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Red Bull Contente Pool

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Crónica de uma loucura anunciada

Aviso: reportagem imprópria para quem sofre de vertigens. O Observador esteve nos Açores para acompanhar o Red Bull Cliff Diving, onde 14 atletas saltaram de um penhasco a quase 30 metros do mar.

Os nomes dos protagonistas são menos sedutores e complicados de decorar do que na crónica na qual se inspira o título. Esta história teve lugar em Vila Franca do Campo, nos Açores, e o desenlace tem tudo para enamorar os mais céticos ou desconhecedores da modalidade. Afinal, basta imaginar-se a subir até ao oitavo andar de um prédio, caminhar até à janela, empoleirar-se, olhar para baixo, medir o vento, tirar a pinta aos obstáculos que estão lá em baixo (para os evitar), respirar fundo e… saltar. Peanuts, não?

Uma coisa de cada vez. O que é o cliff diving? Isto de saltar de penhascos tem barbas e remonta ao século XVIII. Kahekili, o último rei independente do Maui, no Havai, sentenciou que esta loucura de saltar das rochas para o mar seria como que um ritual iniciático para os seus guerreiros. O nome técnico da prática é Lele Kawa, que significa literalmente saltar para a água, de pés, a partir de um rochedo muito alto, sem fazer um efeito de splash. Haja coragem. No século XIX, o rei havaiano Kamehameha foi o primeiro a autorizar a organização de competições da modalidade, com regras e tudo, para descobrir os mais talentosos e valentes.

AQUI VAMOS NÓS…

O ponto de encontro foi na marina de Ponta Delgada, para seguirmos num barco que costuma servir para observação de baleias. O homem do leme era uma espécie de Kurt Cobain versão mais velha, gasto, mas vestia um sorriso jovial, com muitos, muitos anos daquelas andanças no mar. Antes, aconselharam-nos a tomar comprimidos para o enjoo. Os mais bravos torceram o nariz, mas lá cederam. “Quão mau pode ser?”… Bem, muito mau. Sabem aquela sensação no estômago quando descemos algo rápido de mais? Multipliquem isso por mil.

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A viagem duraria 45 minutos. O mar estava revoltado, rude, a testar se aquela gente era digna de ver saltos a quase 30 metros de altura. Uns quantos golfinhos decidiram aparecer para suavizar a travessia, que parecia ser eterna. Até um tubarão, que se acredita ser martelo, mostrou a sua ameaçadora barbatana. Ponta Delgada ia ficando para trás, começava a ver-se o lado mais puro e natural dos Açores. Campos verdes e um mar imenso a perder de vista, era este o cenário.

O Ilhéu de Vila Franca do Campo, também conhecido como o Anel da Princesa, começava a vislumbrar-se, enquanto ouvíamos algumas histórias de confrontos do passado entre espanhóis e franceses — nota mental: os açorianos adoram contar histórias. Esta é uma reserva natural, que fica limitada aos olhares famintos dos turistas e locais, a fim de preservar a sua condição. O boneco é deslumbrante, mas mete muito respeitinho.

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Esta etapa do Red Bull Cliff Diving é a única do circuito onde os atletas saltam do penhasco, sendo que na final utilizaram a plataforma. As escadas ao longo do rochedo pareciam de brincar, a fazer lembrar os “Lemmings”, aquele jogo antigo de computador que soava a teste psicotécnico para futuros engenheiros e arquitetos. Chegámos ao ilhéu, agora é só aguentar a ondulação e testemunhar a audácia alheia. Ah! E sentir a pequenez dos nossos atos mais corajosos de tempos idos…

O ABC DO RED BULL CLIFF DIVING

O atleta mais famoso chama-se Orlando Duque, um homem nascido em Cali, na Colômbia. Aos 39 anos continua a encantar os adeptos da modalidade, talvez pelo sorriso fácil que abraça todos à volta, talvez pela humildade e o valor que vê nos outros. O colombiano tem dez títulos de campeão do mundo na modalidade, dois recordes inscritos no Guinness e venceu o primeiro Campeonato do Mundo de Saltos para a Água de Grande Altura organizado pela FINA — Federação Internacional de Natação. Duque, um apelido muito apropriado para o estatuto de que goza no cliff diving, vive em Honolulu, no Havai, onde tudo começou. Não é por acaso…

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“És tão importante na Colômbia como Radamel Falcao ou James Rodríguez?”, perguntámos. Do outro lado chegou uma gargalhada que engoliu o Anel da Princesa e os olhos começaram a brilhar. Temos um fã de futebol, está visto. “Não, não. O futebol é uma loucura na Colômbia, eles são adorados. Foi um resultado histórico [no Mundial]. A Colômbia está muito emocionada com eles. Antes, James e Falcao jogaram juntos no Porto, depois no Mónaco, oxalá joguem juntos no Real Madrid. Os colombianos seguem o futebol português”, disse Duque, que em miúdo só queria ser polícia. O colombiano ainda frequentou três semestres na universidade, a estudar Engenharia, mas aquilo não era para ele.

"Medo? O que é medo? Não conheço essa palavra..."
Artem Silchenko

O campeão em título é Artem Slichenko, um russo de 30 anos, que acabaria por ser surpreendido ao ser questionado pelo Observador sobre a sua paixão pelo xadrez. “Não o jogo profissionalmente, claro. Jogo com a minha mulher nos tempos livres. É o oposto do cliff diving, mas é bom para acalmar a mente e o corpo. Ajuda-te a não decidir rápido de mais, a ter calma”, explicou. O atleta só afinou quando lhe perguntaram como é sentir medo na hora de saltar. “Medo? O que é medo? Não conheço essa palavra…” Show off ou não, uma coisa é certa: Gary Hunt, o tricampeão da modalidade (2010, 2011, 2012), afirmou que o russo é o mais frio de todos. “Faz o que tem a fazer. Se correr bem, correu bem. Se correr mal, esquece logo”. O britânico acabaria por desiludir nesta etapa em solo português e nem chegaria à final.

Os guerreiros dos mortais e piruetas saltam a 27 metros do mar — quase três vezes mais do que a medida olímpica –, qualquer coisa como oito andares de um prédio, e chegam ao destino em três segundos, atingindo uma velocidade de quase 90 quilómetros por hora. É escusado dizer que uma aterragem desastrada resulta em problemas. Nos anos 70 saltava-se a 40 metros do mar, garantiu-nos Niki Stajković, o diretor da prova. “Havia demasiadas lesões. Estes atletas de hoje conseguiriam saltar a essa altura, mas não faz sentido arriscar”.

"Uma vaga de ondas pode fazer subir ou descer o mar em quatro metros."
Orlando Duque

Stajković, um austríaco que competiu em cinco Jogos Olímpicos entre 1972 e 1992, explicou que esta etapa era muito complicada e perigosa porque o mar estava agitado, o que impossibilitou o workshop para os media, que consistia num salto de dez metros para o mar. Foi uma pena (ironia…). Orlando Duque já se havia queixado do mesmo, pois tornava-se muito complicado calcular a entrada na água. “Uma vaga de ondas pode fazer subir ou descer o mar em quatro metros.” Agora imaginem para quem voa a quase 90 quilómetros por hora.

A competição desenrola-se durante dois dias e consiste em quatro saltos: dois com um grau de dificuldade limitado, outros dois são facultativos. A primeira ronda define as parelhas para o dia seguinte, acabando por tornar aquilo uma batalha muito pessoal. Seria um mano-a-mano. Mas o que mais surpreende é a forma como todos se dão. Gritaria, palavras de apoio, assobios e palmas, é assim que puxam todos uns pelos outros, seja na hora da glória, seja na hesitação perante o abismo.

O júri, uma mistura de verdadeiras lendas e craques do mergulho e natação — até campeões olímpicos lá andam –, é composto por cinco elementos que avaliam três vertentes do salto: saída da plataforma/penhasco, trajetória aérea e a entrada na água, que se quer limpinha, sem splash. As pontuações vão de 1 a 10, sendo que a mais alta e a mais baixa são descartadas, contabilizando-se apenas as intermédias. O total é multiplicado pelo grau de dificuldade do salto.

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Dito isto, há uma pergunta que se impõe: e os treinos? É que não há piscinas com pranchas a 30 metros. Os mergulhos são ensaiados a três e dez metros de altura, sendo que são trabalhados como uma coreografia, que se vai colando em sequência. Primeiro treinam a saída da plataforma, depois vão unindo as piruetas e mortais. O resultado final é incrível, mas continua a ser quase incompreensível como o conseguem fazer sem treinar o mergulho completo. Os limites da coragem desta gente continuam sem ver o stop

OUTRAS ETAPAS

A fotografia do rochedo em Vila Franca do Campo é impressionante, mas está longe de ser caso único. Esta gente dos mergulhos tresloucados viaja muito e salta de verdadeiros paraísos na Terra. Havana (Cuba), Fort Worth (EUA), Inis Mór (Irlanda) e Kragerø (Noruega) já tiveram o seu carimbo no passaporte, onde Gary Hunt se superiorizou aos demais com três vitórias. Depois dos Açores, falta apenas Bilbau, em Espanha, e Yucatán, no México.

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Voltemos a Vila Franca do Campo. O vencedor seria uma surpresa. Steven LoBue, um personal trainer norte-americano, acabaria por deixar a concorrência para trás com saltos capazes de cortar a respiração. Orlando Duque voltou a ficar em segundo lugar, tal como acontecera em 2012 e 2013, e David Colturi em terceiro. A segundos de começar a derradeira conferência de imprensa com os três finalistas, a lenda colombiana não resistiu e arrancou gargalhadas a quem aguardava a sessão: “Outra vez em segundo! Eu vou tentando, eu vou tentando…”

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Falta apenas referir que este será o primeiro ano no qual uma mulher será coroada a rainha do Red Bull Cliff Diving. No entanto, as candidatas ao trono não estiveram nos Açores, pois apenas competem em três palcos: Estados Unidos, Noruega e Brasil. É quase tudo igual à competição masculina, menos a altura da plataforma, que está a 20 metros do mar. “Isso tem a ver com a experiência. Nós já andamos nisto há alguns anos, por isso estamos um pouco mais confortáveis e treinados especificamente para estas alturas [27]. (…) Isso não significa que elas não possam saltar do ponto proposto, é apenas uma questão de experiência”, garantiu Duque, em declarações à revista da marca da bebida energética.

Conclusão: apesar da desilusão, Gary Hunt continua na liderança da classificação geral, com 750 pontos. Steven LoBue segue na segunda posição (610), enquanto Orlando Duque está no terceiro lugar (520), seguido do benjamim mexicano Jonathan Paredes (500). O melhor resultado do sul-americano de 24 anos foi precisamente nos Açores, no ano passado, quando alcançou o terceiro lugar. Paredes é visto como o futuro Duque, o que o deixa muito entusiasmo. A proximidade entre ambos é notória. Quando o mexicano falava aos jornalistas, Duque passou por trás, deu-lhe um beliscão e soltou um “qué boniiiiito!”.

A DIMENSÃO DA LOUCURA

A etapa nos Açores tem um senão: faltam pessoas e agitação. O ilhéu é longe da costa e apenas alguns aventureiros com barcos e outros com canoas podem aproximar-se desta deliciosa experiência, que leva o fôlego a quase todos. Impressionava aquele puzzle de embarcações no mar à espera dos voadores sem asas. Os homens do leme sabiam manejar uns entre os outros como quem se desvia de um buraco na estrada. Se a angustia pelo enjoo anunciado já era grande, essa aventura foi só mais um capítulo para dar corpo a esta crónica.

Em 2013, por exemplo, cerca de 150 mil pessoas estiveram presentes nas provas pelo mundo e quase três mil meios de comunicação cobriram os eventos. É dose. Quem sabe um dia se construa uma plataforma nos Açores para os adeptos da modalidade, o que, certamente, daria força ao turismo da região.

Os atletas estavam todos maravilhados com os encantos da ilha portuguesa. O clima, o mar e, sobretudo, a loucura de saltar do penhasco enchia-lhes as medidas. Nos Açores faz-se o que os atletas chamam de “puro cliff diving“. Todos referiam estar ansiosos para voltar. Antes do regresso a terra firme, numa viagem alucinante a rasgar as ondas do mar tumultuoso, furioso, era curioso observar já em terra os garotos de Vila Franca do Campo. Junto das embarcações, no porto, havia uma rampa, onde muitos deles se aventuravam com mergulhos acrobáticos e arriscados. Era um cliff diving à medida deles…

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