Naqueles tempos, com a rivalidade entre Benfica e Porto a atingir o paroxismo, o meu primo Fernando Braz, fanático portista com humor de caluanda, ao ver o velho capitão nas conferências de imprensa dizia: “Caramba, o cota Wilson está bem desactualizado.” Traduzindo para benfiquês, o nosso capitão, velho lobo dos mares, era um bombeiro anacrónico que não corria para apagar fogos. Vinha tranquilamente, observava com atenção e algum espanto o espectáculo das chamas e a primeira coisa que fazia, no meio da histeria dos maçaricos, era desligar o gás. Depois, pegava num cobertor e atirava-o gentilmente sobre as chamas que se apagavam de imediato. “Agora sentemo-nos à volta das cinzas que eu quero contar-vos uma história”, parecia dizer o velho capitão, com a bonomia de um sábio oriental. E a história que contava era a do Benfica de antigamente, em que os jogadores não sujavam os equipamentos e os treinadores se arriscavam a ser campeões, o Benfica dos quinze minutos à Benfica e das camisolas que ganhavam jogos, aquele Benfica do senhor Mário Coluna e dos outros artistas que pisavam os relvados como príncipes.

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Quando, em meados da década de 90, o velho capitão foi uma vez mais chamado ao leme, esse Benfica de outrora já só era uma recordação gloriosa. Eram os tempos conturbados das operações coração, das capelas a Nossa Senhora dos Aflitos, de uma equipa de onde as referências tinham sido varridas e onde, a cada época, chegavam camiões de jogadores como Paulão Coice de Mula, Clóvis, Valdir – com o seu bigodinho de frequentador da Kananga do Japão – mas o motor era sempre o mesmo, João Vieira Pinto. No meio da tempestade, chegava o capitão Mário Wilson e, se não caminhava sobre as águas, fazia-nos acreditar que podíamos andar à chuva sem nos molharmos. Claro que era anacrónico. Na época dos comboios de alta velocidade, vinha de comboio a vapor, cofiando a barbicha à Ho Chi Minh, falando sobre o “cunho pessoal” que queria imprimir à equipa, lançando pérolas idiossincráticas sem nunca ofender os adversários, sem adoptar aquela postura belicosa e infantil dos arruaceiros de banco. O Benfica, enquanto instituição, afundava-se mas se era para ir ao fundo que fosse sob o comando do capitão. Se nos estamos a afundar e não há salva-vidas suficientes ao menos tenhamos classe, que haja alguém no naufrágio capaz de nos mostrar como se comporta um senhor.

O Benfica tinha mudado, infelizmente para pior, o futebol tinha mudado, mas Mário Wilson era o mesmo e, em momentos de desnorte colectivo, o amparo dos símbolos e das referências é tudo o que nos resta. É pouco? Não. É tudo. O velho capitão conquistou um título de campeão e duas taças de Portugal, a última das quais naqueles anos difíceis e tragicamente marcada pela morte de um adepto do Sporting no Estádio do Jamor. Mas não é por essas conquistas que Mário Wilson fica na história do Benfica. É pela maneira de estar, pela afabilidade, pela serenidade sábia, pelo civismo, por um conjunto de qualidades intangíveis que, embora não sirvam para abater o passivo e não possam ser exibidas nos museus, constituem o património imaterial e afectivo de um clube. Talvez o meu primo portista tivesse razão e, naquela altura, os métodos de Wilson já estivessem desactualizados. Porém, na hora da morte do velho capitão, olho para trás e, naquele tempo de escombros, o que vejo é um homem digno à altura da história do clube, que sabia que o Benfica tinha uma história antes dele, uma história da qual ele tinha feito parte e ainda haveria de ter muitas histórias depois de ele partir. Desactualizado? Prefiro dizer “intemporal”.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015

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