Ultimam-se provas, briefings com os empregados, e ensaiam-se imagens dos fotogénicos pratos antes que sejam servidos e devorados. “Não estamos habituado a este tipo de holofotes”, desabafa, nervoso, Edner Abreu. Por uma noite, juntamente com a mulher, Sheila, trocam a cozinha do seu Chiveve, nas Picoas, pelos fogões do Gunpowder. Tudo sem ensaios prévios e outros airbags que possam amortecer eventuais deslizes nesta aventura inédita. Que comece mais uma Curry Night.

Para esta quarta-feira, 6 de março, a expectativa à mesa é um encontro entre algumas das iguarias moçambicanas da dupla com pratos da casa do restaurante goês sem grandes fronteiras, que se lançou em Londres em 2015 e chegou ao Chiado em 2022. Na carta encontramos assim as chamuças de novilho e de peixe do Chiveve, e por outro lado os bolinhos de caranguejo masala do Gunpowder, um snack de influência portuguesa inspirado nas zonas costeiras de Goa. Isto no que toca às entradas, quanto ao resto já lá vamos depois das apresentações.

Edner e Sheila, do moçambicano Chiveve © Joana Freitas

Às sete da tarde, as portas abrem-se para dois turnos esgotados. Há quem tenha reservado pelo menu habitual, alheio a esta agenda extra, mas a maioria sabe que a carta do dia reserva propostas no âmbito destes serões onde o caril é rei. A ideia foi lançada em 2023 por Harneet Baweja, o fundador do grupo, e a curadoria está desde então a cargo de Inês Matos Andrade. “A minha ideia foi usar estes jantares como uma plataforma para ensinar as pessoas sobre a universalidade e diversidade do caril, que pode ser tão diferente em todo o mundo. Tivemos Tailândia, Jamaica, Japão e Brasil, e curiosamente calhou serem só mulheres a preparar os menus. Havia mais pratos, mas o caril era a pièce de résistance, e o Gunpowder também preparou caris típicos de diferentes regiões”, descreve Inês, apostada em alargar horizontes à mesa e expandir os níveis de tolerância de compreensão numa cidade cada vez mais multicultural. “Acho mais pertinente do que nunca empoderar pelo estômago, dar conhecimento e criar empatia sobre outras culturas.”

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As chamuças de carne © Joana Freitas

Foi em julho do ano passado que se estreou esta série de jantares que permite provar sabores, conhecer histórias, e sobretudo viajar pelo vasto mundo do caril, desbravando muito para lá das afinidades indianas que rapidamente costumamos identificar. Chegados a 2024, os encontros arrancaram em fevereiro e prolongam-se por março — ainda tem duas sessões disponíveis e o melhor é reservar o quanto antes. 

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Sem grande paciência para tostas de abacate e cappuccinos, em janeiro Inês lançou-se também na organização de uma espécie de “antibrunch”, um pequeno-almoço avantajado, com comida indiana, que contou com Natalie, do Isco, para cozinhar pratos com ovos. O cardápio de conforto puro contou com omeletes típicas dos Cafés Paris de Bombaim, Ovos Verdes e até Advocaat caseiro. E para a próxima, não faltam ideias. “Quero que façam Nargis Kofta, a receita original, do Norte da Índia e Paquistão, que deu origem ao Scotch Egg – trivia que a maioria das pessoas desconhece.”

O pato, uma das iguarias do Gunpowder que também se juntou a esta carta especial © Joana Freitas

Para compor a comitiva gastronómica das Curry Nights, Inês Matos Andrade convidou quatro nomes. Na primeira sessão, realizada a 28 de fevereiro, contou com Sophian Hoe do Southeast Asian Supper Club. De origens singapurenses e malaias, ajudou o celebrar o ano novo lunar na Cozinha Popular da Mouraria no passado dia 16 de fevereiro. Na próxima quarta, 13 de março, será a vez dos cozinheiros do nordeste tailandês da cozinha do Baan Saraiva’s, e por último Yica, do projeto Azmarino, responsável por um catering “caseiro” e take-away de comida Etíope/ Eritreia na área da Grande Lisboa. – “fazendo figas para ele trazer um condimentado Doro Wat”, suspira Inês.

Gunpowder: diretamente de Londres, indiano chega ao Chiado com riqueza gastronómica da costa de Goa

Para a noite que provámos, era possível escolher o caril de camarão com quiabos ou o caril de frango com amendoim, ambos servidos habitualmente no Chiveve. Quanto ao contributo do Gunpowder entre os pratos principais, o peito de pato à moda de Malibar com coco tostado e folhad de caril, e ainda o caril kofta de beterraba cozinhado num molho cremoso de caju e cebolas, infusionado com fragrância de rosas e cardamono, servido com pulao de ervilhas.

Para regar este elenco, pode sempre testar um espumante Gunpowder (Bical, Arinto, Cercial, Portugal, 2017). Nas sobremesas, espaço para a mousse de Malambe/Baobab e a tarte de arroz doce baba.

“A nossa expectativa era alta e acabou por ser uma boa aprendizagem para nós.”, comenta Edner no rescaldo do evento, e depois de fazer questão de passar por todas as mesas para medir o pulso ao ambiente. Para trás fica o superado desafio de se introduzirem numa cozinha totalmente nova, e bastante povoada. “Mas soubemos dançar a música dos donos da casa.“, ajustou-se com serenidade o rosto do Chiveve. Edner conta como introduziram ligeiras nuances, a começar pelo prato de frango. No seu restaurante é servido à típica forma moçambicana, nesta noite surgiu no prato desossado. “Como não sabíamos quem seria o publico, optámos por isso, tinha que ser de outra maneira.”

O caril de camarão habitualmente servido no Chiveve. Com quiabos © Joana Freitas

Nascidos e criados na Beira, Edner e Sheila mudaram-se para Portugal por volta de 2008, depois de já terem morado por cá. Ela é socióloga, ele jurista, já tinham tido um restaurante em Moçambique e garantem que apesar das diferentes formações “é na cozinha que estamos bem”. Mas entre tachos, quem manda é Sheila e a sua sobrinha. Edner é empregado de sala. “Ela é muçulmana, apaixonada pela cozinha, conhece os temperos todos”. Já agora, esmiuce-se o conceito de caril por estas bandas. “Para nós, caril  é tudo o que tenha molho, uma caldeirada de peixe aqui, para nós lá em Moçambique é caril de peixe.”, explica Edner. O conhecido pó de caril só é usado em pratos mais rápidos e correntes do Chiveve, quanto ao resto, vive de uma míriade de especiarias, cominhos, açafrão, nós moscada e muito leite de coco.

Depois de Moçambique, na próxima quarta-feira, dia 13 de março, o destino aponta à Tailândia. “O caril tailandês é uma narrativa sobre a cultura e a vida de diferentes regiões da Tailândia, é por isso que o nosso menu espelha diferentes regiões do país e as suas influências. Aqui vão encontrar alguns pratos chave com este perfil de sabor tailandês: equilíbrio perfeito de sabores picantes, doces, salgados e ácidos.”, descreve Caroline Phetsomphou, responsável pelo Baan Saraiva’s. Conte com um nortenho Khao Soi, originário de Chiang Mai, com influência da antiga Birmânia, que resulta num espesso caril amarelo; um Som Tum ou Laab Moo do nordeste, ambos entradas fritas, inspirados no Laos; e ainda uma passagem pelo berço do caril vermelho. “Vamos trabalhar num peito de pato português. Este prato é um paradoxo em si: rica gordura de pato harmonizado com leite de coco cremoso, mas depois sairá a fragrância exótica de capim-limão e galanga.”