João Perna, motorista de José Sócrates, entrou ao serviço do antigo primeiro-ministro de forma quase casual. Não é um colaborador de longa data, tendo começado a trabalhar para Sócrates apenas em 2011, pouco depois de o socialista ter perdido eleições e se ter retirado da política ativa. Nessa altura, a irmã de Perna, funcionária do PS, soube que Sócrates procurava um motorista e sugeriu o irmão para o cargo. A contratação deu-se rapidamente.

A prima, o colega de faculdade, o irmão da funcionária. Como os arguidos da Operação Marquês se conheceram

Embora fosse colaborador do ex-primeiro-ministro há pouco tempo, Perna rapidamente se tornaria uma peça-chave para o sistema montado por Sócrates e o seu amigo, Carlos Santos Silva. É essa a acusação do Ministério Público, a cujo despacho o Observador teve acesso, onde se ilustra o alegado sistema de pagamentos de José Sócrates a uma série de pessoas próximas. Muitos destes pagamentos em dinheiro vivo teriam como intermediário João Perna, o motorista do antigo primeiro-ministro que, segundo a acusação, recebia cheques ou dinheiro vivo de Carlos Santos Silva e lhes dava uma de duas utilizações: ou pagava diretamente as despesas de Sócrates e dos seus familiares a partir desses fundos; ou entregava dinheiro vivo ao ex-primeiro-ministro.

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Umas vezes, João Perna limitava-se a transportar o dinheiro de umas pessoas para as outras; outras vezes, depositava-o primeiro na sua conta bancária.

O sistema de entregas de dinheiro seria vital para Sócrates, que, de acordo com o despacho, “ficava muito irritado quando o arguido João Perna, mesmo em razão de outros compromissos que lhe eram impostos, se atrasava em ir buscar o dinheiro para lhe entregar”. A mãe de José Sócrates, Maria Adelaide Monteiro, por exemplo, era uma das pessoas que Perna mais regularmente visitava para lhe entregar numerário — como de uma vez em que lhe terá entregado em mãos cinco mil euros para pagar as futuras férias de Maria Adelaide em Porto Santo.

Mas João Perna visitava mais pessoas a quem alegadamente distribuía dinheiro: Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates, receberia pagamentos em dinheiro vivo para ajudar em despesas com os filhos ou fazer face, por exemplo, a pagamentos do carro; Célia Tavares, amiga do antigo primeiro-ministro, receberia uma mensalidade de 400€, entregue em dinheiro vivo por Perna; e Maria João, secretária de Sócrates, auferiria um salário de cerca de dois mil euros alegadamente entregue em mãos, por Perna, na sua residência em Azeitão.

Viagens, iPhones, taxas de saneamento… As despesas de Sócrates pagas por Perna

O motorista, contudo, utilizaria o dinheiro que lhe era transferido para muitos outros fins que iam além da entrega a terceiros. De acordo com a acusação, Perna pagava diretamente inúmeras despesas de Sócrates, que iam desde roupa a alimentação, passando por combustíveis e jornais.

Operação Marquês. As contas do motorista de Sócrates

Alguns dos exemplos referidos no despacho de acusação revelam que os fundos de Perna sustentavam o antigo primeiro-ministro. Em dezembro de 2011, por exemplo, o motorista pagou os 880 euros devidos ao hotel Quinta de Seixeda a propósito de um buffet para 80 convidados. Nesse mesmo mês pagaria igualmente os custos relativos à impressão do livro de pai de Sócrates, Fernando Pinto de Sousa, no valor de 2.120 euros.

Em janeiro de 2012, o motorista pagaria em dinheiro vivo à agência de viagens Top Atlântico a quantia de 3.341 euros relativa a deslocações e estadias de Sócrates. Nesse mesmo ano, o motorista trataria de liquidar a fatura referente à taxa de conservação de esgotos relativa à casa de Sócrates no edifício Heron Castilho, no valor de 551,92 euros. No Natal desse mesmo ano, compraria quatro iPhones para dar de presente aos dois filhos do ex-primeiro-ministro e à sua ex-mulher (Sofia Fava), bem como ao companheiro desta. Já em 2014, seria o próprio Perna a pagar tratamentos dentários no valor de seis mil euros a Sócrates.

À semelhança de outros colaboradores, usou parte desses fundos para comprar exemplares do livro A Confiança do Mundo, chegando inclusivamente a pedir ajuda à sua ex-mulher, Olímpia Viseu. Esta, “não só acedeu a comprar exemplares da obra como, ainda, lhe cedeu o seu cartão de fidelização das livrarias”.

Parte do dinheiro foi usado para comprar exemplares do livro de Sócrates

João Perna chegou inclusivamente a emitir um cheque relativo à sua conta na Caixa Geral de Depósitos para cobrir “despesas da esfera pessoal e familiar” do antigo primeiro-ministro, como classifica o Ministério Público, referindo-se ao funeral de António José Pinto de Sousa, irmão de José Sócrates, que morreu em agosto de 2011. O valor do cheque à ordem da Servilusa tinha o montante de 27.315 euros.

“Aquilo não veio de bancos, não veio de nada, aquilo vem do esconderijo”

A situação não parecia ideal ao motorista, de acordo com aquilo que a acusação conseguiu averiguar. No despacho, é citada uma conversa entre Perna e a sua ex-mulher, que terá decorrido a 19 de fevereiro de 2014, onde o motorista se queixa da situação. Nessa conversa, refere-se a Carlos Santos Silva como “o outro”, que, de acordo com ele, ainda nesse dia lá tinha ido “com uma grande mala com dinheiro”. Perna, diz a acusação, interrogava-se, “em face da entrada de tanto dinheiro naquela casa, como é que o mesmo desaparecia tão depressa, considerando, no seu juízo, que aquilo era um crime”.

As suspeitas do motorista não eram novas. Ainda a 19 de outubro de 2013 tinha comentado com um seu conhecido que “se ficasse com o dinheiro que o arguido José Sócrates lhe deu, tinha dinheiro para viver até ‘agosto do ano que vem'”. O Ministério Público garante que Perna admitiu a hipótese, nessa mesma conversa, de não fazer as entregas de dinheiro devidas e de abandonar o emprego, já que, segundo o próprio, não haveria provas. “Aquilo é tudo pela porta do cavalo… Aquilo não veio de bancos, não veio de nada, aquilo vem do esconderijo…”, terá dito.

Tendo em conta que Perna recebia o valor do seu salário misturado com todos estes montantes, que pertenceriam na realidade ao seu patrão, o motorista começou a ter algum cuidado e a apontar para si a contabilidade devida. De acordo com a acusação, João Perna mantinha um livro de apontamentos “que detinha para esse efeito e onde registava várias das entregas que lhe eram feitas pelos arguidos José Sócrates e Carlos Santos Silva e onde anotava, igualmente, pagamentos de despesas que ia fazendo e que eram da responsabilidade do arguido José Sócrates.”

“Documentos”, “papéis grandes” e outros códigos

Embora desconfortável, Perna estava de certo modo também envolvido nas entregas “pela porta do cavalo”. Isto porque, para além de fazer as entregas de dinheiro e os pagamentos, respeitava os códigos impostos por Sócrates nas conversas telefónicas, a fim de nunca utilizar a palavra “dinheiro”. Assim seria instruído pelo seu patrão, como revela o despacho, citando uma conversa telefónica de 28 de fevereiro de 2014. Nesse telefonema, Perna ter-se-á referido a uma nota alta que precisava de trocar, tendo sido advertido por Sócrates para não falar “nisso” ao telefone.

O motorista terá ganhado algum à vontade com estes códigos. Uma vez, falando com a secretária Maria João, a quem ia entregar o salário em dinheiro vivo, comentou que o volume do envelope era menor porque se tratava de “papéis grandes”, como sinónimo para notas mais altas.

Mas os seus descuidos seriam por mais do que uma vez alvo de reparos por parte do antigo primeiro-ministro. O Ministério Público ilustra uma situação em que Perna, não conseguindo falar com Sócrates por alegada falta de rede, telefonou para a sua namorada à altura, Fernanda Câncio, a quem disse que já tinha ido buscar os “documentos”, conforme tinha sido instruído, e que “queria saber o que fazer com os mesmos”. Câncio passou o recado a Sócrates, que ligou mais tarde a Perna, “visivelmente irritado”, de acordo com o despacho. Na conversa, ter-lhe-á dito que “essas matérias” deveriam ser tratadas única e exclusivamente com ele.

O motorista chegaria mesmo a desabafar com outro colega de profissão. A Aníbal, motorista da Octapharma, disse que Sócrates não queria que ele falasse com ninguém , nem com os seguranças do seu prédio ou com funcionários da Octapharma, “com receio que [Perna] se ‘descaísse’ com alguma conversa acerca da forma como obtinha quantias em numerário”.

O contrato de Perna e os descontos por fazer

Apesar de pagar da sua conta milhares de despesas de José Sócrates, o salário de João Perna, previsto no seu contrato de trabalho (celebrado a 1 de setembro de 2011), era de apenas 500 euros brutos, a que se somava um subsídio de seis euros por dia. No entanto, o contrato previa possíveis “pagamentos adicionais discricionários e/ou regalias” que eram, contudo, efetuados “a título de mera liberalidade”. Poderiam, por isso, ser “suspensos ou retirados a todo o tempo, por decisão unilateral do 1º contraente”.

Na prática, o salário de Perna acabaria por ser sempre “superior ao estabelecido”, de acordo com o Ministério Público. Era pago em dinheiro vivo, disponibilizado por Carlos Santos Silva, “o que levava João Perna a dizer, em conversas que mantinha com terceiros, que parte do salário lhe era ‘pago por fora'”. Entre 2011 e 2013, recebeu o valor total correspondente ao salário anual, ou seja, de uma vez só — mas o motorista teve o cuidado de ir depositando na sua conta o valor aproximado ao seu salário oficial (cerca de 600 euros), todos os meses.

Embora acabasse por receber valores superiores aos cerca de 600 euros definidos no seu contrato, os descontos correspondentes a esses valores nunca foram efetuados (e por vezes nem os correspondentes ao seu salário “oficial”), quer para efeitos de IRS, quer para a Segurança Social. A título de exemplo, a acusação explica que em 2012 o valor declarado foi de 2.500 euros “quando, na verdade, ainda que tivesse sido comunicado o valor indicado no contrato de trabalho, deveria ter sido declarado o rendimento de €6.000,00 “.

O motorista estava bem consciente desta situação. “Referiu que estava a ser prejudicado quando desabafava com os seus familiares, já que isso iria fazer diferença em caso de baixa médica ou em caso de desemprego”, diz o despacho. Contudo, João Perna não se livra da acusação de branqueamento de capitais. E soma-se uma segunda, esta em nada relacionada com os famosos crimes de colarinho branco da Operação Marquês: detenção de arma proibida, a propósito de uma pistola Tanfoglio transformada, encontrada na sua residência, no Samouco.