Um dia comemora-se o 25 de Abril, festeja-se a democracia, critica-se o populismo e declara-se morte ao nacionalismo. O Presidente da República até louvou a imunidade do sistema português a estes sarilhos que acontecem lá fora. No dia seguinte, com a democracia plena a fazer o seu curso no debate quinzenal com o primeiro-ministro, voltamos ao business as usual: assistimos a António Costa a recusar-se a responder perante o Parlamento — que tem a missão constitucional de fiscalizar o Governo — com argumentos contrários à lógica de uma democracia parlamentar. Costa recusou responder porque não era ao deputado Passos Coelho que devia a resposta, mas a outras instituições. Faz parte da lógica Parlamentar fugir a questões maçadoras, mas um primeiro-ministro que no dia anterior abriu os seus jardins a cravos e a poesia não pode responder assim.

Ausente do confronto com António Costa desde que os debates quinzenais atingiram temperaturas pouco recomendáveis, Pedro Passos Coelho regressou para colocar o primeiro-ministro numa situação indefensável. O líder do PSD quis saber porque razão o Governo vetou dois nomes para o Conselho de Finanças Públicas — um proposto pelo Banco de Portugal e outro pelo Tribunal de Contas. “Fê-lo sem apresentar justificação”, disse Passos.

António Costa começou por responder que o Governo deu a informação ao Tribunal Constitucional e ao Banco de Portugal “por via informal”, por os nomeados “não reunirem o perfil para essas funções”. Não foi mais longe do que isto: “Os nomes não mereciam aprovação”. Eram Teresa Ter-Minassian, ex-chefe de missão do FMI em Portugal, e Luís Vitório, ex-chefe de gabinete de Paulo Macedo no Ministério da Saúde. Os nomes e o perfil não foram falados no Parlamento, mas intui-se que não têm a mesma visão governamental das contas públicas. Passos voltou a insistir: “Não respondeu à questão: porque é que entendeu que não devia nomear os nomes propostos?”

E aqui António Costa resvalou para a justificação injustificável, uma resposta que vai para além das suas malas-artes do costume para fugir a perguntas difíceis: da maneira como a questão foi respondida, Costa negou ao Parlamento aquilo que é uma das suas funções fundamentais: a fiscalização dos atos do Governo. Podia fugir, chutar para canto, falar de outro assunto, assobiar para o ar, mas sem qualquer tipo de subtileza e longe da sua habilidade habitual, a resposta inconstitucional do primeiro-ministro foi esta:

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Se a proposta tivesse sido sua, daria satisfações sobre essa matéria. As propostas são do Banco de Portugal e do Tribunal de Contas, e responderei a eles. Não respondo a si o que não respondi a eles, que não perguntaram porque recusaram os nomes”.

Toda esta frase do primeiro-ministro viola o espírito e letra da Constituição. A Lei Fundamental diz que os partidos políticos representados na Assembleia da República “e que não façam parte do Governo gozam, designadamente, do direito de serem informados regular e diretamente pelo Governo sobre o andamento dos principais assuntos de interesse público”. É o artigo 114 sobre “partidos políticos e direito de oposição”. Mas diz mais, no artigo 156, sobre os “poderes dos deputados”: “Fazer perguntas ao Governo sobre quaisquer atos deste ou da Administração Pública e obter resposta em prazo razoável, salvo o disposto na lei em matéria de segredo de Estado”. E diz ainda o seguinte, no artigo 162, que define a “competência e fiscalização” da Assembleia da República: “Vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração”.

Perante nova insistência de Passos, Costa diria que, “nos termos da lei, uma entidade propõe e a outra nomeia. O Governo não prescinde nem abdica das suas competências. (…) Darei a resposta ao Banco de Portugal e ao Tribunal de Contas. Nunca nenhum me perguntou, não vou fazer essa indelicadeza.”

Com este nível de argumentação, é claro que António Costa mais não fez do que dar spin à nova narrativa do PSD que quer fazer passar a ideia de que o PS aspira a dominar as entidades independentes do Estado. “Trata-se de preservar a independência de uma instituição que o PS não respeita”, acusou o líder do PSD. Passos afirmou que Costa quer controlar o Conselho das Finanças públicas, que segundo o social-democrata “tem sido um dos poucos a desmascarar a aritmética impossível do Governo”. E deu depois a estocada: “Sabemos desde Jorge Coelho que quem se mete com o PS leva. O PS lida mal com as instituições independentes e lida mal com o Parlamento”. Para se defender, claro, Costa contrapôs com as sucessivas previsões falhadas do CFP.

Suave com as críticas da esquerda, a quem vai prestando os esclarecimentos de forma civilizada — viu-se hoje quando Catarina Martins quis saber o que se passava no Instituto Ricardo Jorge e até parece que não estava bem informada –, Costa nunca podia recusar a Passos “satisfações”. Aquilo não era um frente a frente televisivo. Era uma prestação de contas do Governo à Assembleia da República. No 25 de Abril festeja-se a democracia. O dia 26 de Abril devia ser para exercer o que se celebrou no dia 25.