Olga Roriz passou estes últimos dias a adaptar ao palco do Teatro Camões um espetáculo que já foi apresentado em Ílhavo e Famalicão. A passagem por Lisboa, na sexta-feira e no sábado, dias 15 e 16, tem dado mais trabalho do que o previsto, em nome de uma relação íntima com o público.

“O Camões tem uma plateia enorme, o que cria falta de emotividade e intimidade, por isso decidi avançar para a frente do proscénio”, explica a coreógrafa ao Observador. “Achei preferível galgar uns três metros para que os bailarinos se situem na avant-scène e a peça ganhe intimidade.”

Na terça-feira à tarde, ensaiou com os bailarinos, à procura de resolver com eles os problemas de adaptação à sala. Em cena estava um sofá, um frigorífico, mantas e almofadas, baldes e alguidares com objetos que imitam pedras. Uma camada fina de pó subia pelo ar sempre que alguém se mexia.

Antes que Matem os Elefantes é a mais recente proposta de uma das mais importantes coreógrafas e bailarinas portuguesas, cujos 40 anos de carreira se assinalaram no ano passado.

Criada no estúdio da Companhia Olga Roriz, no Palácio Pancas Palha, em Santa Apolónia, gira em torno da guerra civil na Síria e incorpora, como quase sempre acontece com Olga Roriz, ideias e sugestões dos bailarinos. São eles Beatriz Dias, Carla Ribeiro, Marta Lobato Faria, André de Campos, Bruno Alexandre, Bruno Alves e Francisco Rolo.

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A autora dirige-os como se estivesse a aperceber-se de um espetáculo que nunca viu. E assim fez no ensaio de terça-feira.

“Desculpem lá, o frigorífico está alinhado com o sofá desde no início?”, perguntava aos sete intérpretes em palco. “Já estou senil, não sei se esta parte tem música ou não”, comentava. A seguir, uma ordem sob a forma de pedido:

Ó meninos, já estão a fazer outra coisa, vi agora quatro versões, vamos lá escolher a versão final da cambalhota.”

A peça dura quase duas horas e vive de silêncios, praticamente não tem música. Começa com um vídeo do qual chegam sons e legendas, mas não imagens: são crianças sírias em depoimentos retirados de documentários sobre o conflito que se iniciou em 2011.

O título remete para a extinção dos seres vivos, sendo os elefantes símbolo da memória e da sabedoria que se perdem com o horror da guerra. “É a sensação de que se matassem todos os elefantes seria o reduto da humanidade que se perdia”, sublinha a coreógrafa.

[vídeo promocional de Antes que Matem os Elefantes]

Alepo é a cidade representada. Os sete intérpretes estão como que dentro de um apartamento destruído pela guerra. Não se sabe se se conhecem ou não. Podem vir a fugir dali e a tornar-se refugiados, ou são dos que ficaram e resistiram, dispostos a reconstruir o país, o que será a nota de esperança do espetáculo.

“Não é uma família que vive naquele apartamento, são pessoas que foram ali para se abrigarem. O apartamento está destruído, por isso caem pedras ao longo do espetáculo. Os bailarinos foram criando e descobrindo qual a relação entre aquelas personagens, eu só não queria que fossem amigos ou familiares. São pessoas que estão debaixo do mesmo fogo, são cúmplices, entreajudam-se. Há um rapaz mais novo que parece encontrar a mãe e a irmã em duas das intérpretes, mas os outros não têm afinidades familiares. Um dos rapazes não existe, é uma alma penada, o fantasma de alguém que já morreu e agora habita aquele abrigo”, descreve Olga Roriz.

Fácil será perceber, pelo tema e pelo ambiente: Antes que Matem os Elefantes é um objeto negro. A cena tem à vista varas e gradeamentos da estrutura de palco, como se também o teatro estivesse em ruínas.

“Há muitos momentos individuais, com bailarinos a solo, quase tudo em silêncio, muito pesado”, resume a coreógrafa. “Criar foi bom, mas a pesquisa e o aprofundar do tema foi muito doloroso, para mim, para o Paulo Reis, que é assistente de dramaturgia, para os próprios bailarinos e mesmo para a produção.”

Entre viagens

Olga Roriz tinha acabado de deixar Budapeste em setembro do ano passado quando centenas de refugiados tentavam entrar numa estação de comboios daquela cidade, na esperança de chegarem à Áustria e à Alemanha. Nessa altura já andava a pensar numa nova criação que iria incluir pessoas comuns, homens, mulheres e crianças. De repente, as imagens de Budapeste deram-lhe o tema e o título: Welcome, uma peça sobre refugiados.

“Achei que era preciso alertar as pessoas e comecei a fazer uma peça sobre os refugiados. Só que ao longo da pesquisa senti-me muito mais atraída pela origem dos refugiados, pelo conflito na Síria, e um dia decidi esquecer a primeira ideia. Não conseguia deixar de pensar no conflito, queria um apartamento em Alepo, era algo mais concreto em termos de espaço e tempo, e o bailarino precisa de ter tudo muito preciso para depois se perder nas improvisações. Foi assim que aconteceu”, recorda Olga Roriz.

O espetáculo teve estreia absoluta a 29 de abril, Dia Mundial da Dança, no Centro Cultural de Ílhavo, tendo sido apresentado em maio na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão. Passa agora pela capital, seguindo para Viana do Castelo (23 de setembro), Bragança (29 de outubro) e o Porto (janeiro de 2017).

Não sendo a criação mais política que fez até hoje, será a mais política das últimas duas décadas. Olga Roriz recorda Propriedade Privada, que montou em 1996, com base no tema do Holocausto, e nota que sempre apresentou em palco “uma certa forma intervenção”, em torno de assuntos como a violência doméstica, a solidão ou a velhice.

“Preocupo-me com as pessoas e acho que a maior parte dos artistas também, mas não devemos sentir obrigação de criar em torno de temas políticos”, defende.

“Temos de pôr em palco aquilo que nos toca e não aquilo que agrada às pessoas, porque se não acabou-se o artista. Tudo o que fazemos é para o público, mas não podemos estar a pensar se o espetáculo é longo, se é denso. A criação é instintiva. Quem vai ver tem de sair da sala pelo menos a pensar. Pode concordar ou discordar, gostar ou não gostar, a ambiguidade da dança permite isso exatamente. Os artistas têm este privilégio de alertar as pessoas, fazê-las pensar, nem que seja para olharem um telejornal de outra maneira.”

Antes que Matem os Elefantes, espetáculo de Olga Roriz, no Teatro Camões (Parque das Nações, Lisboa), na sexta e sábado, dias 15 e 16 de julho, às 21h00, com bilhetes entre 5 e 25 euros.