O Ministério Público (MP) suspeita de prática criminal na concessão de créditos na Caixa Geral de Depósitos por haver “omissão de registos de incumprimento”, havendo clientes com créditos com problemas que estavam a ser classificados como “créditos sem incumprimento”. O MP aponta para “um ato deliberado no sentido de omitir o passivo gerado na esfera do banco”, sublinhando que houve “sucessivas alterações das condições dos contratos, nomeadamente no que diz respeito às garantias”. Isto entre 2007 e 2016. As suspeitas constam de um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa enviado à comissão parlamentar de inquérito sobre a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos na última sexta-feira, a que o Observador teve acesso.

Neste acórdão, que data de 20 de junho, o tribunal obriga o Banco de Portugal a entregar ao Ministério Público os documentos solicitados, que estariam sob sigilo bancário, recorrendo-se para isso do argumento de que a documentação é “indispensável” para a investigação criminal que está em curso. Para isso, o Acórdão da Relação cita o MP, que explica que a investigação se centra nos atos de gestão da Caixa, nomeadamente no que diz respeito à acumulação de créditos sem que as garantias bancárias fossem adequadas aos financiamentos concedidos. Isto “desde pelo menos meados da década de 2000”, sobretudo a partir de 2007, durante os governos de José Sócrates.

O acórdão refere que da análise à documentação já reunida nos autos se pode concluir o seguinte:

Terá sido determinada a omissão de alguns registos de incumprimento, como é o caso dos triggers de imparidade na área do locado imobiliária, na medida em que se detetou que clientes que apresentavam operações vencidas e tido pagas foram classificados no segmento ‘créditos sem incumprimento’. Tal situação aponta para um ato deliberada no sentido de omitir o passivo gerado na esfera do banco”.

Ou seja, houve ato “intencional”, acredita o MP. “Tais negócios (…) podem consubstanciar uma intencional prática de favorecimento de determinados agentes económicos em detrimento de outros face as condições de acesso ao mercado de crédito”, lê-se.

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Segundo se lê na promoção do Ministério Público — que já abriu um inquérito à gestão danosa da CGD em setembro de 2016 –, o banco público terá concedido um grande volume de crédito que resultou em imparidades superiores a 1,4 mil milhões de euros, e que ainda podem resultar em maiores perdas para o banco, sem as garantias devidas e sem cumprir regras de “racionalidade de gestão”. A maior parte dos créditos que resultaram nestas imparidades foram concedidos “a partir do ano de 2007, com sucessivas alterações das condições dos contratos, nomeadamente no que tange as garantias, até 2016”.

Acontece que, de acordo com o MP, o banco terá alegadamente escondido as imparidades, incluindo créditos de investidores que já estavam em incumprimento, registando-os como créditos que estavam a ser cumpridos.

“Os elementos já reunidos nos autos sustentam a suspeita de que a CGD foi confrontada com a necessidade de proceder ao registo de imparidade (desvalorização de ativos) que tiveram em grande parte origem na concessão de crédito, com violação de normas de racionalidade na gestão, nomeadamente no que tange a prestação de garantias ou outras perdas, sobretudo na área de investimento”, diz a promoção do MP que consta na decisão da Relação, assinada pelos juízes Artur Vargues e Filipa Frias de Macedo.

O Ministério Público diz ainda que, a confirmarem-se estas suspeitas, estes atos de gestão do banco podem ser considerados crime de administração danosa e crimes cometidos no exercício de funções públicas ou eventuais crimes de natureza patrimonial. A este rol de potenciais acusações, podem ainda juntar-se outras relativas às leis que regulam o gestor público, que se aplica aos funcionários da Caixa Geral de Depósitos, por o banco ser detido a 100% pelo Estado.

Tudo suspeitas que envolvem diretamente os antigos responsáveis da Caixa, com o MP a situar os atos de natureza criminal partir de 2007.

Novo fôlego para a comissão de inquérito?

A coincidência de timings é relevante. O acórdão da Relação, com estas suspeitas do Ministério Público, data de 20 de junho (embora só tenha chegado ao Parlamento dia 7), sendo que a 4 de julho foi conhecido o relatório preliminar da comissão parlamentar de inquérito, redigido pelo deputado do PS Carlos Pereira, que apontava para a inexistência de pressões políticas e que descartava qualquer culpa das administrações da Caixa.

PSD e CDS criticaram desde logo o relatório e a pressa dos partidos da esquerda em tirar conclusões sem que fosse conhecida a documentação solicitada pelos deputados às várias entidades. Agora, sabe o Observador, o PSD quer convocar uma “reunião urgente” da comissão de inquérito para avaliar os “factos novos”. “Não pode haver um relatório final sem que haja apuramento dos factos novos”, diz fonte do PSD, lembrando que os indícios de que suspeitavam aparecem agora validados pelo Ministério Público.

O objetivo daquela comissão de inquérito era apurar o que se passou na Caixa na última década e meia, nomeadamente o que levou às elevadas necessidades de injeção de capital, mas depois de dezenas de audições e sem documentação os partidos da esquerda consideraram já estar aptos a tirar conclusões.

CGD. Não foram “demonstradas” pressões políticas nos créditos ruinosos

No relatório preliminar, assinado pelo socialista Carlos Pereira, lê-se que “em nenhuma situação ocorreram declarações na comissão parlamentar de inquérito que permitissem concluir da existência de práticas de pressão da tutela para a aprovação de créditos em nenhum dos períodos em análise”. Segundo o relator, parte da responsabilidade das elevadas necessidades de capital foi, na verdade, da crise. “É óbvio que à medida que a crise se foi acentuando e os problemas foram surgindo na CGD, designadamente ao nível do incumprimento de crédito ou da desvalorização dos ativos, a malha foi-se tornando mais apertada e foram sendo introduzidas alterações estruturais de relevo, nem sempre por decisão própria”, lê-se nas conclusões preliminares.

O relatório preliminar pode ainda ser alterado por sugestão dos deputados, sendo que as propostas têm de estar concluídas esta segunda-feira, para que o relatório possa ser votado e discutido a 18 de julho. O que o PSD agora quer é que os novos factos sejam devidamente apurados, antes de a comissão seja dada por encerrada.

Desde setembro de 2016 que o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) está a investigar os factos suscetíveis de integrarem o crime de gestão danosa cometida no exercício de funções públicas na Caixa Geral de Depósitos, inquérito que levou o Ministério Público a solicitar quebra de sigilo por parte do Banco de Portugal para fornecimento de documentação, designadamente relatórios relativos a programas de controlo e inspeção e supervisão. O MP pediu ainda ao Banco de Portugal informação sobre se o BCE tinha aberto um processo inspetivo ao grupo CGD.

O processo arrasta-se desde 2014, com Banco de Portugal a recusar-se sempre a entregar os documentos, mesmo depois de decisões dos juízes e da PGR nesse sentido, invocando segredo bancário. Agora, contudo, os juízes do Tribunal da Relação reforçam a ideia de que “está excluída a ilicute da violação do dever de sigilo a que o Banco de Portugal estava obrigado”, considerando que “se mostra indispensável e imprescindível ao apuramento dos factos em investigação e à viabilização da boa administração da justiça” o fornecimento dos elementos solicitados pelo Ministério Público.