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ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

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Elas não têm medo dos cabelos brancos

Assumir os cabelos brancos expõe o corpo tal como é, encarando o que nos está a acontecer a todos: envelhecer. Falámos com mulheres que tomaram essa decisão e não querem voltar atrás.

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Nos últimos anos afirmou-se várias vezes que o cinzento é o novo preto. Os mais de 50 tons de cinzento estão na moda não só na roupa, mas também no cabelo. Rihanna, Cara Delevingne ou Lady Gaga adotaram a certa altura os cabelos brancos. Pela internet, a hashtag #grannyhair revela milhares de mulheres jovens que descoloraram ou pintaram o cabelos de branco, sem que isso tenha feito delas avozinhas.

É um paradoxo fácil de perceber que os únicos cabelos brancos que não estão na moda sejam os naturais, aqueles que aparecem com a idade (ou não), os que não se escolhem como e onde devem aparecer: o ideal é a juventude e, em alguns casos, o cabelo é o primeiro a lembrar-nos que o tempo continua a correr, o futuro e a velhice são inevitáveis. “E então?”, perguntam as quatro mulheres que se seguem, entre os 45 e os 64 anos. Todas elas assumem os seus cabelos brancos de olhos fixos no inegável cronómetro e desafiadores para a sociedade. Não são invisíveis, como diz o mito das mulheres de cabelos grisalhos; pelo contrário, toda a gente repara nelas.

Mantêm o cabelo assim porque é bonito, porque não têm tempo ou dinheiro para a manutenção de um cabelo bem pintado, porque querem levantar o queixo e dizer que estão presentes como são, sem pedirem desculpas. Para todas foi uma escolha que lhes libertou a cabeça de quaisquer pressões e que nos permitiu falar do que é estético, político e da velhice.

Susana Gomes, 51 anos, socióloga

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

Sentia-se pressionada a pintar o cabelo quando começou a fazê-lo, aos 30 anos?
Sim, porque é aquela questão: ainda tens uma cara jovem mas com o cabelo branco. O cabelo branco envelhece a pessoa pelo menos mais dez anos. É a questão do envelhecimento que está em causa. O que é bom é a pessoa não aparentar a idade que tem. A nível familiar, imagine o que é ter irmãs bastante mais velhas que pintam o cabelo e a mais nova tem o cabelo branco… Toda a gente quer que eu pinte o cabelo rapidamente, se não é um paradoxo — como é que a pessoa mais nova da família tem cabelos brancos?

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No fundo, não é só o seu envelhecimento que está em causa, é também o das pessoas à sua volta.
É, porque isto vem expor a questão da passagem do tempo. É uma espécie de pacto não assumido por todos: toda a gente pinta, portanto estamos todos ótimos, isto é o que pode ser controlado no processo de envelhecimento. Também há quem faça plásticas, que também é uma tentativa de controlo e negação da passagem do tempo, mas esta é mais acessível e menos complicada.

A inversão de todos os padrões acontece quando Susana Gomes, com o seu cabelo cortado de fresco, sai à rua com o filho, de cabelo comprido. Já ouviu comentários em surdina mas diz que é normal, “as coisas estão todas encadeadas de maneira a que isso aconteça”. Nascida em Lisboa e completamente urbana — em pequena fazia-lhe falta uma “terra” onde ir passar os Natais — acabou por seguir pela sociologia rural e do ambiente. A poucos dias do fim do ano, Susana meteu-se no carro inesperadamente e foi direita a um cabeleireiro perto de casa, em Oeiras, para cortar o cabelo. Nem foi ao cabeleireiro habitual para que não lhe propusessem outra coisa que não a solução definitiva.

Quando tomou a decisão de manter os cabelos brancos?
Eu cortei o cabelo dois dias antes do final do ano, por isso não foi uma decisão de ano novo, foi de ano velho.

"Senti-me bem, senti sobretudo que estava outra vez a controlar o meu cabelo — até porque tenho um cabelo muito forte, ondulado, o meu cabelo sempre fez o que quis." 
Susana Gomes

E quando cortou a ideia foi mesmo não o voltar a pintar mais? Cortou para eliminar o pintado?
Foi. Estava naquela fase horrorosa que era a indecisão: metade estava preto e branco, junto à raiz, e o resto, nas pontas, ainda com uns restos de tinta — acho que pinto o cabelo desde há 20 anos para cá. Por volta dos 30 anos comecei a fazer aquelas coisas mais ligeiras, mas já para disfarçar os brancos. Sempre tive o cabelo muito preto, muito escuro e quando surgiram os primeiros brancos notava-se muito. É muito difícil deixar crescer as raízes, é um processo por que não me apetecia passar. Parece que a pessoa tem de explicar porque é que não pinta o cabelo, ou pedir desculpa, e a mim não me apetecia dar explicações nenhumas. Apesar de agora dar por mim a explicar porque cortei tão curto.

Aí tem de explicar que é porque quer ter cabelos brancos. Como é que as pessoas reagem a essa vontade?
Têm reações diferentes. As que estão a passar por este momento são críticas, negativas: “Isso é uma disparate, parece que tens mais 10 anos”, “não vais resistir, vais voltar a pintar”, “que mal que te fica”. Outras pessoas dizem que fica bem. Eu própria fiquei surpreendida com a quantidade de cabelos que tinha, não tinha essa perceção. Um corte de cabelo destes revela cruamente essa realidade.

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

Deve ser um momento interessante de confronto com o próprio corpo. Qual foi a sua reação?
Fiquei surpreendida por ter tantos brancos, não tinha de todo essa perceção. Às vezes achava que podia ter tantos brancos como escuros, outras que ainda predominavam os escuros, mas não, nesta altura acho que já tenho mais brancos. Mas senti-me bem, [senti] sobretudo que estava outra vez a controlar o meu cabelo — até porque tenho um cabelo muito forte, ondulado, o meu cabelo sempre fez o que quis. Agora vou deixá-lo mesmo ser como ele é. Não tenciono voltar a pintar, está mesmo fora dos planos, até porque isso seria uma cedência, era a negação do statement, e não me apetece fazer isso. E também não me apetece estar a explicar por que não há-de ser natural, não se explica. Apesar de, em termos sociais, a norma absolutamente uniformizada e vigente é a das mulheres pintarem os cabelos até bastante tarde. Em termos culturais acho que neste momento há espaço para contornar esse tabu dos cabelos brancos em mulheres. As mulheres continuam a ter vidas ativas até tarde, têm relacionamentos, não é mais aquela questão de a mulher deixar de pintar o cabelo quando já não espera nada, quando está retirada da vida profissional e afetiva.

Como é que tomou esta decisão?
Eu passei uma fase em que observava as pessoas na rua — as pessoas não, as mulheres concretamente, a tinta do cabelo delas — e estabelecia umas comparações: aquela é uma tinta boa, aquela é uma tinta má, aquela fica horrível. Vi uma atriz de Hollywood, a Jamie Lee Curtis, que cortou o cabelo e está a assumir os brancos e de facto, quando eu olhei para aquela mulher achei que ela estava muito melhor assim do que antes. É como se fosse um statement, porque há um pretenso ideal de juventude ligado a uma coisa não natural. Isto é como eu estou agora, é o que quero ser e não vou disfarçar o que sou agora, não faz sentido. Se calhar também corresponde a uma fase da minha vida e é mais fácil tomar esta decisão agora do que seria há uns tempos. Mas de facto não é só deixar de pintar os cabelos porque sim, é o assumir de uma posição.

Não é uma mera inação.
Não, não é. Não é “não pinto o cabelo”; é “não, não pinto o cabelo”. Nos próprios cabeleireiros, por razões comerciais óbvias, há alguma resistência. Eu entrei lá e as senhoras diziam “nem posso pensar que nunca mais vai pintar”. O compromisso era ir cortando tudo o que era pintado. Ela ia cortando e parando e eu “não. Mais, mais”, até ficar neste estado. E no final: pessoas surpreendidas com um ar de Deus me livre, e algumas, “parabéns, que coragem! Quem me dera fazer o mesmo”. Eu acho que se caminha para uma desvalorização da pintura. Durante alguns anos cá em Portugal todas as mulheres tinham o cabelo pintado das mesmas cores — aquelas madeixas amarelas, desbotadas, que parecia que lavavam a cabeça com lixívia. Eu penso que a questão dos cabelos brancos vai começar a ser assumida e não pelas mulheres mais velhas, provavelmente por algumas mulheres mais novas que ainda sentem que têm a opção.

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

Não ponderou os cabelos brancos antes?
Tem a ver com uma fase da minha vida em que quero ver as coisas de uma maneira mais natural, com menos artifícios. E por questões práticas de não ter de ir ao cabeleireiro todas as semanas ou todos os meses, não ter de estar preocupada com “já se veem as raízes?” — isso para mim já não estava a dar. Coincidiu ter um corte de cabelo com que não me sentia bem e por isso decidi ser radical. Era uma possibilidade que andava à procura de uma oportunidade.

Qual foi a reação do seu filho [de 18 anos]?
Ele odiava o corte de cabelo que eu tinha, fiquei com a sensação que ficou aliviado — era um pouco desgrenhado. Não ficou encantado mas não se pronunciou negativamente. Acho que foi confrontado com o facto de eu ter tantos cabelos brancos, porque fez realmente muita diferença. A minha mãe não gosta, os meus irmãos mais velhos não gostam, as minhas sobrinhas também não gostam… Se calhar é mais fácil ver quem é que gosta [risos].

Então a pressão social ainda não diminuiu.
Não, mas não sou sensível a isso.

"Eu penso que a questão dos cabelos brancos vai começar a ser assumida e não pelas mulheres mais velhas, provavelmente por algumas mulheres mais novas que ainda sentem que têm a opção."
Susana Gomes

Como é que se sente com este cabelo?
Espero que cresça mais um bocadinho, porque está muito curtinho. É uma coisa que dá nas vistas e eu não gosto de dar nas vistas. No outro dia estava a falar com uma pessoa que não conheço muito bem e percebi que a pessoa se estava a interrogar se eu estaria doente, portanto, neste momento ainda é um pouco chamativo. Mas não me arrependo minimamente.

Acha bonito?
Acho que é o meu cabelo, sou eu. É pacífico, convivo bem com ele. Seria muito mais fácil continuar a pintar, porque a pessoa está a corresponder a um modelo que é o mais comummente divulgado e aceite. Mas seria de todo inesperado voltar atrás. É preciso mais coragem para manter do que para tomar a decisão. Tomar a decisão pode ser mais um impulso, mantê-la é que provavelmente é mais difícil.

Luísa Falcão, 45 anos, professora de matemática

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

Quando teve os primeiros cabelos brancos?
Com 14 anos. Era só um ou outro, nada de especial. Começou por aqui [duas madeixas à frente] todo por igual, mesclado. Normalmente aparece uma madeixa aqui, outra ali, e fica feio. A mim não, foi todo por igual, tive sorte. Vou-lhe dizer: se não fosse assim, provavelmente pintaria o cabelo.

Não conhecíamos a entrevistada e poderíamos desencontrar-nos, mas ela deu-nos um conselho precioso e óbvio: “Quando chegarem, sou a única de cabelo todo branco”. Luísa Falcão fala sempre com um enorme sorriso do cabelo que nunca foi um problema, embora reconheça que é preciso personalidade e alguma coragem para o usar. Nenhum antecedente na família fazia prever que teria a cabeça imaculadamente branca e apenas os cabelos junto à nuca escuros.

O facto de aparecerem aos 14 anos incomodou-a?
Não porque se falava no assunto com graça. Depois passei por várias fases: lá para os 20 pintei, fiz madeixas, fiz tudo.

Por causa dos cabelos brancos?
Não, coisas da idade. E quando engravidei da minha primeira filha [aos 26 anos] nunca mais pintei.

Porquê?
Já tinha alguns brancos e percebi que se fosse por esse caminho tinha de pintar de 15 em 15 dias. Tendo uma filha já era complicado ter tempo para tratar de mim e ir de 15 em 15 dias ao cabeleireiro não era mesmo aquilo que eu queria. Era morena, tinha o cabelo preto azeviche, muito escuro mesmo. Mas nunca me custou… Quer dizer, não é bem assim. Quando casei pintei o cabelo, por exemplo. Mas depois comecei a achar graça porque é alvo de comentários, as pessoas vêm ter comigo na rua e perguntam-me o que faço ao cabelo. No início achava um bocado estranho, mas respondia sempre que não faço nada, que é natural. Agora já sei que quando alguém vem ter comigo e me diz “posso fazer-lhe uma pergunta?”, respondo logo “é meu, é natural, não pinto”. No estrangeiro então acontece muitas, muitas vezes. No cabeleireiro também me acontece. Dizem: “quero umas madeixas iguais às daquela senhora”.

"Agora já sei que quando alguém vem ter comigo e me diz 'posso fazer-lhe uma pergunta?', respondo logo 'é meu, é natural, não pinto'.
Luísa Falcão

As pessoas são sempre elogiosas?
Nunca ninguém me falou negativamente do cabelo. Quer dizer, os meus filhos andavam na escola, tinham três ou quatro anos, e os colegas diziam-lhes que vinha a avó buscá-los. É um grande contraste e por isso também me acontecem coisas engraçadas, por exemplo, passar por uma criancinha e ela ver-me de costas e depois olhar para a minha cara e ficar a olhar, porque acha que há ali alguma coisa que não joga bem: cabelos brancos com um ar jovem, sem rugas. Por isso, acho que enquanto os miúdos forem tendo esta reação acho que é bom.

Os alunos reagem ao seu cabelo?
Impõe algum respeito, é bom [risos]. Agora já não tanto, porque já sou mais velha, mas dava um certo jeito.

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

Com que idade ficou com o cabelo todo branco?
Deixei de pintar com 26 — eram madeixas e fui eliminando progressivamente. Em momento algum foi problemático. Fiquei com mais cabelos brancos do que pretos aos 30.

Como via o seu cabelo aos 26?
Gostei sempre até por ser alvo de conversa e em qualquer lugar sou facilmente identificada. Como é todo liso, ainda chama mais à atenção. É uma opção, gosto. Já me passou pela cabeça pintar, depois disto tudo. Houve uma altura em que vinha para casa e pensei: “vou ao cabeleireiro pintar o cabelo, fazer madeixas, pelo menos”. Entrei, estive à espera, disse à cabeleireira que era para pintar, “desta vez vou mesmo fazer madeixas, estou decidida”, e enquanto estava à espera houve uma pessoa que veio ter comigo e disse: “O seu cabelo é tão bonito, como é que faz? Eu quero fazer igual”. Então pronto, não foi dessa e nunca mais me passou pela cabeça.

O que diziam as pessoas da sua idade?
Era a única, fui sempre diferente, sempre identificada por ter o cabelo branco. É uma maneira de ser diferente. Eu sei que o cabelo branco pesa, dá um ar mais velho, mas não era por isso que eu o iria pintar. Eu tenho noção de que a coisa por enquanto ainda fica bem, a cara ainda não corresponde muito ao cabelo, não há assim muitas rugas, mas mesmo sabendo que vou ficar mais velha, que vou ter rugas, não tenho intenção de pintar.

"[Os meus filhos] nunca se importaram com aqueles comentários de 'está aí a tua avó para te levar'. Nem o meu marido, nunca me pediu para pintar o cabelo. Nunca, ninguém. Também acho que se me pedissem, não o fazia."
Luísa Falcão

O mais comum é eliminarem-se os cabelos brancos quando aparecem. Nunca sentiu nenhuma pressão para o fazer?
Antes pelo contrário. Mesmo no cabeleireiro dizem sempre para não o fazer. Isto é uma opção minha, assumir aquilo que é meu, assumir os meus cabelos brancos com orgulho. Ainda esta semana entrei na reunião dos encarregados de educação dos meus filhos e estava uma senhora que devia ser da minha idade com o cabelo todo branco e a primeira coisa que me apeteceu dizer-lhe foi “tem um cabelo muito bonito”. É uma espécie de irmandade, somos diferentes.

E já alguém se inspirou em si e lhe seguiu o exemplo?
Já, bastantes, mais velhas do que eu. Algumas não conseguiram, porque durante a transição… é complicado porque pintam e as raízes começam a aparecer. Quando se toma esta opção de deixar os brancos crescer, há ali uma fase que deve ser muito complicada e a pessoa não resiste e acaba por pintar.

Foi descoberto o gene que faz os cabelos brancos

E nunca conseguiu converter uma amiga mais nova?
Não. Não é converter… Com estas colegas que queriam deixar de pintar o cabelo eu nunca lhes disse nada, foi opção. Olhavam, gostavam e queriam também. Eu acho que havia muita gente que queria ter o cabelo assim, mas não consegue porque passa por aquela fase que é mesmo muito feia.

Acha que vai manter o cabelo branco no futuro?
Sim, vai ser sempre assim. Já é assim há quase 20 anos, e vai ser sempre assim. Já pus uma peruca — só para brincar — e fico muito, muito esquisita, não sou eu. Saí mesmo à rua e não era carnaval.

Deixou de ter pessoas a olhar para si.
Eu tenho consciência que [o cabelo branco] dá nas vistas e é motivo para se falar. Se for com o cabelo preto fico igual a toda a gente. A intenção não é receber olhares por ter o cabelo branco, sinto-me bem com ele assim, mas acho piada vir alguém tocar-me nas costas e pedir desculpa, perguntar porque é que eu tenho o cabelo assim.

Os seus filhos sempre a conheceram assim. O que é que dizem?
Sim, e de peruca estranham, não acham graça. Nunca se importaram com aqueles comentários de “está aí a tua avó para te levar”. Nem o meu marido, nunca me pediu para pintar o cabelo. Nunca, ninguém. Também acho que se me pedissem, não o fazia.

Ana Perez-Quiroga, 56 anos, artista plástica

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

Manter os cabelos brancos foi sempre uma escolha política?
Sempre foi. Há cerca de dois anos li uma entrevista da Mary Beard [historiadora e apresentadora de programas na BBC], que tem o cabelo branco e comprido, e dizia que sempre tinha sido uma questão política não pintar os cabelos mas que era profundamente criticada, que lhe mandavam e-mails a insultá-la. As pessoas sentiam-se ofendidas e agredidas por ela manter os cabelos brancos, não só homens mas também mulheres — “como é que você se atreve a ter os cabelos brancos?”. Eu venho de gerações de mulheres como a Susan Sontag que sempre tornaram isso um marco, não só de personalidade mas de confronto que afirma “eu estou aqui e eu sou assim”. De repente eu estou a reivindicar um espaço social.

Ana Pérez-Quiroga faz questão que a tratemos sempre por tu, fica assente assim que entramos em sua casa, esse lugar que para além de ser aquele que habita, é também o objeto da sua tese de doutoramento concluída há pouco, mas em constante (e quase viciante) crescimento. Fotografou todos os objetos que lá estão e por objeto entende-se tudo, com exceção dos perecíveis ou do que se vai gastando — o arroz, a fruta, o papel higiénico, os sabonetes. De resto, o privado tornou-se público no site onde exibe tudo o que há na sua casa. “Até a roupa interior, é a mesma coisa que a estender à janela”, resume. Como a casa se tornou simultaneamente espaço íntimo e público, também entende que o seu corpo vive nesta fronteira e o cabelo ajuda-nos a compreender isso.

Porque é que mantens os cabelos brancos?
A sociedade de alguma forma empurra-nos para pintarmos os cabelos. Estamos a falar das mulheres, que são altamente penalizadas pela idade que têm e quanto mais anos passam sobre elas… está associada às mulheres uma eterna juventude. É mais fácil ser um homem com mais idade do que uma mulher com mais idade — em termos de sociabilidade, no trabalho também há penalizações. E ter cabelos brancos também incorpora um discurso político — bom, qualquer ação que façamos é política. Se eu me permito ter os cabelos brancos é evidente que é um statement: eu reivindico para mim um papel que não joga o mesmo jogo social que nos é de alguma forma imposto. Em primeiro lugar sou feminista e interessa-me que este seja um espaço de liberdade: tomarmos a liberdade para o nosso corpo. É claro que sabemos perfeitamente que os cabelos brancos pesam mais, tornam a pessoa com mais idade, mas isso é uma coisa com que também vou jogando. 98% das minhas amigas que tenham a minha idade têm os cabelos pintados. As minhas amigas que pintam o cabelo não parecem ter 56 anos, eu já pareço que tenho essa idade. Depois, pelo cabelo, pela maneira como tem o cabelo arranjado e pintado, tu podes ver a classe social, porque não é uma cabeleireira qualquer que pinta bem.

"A sociedade empurra-nos para pintarmos os cabelos. Estamos a falar das mulheres, que são altamente penalizadas pela idade que têm. Está associada às mulheres uma eterna juventude. É mais fácil ser um homem com mais idade do que uma mulher com mais idade."
Ana Perez-Quiroga

Porque o objetivo é sempre que pareça natural.
Exatamente. Então o que tu vês são os amarelos muito mal pintados, ou os castanhos e os pretos. E o cabelo está sempre a crescer, tens de pintar o cabelo quase semanalmente. É uma renda. Não quer dizer que eu tenha poupado muito dinheiro, mas de repente, quando não se joga esse jogo, começas a pensar que a quantidade de coisas que precisas para manter um cabelo saudável e bonito custam dinheiro. É uma reflexão também económica, porque se eu tivesse o cabelo pintado, também não o quereria ter mal pintado. Tive uma vez o cabelo pintado de castanho durante uns quatro meses — acabei por o cortar todo ainda mais para tirar a cor — mas durante esse tempo a manutenção dessa cor foi uma coisa super cuidada porque depois tens de ter umas máscaras e uns cremes especiais.

Com que idade começaste a ter os primeiros cabelos brancos?
Aos 18 tinha duas grandes madeixas brancas e mantive-as sempre. Só pintei o cabelo uma vez, já tinha uns 38 anos — foi para um trabalho fotográfico. Mas durante muitos anos, talvez mais de 20, usei o cabelo todo com gel para trás e apanhado com um rabo de cavalo pequenino e isso tapava um bocado esses brancos — durante muitos anos não se notava. Depois em 1998, quando foi a Expo, estava a fazer uma produção no teatro Maria Matos com o João Pedro Vale e o Nuno Alexandre Ferreira e um dia decidimos que íamos os três rapar o cabelo. Aí quando deixei de o usar apanhado e passei a usá-lo solto, apercebi-me de que estava realmente muito mais grisalho e de que todos os anos fica mais grisalho.

Qual é que foi a tua reação a esse confronto com os cabelos brancos?
Não sei… tu és confrontada com a tua idade. Depende do momento da vida em que tu estás — se estás mais débil na tua auto-estima ou não. Esse confronto pela primeira vez não me custou absolutamente nada. É claro que às vezes uma pessoa está com a auto-estima ligeiramente mais baixa porque teve algum problema emocional ou outra coisa qualquer e talvez isso seja motivo para perceber “ah! estou muito mais velha”. Penso que só se começa a dar por isso a partir dos 40. Eu tinha uma visão perfeita para o longe e para o perto e a partir dos 41 anos o músculo dos olhos perde esta elasticidade e começas a ter de usar óculos. É nesse momento em que começas a confrontar-te com o teu corpo que aos poucos já não está a acompanhar a tua cabeça que dispara. Aos 41, quando tive de pôr óculos parecia-me tudo banal, mas agora, a partir dos 54, 55, começa a notar-se que há pequeninas falhas no corpo — já não corro os quilómetros que corria, antigamente trazia duas bilhas de gás pelas escadas. Há uma falência desta vitalidade. O cabelo é um bocadinho o resultado.

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

Na altura em que te apercebeste do cabelo branco ponderaste pintá-lo?
Não, nunca ponderei.

No teu dia-a-dia tens a experiência da Mary Beard?
Não, diretamente eu não sinto que me tratam pior, nunca fui julgada. Mas penso que mais uns anos e posso vir a ser.

Porquê daqui a mais alguns anos?
Porque de repente temos mais rugas, parecemos mais velhas e o cabelo branco marca sempre ainda mais a idade. Vêm sempre as perguntas: pões o botox ou não pões o botox, pintas o cabelo ou não pintas o cabelo?

No fundo a pergunta é o que fazemos à velhice.
Sim, e é isso que combato. Cada vez mais estamos a esconder os idosos, cada vez há menos respeito por alguém mais velho. Eu passo meses na China e lá tens um grande respeito pelas pessoas que são os teus avós ou que são de uma outra faixa etária e que detêm o saber. Como é que nós, de repente, vivemos nessa ideia um bocadinho americana de que a experiência destas pessoas não é validada. No Oriente ainda se valoriza a experiência que é de uma vida, da sua compreensão, mas também de um gesto: para o mestre de sushi de 97 anos o que importa é o gesto. Ele repete o mesmo gesto há 80 anos, é um gesto perfeito.

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Como é que te sentes ao lado das pessoas da tua idade que pintam o cabelo?
É evidente que destoo.

E gostas disso?
É a minha personalidade, mas isso também se paga.

Como?
O olhar social é um olhar diferente, não te sei explicar muito bem. Especialmente em outros meios mais pequenos, fora daqui de Lisboa.

"Sabemos perfeitamente que os cabelos brancos pesam mais, tornam a pessoa com mais idade, mas isso é uma coisa com que também vou jogando. 98% das minhas amigas que tenham a minha idade têm os cabelos pintados. As minhas amigas que pintam o cabelo não parecem ter 56 anos, eu já pareço que tenho essa idade."
Ana Perez-Quiroga

Sendo a questão política tão importante para ti, se não te achasses bonita com o cabelo assim, pintarias?
Não sei como responder-te… é uma coisa que vem de um bem-estar interior. Se a minha auto-estima estiver um bocadinho mais em baixo, é claro que me sinto menos forte. E nesse dia se calhar penso: “se eu não tivesse o cabelo branco se calhar sentia-me melhor, ou mais nova, com mais vitalidade”. Mas não sei muito bem responder.

Nunca pensas em voltar a pintar?
Quando pintei não achei nada de especial. Achei que prefiro o cabelo como está. Acho mais interessante, mais forte. Acho bonito. Acho que as mulheres quando pintam o cabelo, por muito bem pintado que esteja, de alguma forma tornam-se mais iguais. Assim tem mais carácter, mais power.

Kimberley Pearl, 64 anos, bailarina e atriz na Companhia Maior

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

Sempre gostou dos seus cabelos brancos?
Primeiro fiquei um bocado chateada quando começaram a aparecer — um não importa, mas depois começam a chegar muitos, muitos. Tinha colegas que diziam “com a tua idade não devias ter o cabelo assim, és tão jovem de espírito, devias ter o cabelo pintado”. Então pus henna. Já tinha pintado por causa de várias peças em que dançava, por exemplo — tive de ser cigana e pintei o cabelo com seis cores escuras diferentes para ficar escuro mas com reflexos. Durou seis ou oito meses e ficou de todas as cores até sair — gostei imenso, mudei o guarda-fato todo por causa das cores do cabelo. Fiz montes de coisas com o meu cabelo, cortei, deixei crescer, uma vez estava a pôr henna em casa e deixei demasiado tempo porque estava a falar com uma pessoa. Fiquei com uma coroa de laranja, não conseguia tirar. Decidi pedir [ajuda] a uma cabeleireira, fiquei lá quase o dia inteiro. Ela coloriu o cabelo todo e depois fez madeixas e no fim daquele tempo todo — estava marcado para as nove da manhã, fiquei até às cinco da tarde, e odiava estar lá dentro — vi uma senhora chegar com um cabelo natural, preto e branco, sal e pimenta, tão lindo aquele cabelo, e disse: “nunca mais”.

Kimberley nasceu no Alabama e isso ainda se nota na sua pronúncia. Quando chegou à Europa, aos 21 anos, já se tinha formado como bailarina em Boston e ficou em Portugal porque “estava bom tempo”. Também porque entrou logo para a Companhia de Bailado Verde-Gaio, que mais tarde deu origem à Companhia Nacional de Bailado, de que também fez parte. À saída de uma aula de dança com vista para o Tejo diz que ainda gostava de voltar a fazer trabalhos de modelo, como o que fez em março de 2016 para Filipe Faísca na ModaLisboa. Era uma coleção que o designer dizia ser “sem idade” e foi Kim, de cabelo branco armado num rabo de cavalo despenteado que deu o tom ao abrir o desfile. “Curiosamente nunca fui modelo de cabelos”, diz, enquanto arranja uma justificação — “o meu cabelo é muito forte e eles têm medo”.

Decidiu assim, de um momento para o outro?
Assim. Eu vi que isto é natural, isto é que é bonito. Por mais que uma pessoa faça madeixas e por mais que tente fazer coisas para realçar, a cor é sempre a mesma, sempre o mesmo tom. E a cor natural tem montes de cores, ninguém tem só uma. Para fazer como deve ser tinha de ir ao cabeleireiro e eu não gosto de estar sentada no cabeleireiro. A manutenção é chata: uma pessoa olha para o espelho e está lindíssimo, mas depois vêm as raízes e é feio, tem de estar sempre a contar as semanas, é um frete. E aquele dia foi mesmo desastroso para mim, estar ali tantas horas. Quando vi aquela senhora vi que nunca mais ia pintar o meu cabelo.

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

Que idade tinha?
Tinha uns 57. Comecei a ter os primeiros cabelos brancos aos 50 e poucos, aos 54 já estava a experimentar coisas, como a henna e assim — tentei sempre coisas naturais, mas quando fui dessa vez ao cabeleireiro foi com os produtos deles. Depois demorou assim uns quatro ou cinco anos para crescer e depois cortei. Eu adoro o cabelo branco, sempre tive uma pancada com cabelo branco, até tive uma Barbie com cabelo branco, loiro platinado.

Sendo assim, porque é que demorou a abraçar os cabelos brancos?
O meu pai aos 65 já tinha o cabelo todo branquinho e eu pensava “ótimo, também vou ter assim”. Só que eu não me lembrava que o meu pai começou por ter só alguns cabelos brancos de lado, mas nos homens fica giro, nas mulheres vem alguém e diz “ah! isso não fica giro”. Além disso, pensei: se trato do cabelo distraio das rugas, mas não há nada a fazer, as rugas são o pior, não há nada que uma pessoa possa fazer. Mas demora muito tempo a tirar tudo. O mais difícil é não tocar, estar meio colorido e meio com as raízes. Essa parte foi dolorosa. Mas nós fazíamos tantos penteados na dança — eu ainda estava ativa — que não fazia mal, escondiam-se.

"A manutenção [de pintar o cabelo] é chata: uma pessoa olha para o espelho e está lindíssimo, mas depois vêm as raízes e é feio, tem de estar sempre a contar as semanas, é um frete."
Kimberley Pearl

Teve uma carreira em que se é muito atento ao aspeto físico. Como é que foi estar a trabalhar nesse momento da transição?
Somos muito atentos à estética. Eu era muito desleixada com as raízes, não tinha o hábito de estar sempre a pintar durante o tempo em que andava em experimentações. Ou então cortava para disfarçar. Tinha duas ou três colegas que não gostavam muito disso, mas eu entendo: eu estava com eles todos os dias e não gostavam de ver-me envelhecer. Uma vez o meu filho disse-me “que triste, mãe, eu conheci-te assim com o cabelo escuro, agora tens o cabelo branco”. E eu disse-lhe “mas todos nós estamos a envelhecer”. Quando nos vemos todos os dias é diferente. Entretanto separei-me da Companhia, fui para Grândola dois anos e foi uma coisa estranha também.

Vai mantê-lo assim, branco?
Queria que fosse todo branquinho como o do meu pai. E ainda não está, chateia-me que não esteja, uma pessoa nunca está satisfeita com aquilo que tem. A pessoa com a idade começa a perceber o que gostava de ter, mas também percebe que não tem ainda e tem paciência para esperar. Em jovem não tem, pinta logo, ou então faz madeixas. Mas [no manter ou não manter entra] sempre a questão da manutenção. Não tenho dinheiro para isso, é muito difícil ficar sempre com o cabelo bonito sem uma manutenção pelo menos mensal. Nos Estados Unidos nunca tive esse hábito de ir ao cabeleireiro, isso é mais europeu. As pessoas gostam de estar bem, de se sentirem bem consigo próprias. E às vezes quando uma pessoa já não trabalha, as crianças já cresceram e não existe uma ocupação, olha para si e a única coisa que resta é ir ao cabeleireiro tratar do cabelo, das unhas, arranjar-se e ir jantar fora. E vejo que há mulheres que têm o cabelo natural porque não têm dinheiro para o ter pintado. Se houvesse alguém que lhes dissesse “ficas bem assim”, que lhe fizesse um elogio, talvez já se preocupassem mais com a saúde e a cabeça e não tanto com o cabelo branco.

"Vejo que há mulheres que têm o cabelo natural porque não têm dinheiro para o ter pintado. Se houvesse alguém que lhes dissesse 'ficas bem assim', que lhe fizesse um elogio, talvez já se preocupassem mais com a saúde e a cabeça e não tanto com o cabelo branco."

Kimberley Pearl

Viu o cabelo como um sinal de que estava a envelhecer?
Não. O corpo também está sempre contra nós, no geral. Já não consigo levantar a perna — penso que ela está aqui [aponta para a altura da sua orelha], olho ao espelho e está aqui [aponta para a altura do ombro]. Doem-me as costas, não tenho musculatura. Pesa um bocadinho ver pessoas com 18 e 19 anos que conseguem fazer isso. Mas por outro lado ganham-se outras coisas. Ganho a capacidade de pôr um estilo que eu não tinha com 21 anos como tinha com 40. E mesmo agora, faço muito mais braços e consigo mexer-me muito mais com estabilidade do que quando tinha 23 anos. Para nós mulheres há sempre alguma coisa que não está bem. Com o cabelo, por exemplo, eu percebi que não podia andar a brincar e experimentar — cortava e crescia como um arbusto, fazia permanente, parecia uma leoa. Não somos iguais aos outros, temos de aceitar aquilo que temos e trabalhar com isso.

MICHAEL M. MATIAS / OBSERVADOR

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