Em “Nikita-Dura de Matar”, de Luc Besson (1990), Jeanne Moreau tem um pequeno papel como instrutora da futura agente secreta e assassina profissional do título, interpretada por Anne Parillaud, a quem aconselha a ser “primeiro um ser humano e depois uma mulher”. Anos mais tarde, Moreau, que entre outras coisas não tinha paciência para a obsessão de iludir e ocultar os estragos feitos pela idade, disse numa entrevista: “As pessoas – e as mulheres em especial – preocupam-se demais com o envelhecimento. Mas nós parecemos mais novos se não nos preocuparmos com ele. Porque para lá da beleza, do sexo, da titilação, da superfície, há um ser humano. E é isso que tem que emergir”.

Jeanne Moreau, que morreu hoje, aos 89 anos, em Paris, não tinha a beleza glamorosa que intimida de uma Catherine Deneuve, nem a beleza sexual que desatina de uma Brigitte Bardot. Era bonita de uma beleza cheia de personalidade, a essa medida humana que ela invocava, sem vestígios de uma perfeição sobrenatural ou de uma hipersensualidade animal. Uma beleza própria de uma mulher sensível, inteligente, intuitiva e complexa.

Moreau detestava a rotina, não gostava de se repetir ou de se deixar estereotipar, e isso está estampado na sua longa e variadíssima filmografia e nos seus papéis no palco e na televisão. Como muito poucas outras, ela foi uma actriz que interpretou as múltiplas formas que uma mulher tem de ser mulher, e expressou, graças a um raio de acção dramático invulgarmente amplo, a variedade e a complexidade do feminino. As suas personagens raramente são mulheres idealizadas, irreais, inatingíveis. São de carne, osso e emoções, profundamente humanas e rica e intrincadamente femininas no sentir e no pensar, no ser e no agir.

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Por isso, Moreau transcendeu movimentos cinematográficos, escolas e estilos de representação, géneros, tipificações e mudanças de gerações, tornando impossível colar-lhe qualquer espécie de rótulo, muito menos o de “grande dama”, que detestava. Nem sequer personificou a mulher quintessencialmente francesa, já que era filha de mãe inglesa (uma bailarina) e pai francês e tinha vários traços de carácter bem anglo-saxónicos (gostava de dizer: “A minha língua materna é o inglês. O meu lado feminino é inglês”) revelados numa certa distância, alguma frieza e um tipo de insolência que alguns realizadores detetaram e aproveitaram. Eis 10 títulos indispensáveis para o conhecimento de Jeanne Moreau no cinema, que de forma alguma esgotam uma filmografia de uma espantosa variedade, qualidade e gosto pela experimentação e pelo risco.

“Fim-de-Semana no Ascensor”, de Louis Malle (1958) – Jeanne Moreau já tinha vários participações no cinema, quase todas menores e desinteressantes, e era uma experimentada atriz de teatro, quando Louis Malle a foi buscar ao palco para, neste policial com música de Miles Davis, fazer o papel de uma mulher que mata o marido em conluio com o amante, simulando um suicídio. Contra tudo e contra todos, Malle insistiu em filmá-la com luz natural e escassa ou nenhuma maquilhagem, dando-lhe assim o seu primeiro grande papel no cinema e, segundo ele, “transformando-a numa mulher real”, sem nada a ver com as personagens artificiais ou tipificadas que tinha feito antes na tela.

“Os Amantes”, de Louis Malle (1958) – Moreau estava envolvida passionalmente com Malle quando interpretou aqui uma burguesa da província a que o muito ocupado marido pouca ou nada liga, que se escapa para Paris sempre que pode e acaba por encontrar satisfação sexual e sentimental, bem como um novo alento anímico, numa ligação fora do casamento com um homem mais novo. Jeanne Moreau tem uma interpretação formidável como Jeanne Tournier, compondo uma mulher que não se define apenas pela sua frustração emocional e pelo desejo sexual, mas também pela sua vida interior, e que nunca mendiga a compaixão do espetador.

“Recusa”, de Peter Brook (1960) – Segunda longa-metragem do encenador inglês Peter Brook, e adaptada para o cinema pela própria Marguerite Duras do seu livro “Moderato Cantabile” (o título original do filme), “Recusa” deu a Jeanne Moreau o prémio de Melhor Actriz no Festival de Cannes, partilhado com Melina Mercouri (“Nunca aos Domingos”). A atriz contracena com Jean-Paul Belmondo, interpretando uma personagem que tem afinidades com a de “Os Amantes”, e manifestando através deste papel num filme mais “cerebral” e contrário às convenções narrativas, assente na palavra e nas atmosferas, o seu interesse por novas experiências dramáticas e a sua preocupação em não ficar presa a um tipo ou género.

“A Noite”, de Michelangelo Antonioni (1961) – Moreau recusou ir para Hollywood e entrar em “Spartacus”, onde faria o papel que acabou por ser entregue a Jean Simmons, para poder trabalhar com Antonioni em “A Noite”. Acabou por não ser uma experiência feliz para ela, porque apesar de ter gostado de contracenar com Marcello Mastroianni, não se deu bem com o realizador, com o qual disse não ter conseguido “comunicar” (o que não deixa de ser irónico, tratando-se de quem se trata). Mas sai-se pelo menos tão bem como Monica Vitti, a musa de Antonioni e também no elenco, personificando a mulher de um escritor cujo casamento se está a esboroar, e que passeia a sua infelicidade átona pelas ruas de Milão.

“Jules e Jim”, de François Truffaut (1962) – O que dizer que já não tenha sido dito e redito da Catherine de Jeanne Moreau nesta obra-prima de François Truffaut? Apesar da história se passar no início do século XX e apanhar a I Guerra Mundial, a personagem de Moreau é uma explosão de modernidade, uma mulher como Truffaut, e a Nova Vaga, gostavam delas, uma das mais fascinantes, entusiasmantes e complexas a que a atriz haveria de dar corpo em toda a sua longa carreira, e que lhe ficaria para sempre associada. François Truffaut também aproveita os dotes vocais de Jeanne Moreau pondo-a a cantar, inesquecivelmente, “Le Tourbillon de la vie”, que é uma espécie de auto-retrato musical da própria Catherine, e da relação entre os protagonistas.

“Eva”, de Joseph Losey (1962) – Há quem jure por este papel de Jeanne Moreau e quem diga que foi um dos seus poucos e grandes passos em falso. Eu estou do lado dos primeiros. Moreau interpreta a Eva do título, uma mulher interesseira e sedutora que se envolve, em Itália, durante o Festival de Veneza, com um arrogante e brusco escritor galês (Stanley Baker) de origens humildes e que se encontra completamente fora do seu meio social. É uma relação estranha , contra-natura e condenada logo de início, que envolve manipulação, humilhação, violência e engano, e que à partida exigiria que a atriz que interpretasse a magnética e repelente Eva fosse uma bomba sexual. Uma ideia que Jeanne Moreau destrói com uma interpretação arrasadora.

“Diário de um Criada de Quarto”, de Luis Buñuel (1964) – O papel de Céléstine, a criada calculista, observadora e astuciosa, protagonista do livro violentamente anti-burguês de Octave Mirbeau, estava reservado para a mexicana Silvia Pinal, que Buñuel tinha dirigido em “Viridiana”, mas os produtores franceses preferiram uma actriz francesa. Jeanne Moreau foi a escolhida, e sai-se muito bem do papel, com uma interpretação subtilmente inteligente de uma mulher que tem que se manter à tona numa casa cheia de gente recalcada, repressiva ou perversa, não só entre quem manda como também entre quem serve, e também zelar pelo seu próprio futuro.

“História Imortal”, de Orson Welles (1968) – Originalmente rodado para a televisão francesa e depois estreado nos cinemas, “História Imortal” é baseado num conto de Karen Blixen. Welles desempenha também o papel principal, o de um rico mercador americano de Macau no século XIX, solteiro e sem herdeiros, que decide tornar real uma história contada pelos marinheiros, segundo a qual um homem velho e abastado teria certa vez pago a um jovem e pobre marujo para fazer um filho à sua bela e também jovem mulher. Jeanne Moreau é Virginie a rapariga escolhida pelo mercador, e consegue que os seus 40 anos não sejam um impedimento para a interpretar, nem às cenas de nudez.

“A Noiva Estava de Luto”, de François Truffaut (1968) – Nesta homenagem de Truffaut a Alfred Hitchcock, com base num policial de Cornell Woolrich, Jeanne Moreau é Julie Kohler, uma mulher que localiza, seduz e depois mata os cinco homens responsáveis pela morte do noivo, no dia do seu casamento. Moreau interpreta Julie não como se ela fosse uma qualquer heroína unidimensional de um filme de ação, mas como uma mulher que transporta consigo uma dor imensa, que talvez nem a vingança consiga atenuar, mas que está firmemente decidida a concretizá-la, e que muda de aspeto de acordo com o homem que vai abordar para atrair e eliminar. É outro dos seus papéis mais memoráveis.

“Aquele Amor”, de Josée Dayan (2001) – Nas poucas entrevistas que deu sobre “Aquele Amor”, Jeanne Moreau sempre recusou veementemente que a sua amizade de longa data com Marguerite Duras, que interpreta nesta fita sobre a relação da escritora com o muito mais jovem Yann Andréa, e se baseia no livro que este mais tarde escreveu, tivesse condicionado a forma como a personificou. Nunca neste filme sentimos que Moreau está de alguma forma a “imitar” Duras, e a facilitar e a “encostar-se” ao conhecimento privilegiado que tinha da autora, mas sim que a está a representar como faria como qualquer outra pessoa real, tivesse sido íntima dela ou não.