, não contei. Para todos os efeitos, mais do que um já seria dolorosamente excessivo. Não sendo a ação de admirar no país do “respeitinho”, é inescapável não dar conta da quantidade de professores universitários que carimbaram a carta. Posição que ainda ontem víamos como um farol do cosmopolitismo, hoje vai dando sinais de ter uma franja que se conforma e conforta com o politismo. Para completar a alucinação, a carta não escapou, imagine-se, à assinatura de dois jornalistas.

O texto começa esclarecedor desde o início – “Sabemos que há uma pandemia – e que o SARS-CoV-2, em vez de se deixar ficar a dizimar pessoas no chamado Terceiro Mundo, resolveu ser mais igualitário e fazer pesadas baixos em países menos habituados a essas crises sanitárias”: a típica acusação semi-velada, arrogante, lançada ao comum ocidental capitalista que não se preocupa com justiça ou desigualdade, sobre o qual os signatários claramente se elevam para marcar o que os separa. Os autores prosseguem depois na alucinação, consubstanciada no pedido que remetem aos jornalistas para pararem com as acusações, ou não darem palco a quem as faça, acometidas aos nossos governantes, cientistas e profissionais da saúde. Em resumo, anestesiar o escrutínio, matá-lo.

Pedido talvez seja um salto de fé. Os autores, na verdade, “não aceitam” por duas vezes, “não podem admitir” uma, “não podem aceitar” outra e terminam a “exigir”.

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Não é de espantar que, em tempos de crise, grasse em muitos a visão de que se deve moderar a crítica face aos decisores. Embora não acompanhe a visão, de todo, é-me compreensível. Para lá do compreensível, do razoável, do saudável, encontra-se a tentativa de impor este silenciamento aos demais. O delírio atinge o seu cúmulo precisamente na última frase – “E, sobretudo, que [a informação veiculada] respeite a democracia”. Ei-lo, o servilismo que não conseguem deixar de prestar, talvez até mais do que aos governantes em si, à prisão que os próprios alçam à volta dos seus dogmas.

Uma das vitórias da democracia é que se possa fazer pouco dela como nessa sepulcral sentença, mas até as almas mais tolerantes encontrarão dificuldade em se manterem imperturbáveis face a tal invocação.

E nós lá prosseguimos, entretidos a comentar a catadupa de cancelamentos e suas derivadas, tangentes e bissetrizes. Como que a comentar o louco que dança divertidíssimo e sozinho ao som da banda da festa. Só que a banda não pára de tocar, e os loucos, cada vez mais loucos, vão-se amontoando e começando a pisar quem não dança.

Claro que, sem treino, o talento de pouco vale. E, por cá, o nosso talento é mimado pelos mais sublimes mestres. António Costa e os seus sequazes são excecionais neste ponto, pródigos nos métodos: desde a mistificação de uma campanha internacional contra Portugal à perseguição que a família Mesquita Guimarães não deixou ainda de ser alvo por parte do Ministério da Educação.

Difícil encontrar uma nota positiva para concluir, é tudo demasiado desolador e preocupante. Bem, quiçá poderemos ser os melhores do mundo a praticar o servilismo (sim, eu sei: é cientificamente comprovado que não posso relegar um povo maioritariamente caucasiano à condição de escravo; mas imagine-se que é uma metáfora, essas já são aceites!), patenteando que não somos somente os melhores do mundo a afirmar que somos os melhores do mundo.