Tinha nove anos. Já lhe tinham despistado o jeito para nadar, o gosto da menina era imenso e, portanto, havia que apostar no talento. Passava a vida nas piscinas com um treinador. Ouvir, aprender e melhorar, era o objetivo. Nunca foi passar pelo que, ainda hoje, não deixa a mente de Joanna Maranhão em paz. O homem que a treinava tornou-se no homem que abusou sexualmente dela. A cabeça da criança ficava marcada, mas só mais tarde, quando fez escala na adolescência para chegar à idade adulta, é que começou a pensar como o faz hoje: “No momento em que ele o fez, eu achava que era errado, sabia que era doloroso, mas não sabia o que era”.

A nadadora foi crescendo e tentando contar o que lhe acontecera a quem lhe era próximo. Acumulava coragem, procurava as palavras certas e desabafava. A mãe e a tia-avó foram as confidentes que partilharam o descrédito, preferiram ver a confissão como uma confusão inventada pela infância de uma criança. “Você deve ter confundido com um carinho”, respondiam, por costume, aos desabafos de Joanna Maranhão, enquanto ela ia nadando e dando nas vistas. Em 2004, nada rápido o suficiente para ir dar braçadas a Atenas, quando os Jogos Olímpicos regressaram ao berço.

Mas o trauma continuava a morar-lhe na cabeça. Por mais medalhas que pendurasse ao pescoço (foram várias, durante os anos, nos Jogos Pan-Americanos), a brasileira não o esquecia. Devorava-a. “Quando menstruei e meu corpo começou a tomar forma, eu cortei o cabelo bem curto, passei a usar roupa larga, porque não queria ser vista como menina. Quando alguém passava na rua e dizia que eu parecia um menino, era minha maior alegria”, contou à BBC Brasil, há dias.

“Quando dei o primeiro beijo, fiquei um ano sem beijar e sem conseguir olhar na cara do menino. Criei um medo muito grande de ficar no quarto sozinha. Fiquei anos na terapia e não conseguia falar. De repente, eu comecei a namorar um menino e fui lembrando e aí contei para ele e ele pediu para eu procurar ajuda. Quando falei disso pela primeira vez, fui lembrando dos episódios, aí você entra num buraco negro, não conseguia nem olhar para a piscina.”

Sentiu-se assim até não poder mais. Em 2006, com 19 anos, tenta acabar com a vida que sentia a consumi-la. O suicídio não se concretiza, mas a tentativa marca-a. Essa e a que repete, em 2013, ambas consequência do abuso do qual foi alvo em criança e do aperto que sempre sentiu à sua volta. Tornou-se depressiva e teve de aprender a lidar com isso. Ou a ganhar a si própria. “Hoje, eu posso dizer que estou bem. Eu quero sempre estar bem, mas sempre não é todo dia. E eu tenho recaídas, como tive no ano passado. É um processo diário essa luta, tenho que estar sempre me vigiando fisicamente e psicologicamente”, explicou.

Hoje pode dizer que está melhor. Joanna Maranhão vai participar pela quarta vez nos Jogos Olímpicos, aos 29 anos. Mas nem é isso que a move, tão pouco foi esse o motivo pelo qual se tem desdobrado em entrevistas. O foco tem estado no abuso que sofreu e na forma como não se cansa em lutar para que outras mulheres não passem pelo que a brasileira passou. Há dois anos criou a Infância Livre, uma Organização Não-Governamental para ajudar crianças e jovens vítimas de violência sexual e, em 2012, viu o Brasil aprovar uma lei que foi batizada com o seu nome — que ditou que o prazo para crimes de violência sexual prescreverem passasse a ser contado apenas quando a vítima completa 18 anos.

Quanto à ONG que criou, serve o propósito para o qual Joana Maranhão a criou e que continua a defender: “Mais importante do que desmascarar o pedófilo é educar sexualmente as crianças. É preciso ter uma educação sobre isso, sobre qual carinho pode, qual não pode, o que são certas coisas. É preciso falar disso na escola”. A nadadora considera ser “importante dar liberdade” a uma criança de modo a que, “se acontecer algum abuso”, ela “saiba identificar”. No fundo, luta para que não acontece o que aconteceu com a brasileira.

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