[Donald Trump reconheceu esta semana Jerusalém como a capital de Israel. Seguiram-se confrontos, feridos e já há quatro mortos contabilizados. Leia a segunda parte da história da cidade que está no centro do conflito. Recorde a primeira aqui.]

Retomemos o fio da história onde o deixamos em Jerusalém: 3800 anos a criar sarilhos

705

Por volta de 690, o califa Abd al-Malik inicia a construção da Mesquita de Al-Aqsa, no Monte do Templo, projecto que é terminada pelo seu filho – e sucessor – Al-Walid em 705. A construção da mesquita – o terceiro lugar mais sagrado do Islão – veio reforçar o papel de Jerusalém como capital da dinastia Omíada e as tradições judaicas e cristãs da cidade foram “recicladas” e postas ao serviço da “narrativa” islâmica. Por exemplo, “uma pegada existente na Rocha, que no passado fora tida por uma pegada de Jesus, era agora uma marca de Maomé” (Montefiore), deixada quando da sua viagem nocturna.

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O nó de Jerusalém ia tornando-se, de ano para ano, mais inextricável.

Mesquita de Al-Aqsa

750

Os anos continuados de domínio islâmico sobre Jerusalém não são sinónimo de paz: as disputas intestinas são tão frequentes, sangrentas e implacáveis como as que tinham dilacerado o império romano ou o império sassânida. Uma das mudanças de poder mais relevantes dá-se em 750, quando, após um século de domínio, chega ao fim o califado Omíada, dando lugar aos Abássidas.

O califa Harun al-Rashid, que representa o apogeu do califado Abássida, manterá relações cordiais e trocará presentes com o imperador Carlos Magno, pelo que não é de estranhar que as relações inter-religiosas em Jerusalém sejam invulgarmente amenas: “Carlos Magno pagou o imposto cobrado aos cristão da cidade […], em troca do qual Harun al-Rashid o autorizou a erigir um bairro cristão em torno do Santo Sepulcro, com um convento (com biblioteca e estalagem para peregrinos)” (Montefiore).

Harun al-Rashid recebe emissários de Carlos Magno, por Julius Köckert, 1864

878

Nova mudança de poder: em 868, Ahmed ibn Tulun, um escravo-soldado turco, foi nomeado governador do Egipto, mas, apercebendo-se do declínio do califado abássida, correu com o inspector de finanças do califa e assumiu na prática a governação autónoma da província – acabará por assumir formalmente a independência em 874. Em 878, ibn Tulun sente-se suficientemente forte para anexar a Síria – o que inclui Jerusalém.

A Mesquita de ibn Tulun, erguida em 879, é a mais antiga do Cairo a conservar o seu traçado original

935

Os abássidas reagem e fazem recuar os sucessores de ibn Tulun: Jerusalém é reconquistada em 904. O Egipto acaba por ir parar às mãos de Muhammad ibn Tughj, filho de outro general turco ao serviço dos árabes e a quem o califa, por falta de força para se impor, acaba por reconhecer como governador hereditário do Egipto e Síria.

O califado abássida continua em declínio e o vazio de poder é sinónimo de instabilidade política, que tem o efeito de acicatar a competição entre religiões em Jerusalém. Assim, contrariando as anteriores práticas de tolerância, em 935 “um anexo do Santo Sepulcro foi convertido à força em mesquita; três anos depois, os muçulmanos atacavam os cristãos durante a celebração do Domingo de Ramos, pilhando a igreja” (Montefiore). Ao mesmo tempo, abrem-se fracturas dentro das crenças religiosas: os judeus dividem-se em rabanitas e caraítas e entre elas insinua-se uma nova corrente, os khazars, nómadas das estepes da Ásia Central convertidos ao judaísmo.

E este número crescente de seitas disputa o mesmo exíguo espaço: Jerusalém.

O califado em 945: apesar da instabilidade política a extensão territorial está no auge

1009

Entretanto, o mundo islâmico também se divide, com os Fatímidas a disputar a primazia dos declinantes Abássidas. As batalhas e cercos sucedem-se e em 969 Jerusalém passa para a esfera de influência fatímida. Sob o reinado do califa fatímida al-Hakim, há uma mudança drástica em Jerusalém: desde a conquista pelo califa Omar, 350 anos antes, os cristãos tinham gozado de liberdade religiosa, mas em 1004 al-Hakim “começou a prender e a executar cristãos, encerrando as igrejas de Jerusalém e convertendo-as em mesquitas. Proibiu as celebrações da Páscoa e o consumo de vinho […] os judeus foram obrigados a optar pela conversão ou a emigração e as sinagogas do Egipto e de Jerusalém foram destruídas” (Montefiore). Em 1009 al-Hakim ordenou que a Igreja do Santo Sepulcro fosse demolida até não ficar pedra sobre pedra.

1054

Os califas seguintes reverteram parcialmente as políticas radicais de al-Hakim, mas entretanto, em 1054, reaviva-se entre os cristãos uma fractura antiga que opunha as igrejas de Roma e Constantinopla. O cisma tem por origem um debate sobre o tipo de pão apropriado à Eucaristia – levedado (favorecido no Oriente) ou não-levedado (preferido em Roma) – e os preceitos do jejum. Hoje o assunto não inflamaria paixões fora do universo dos blogs sobre nutrição e dietas, mas no mundo medieval levou a uma escalada de argumentos e à ruptura definitiva entre Roma e Constantinopla, com o papa Leão IX e o patriarca Miguel I Cerulário a excomungarem-se mutuamente (as excomunhões só seriam anuladas em 1964 – em Jerusalém – o que revela mais sobre a natureza das duas igrejas do que mil discursos).

Papa Leão IX

Um dos resultados do Grande Cisma foi o patriarca de Jerusalém juntar-se à Igreja Ortodoxa do Oriente, o que colocou uma pressão adicional sobre os católicos do Ocidente: os Lugares Santos, que atraíam cada vez mais peregrinos da Europa, estavam agora sob a dupla jurisdição de inimigos da sua fé: muçulmanos e cristãos ortodoxos.

1073

Para mais, os ataques a peregrinos estavam a crescer em frequência e ousadia: em 1065, a Grande Peregrinação Alemã à Terra Santa, congregando cerca de 7000-12.000 pessoas e liderada pelo arcebispo de Mainz e pelos bispos de Utrecht e de Bamberg, escapou com dificuldade a um ataque do emir de Tripoli, ao passar junto desta cidade, e acabou por ser vítima dos beduínos já perto de Jerusalém, e poderia ter sofrido mais baixas se o governador fatímida de Ramla não tivesse posto os atacantes em debandada.

Estes ataques reflectem a instabilidade crescente do mundo muçulmano, com o califado fatímida em desintegração e a emergência dos turcos seljúcidas (que tinham assimilado fortes influências persas). Em 1073, os seljúcidas, sob o comando do emir Atsiz bin Uvaq, conquistam Jerusalém, antes de se encaminharem para o Egipto.

Em 1177, as notícias da derrota de Atsiz no Egipto encorajam os habitantes de Jerusalém a revoltar-se, mas o emir regressa e a sua fúria abate-se sobre a cidade.

O Império Seljúcida na sua máxima extensão, em 1092

1095

Mas o Império Seljúcida teve um esplendor efémero: atinge o zénite com o sultão Malik I e cinde-se em reinos menores após a morte deste, em 1092: “o mundo islâmico estava fragmentado em pequenos baronatos governado por príncipes fracos e dominados por generais turcos – os emires – e regentes igualmente turcos – os atabegs” (Montefiore).

Em 1095, no concílio de Clermont, o papa Urbano II vê uma oportunidade nesta relativa fraqueza islâmica e apela a uma cruzada para libertar a Terra Santa. Tem início por toda a Europa um vasto movimento de recrutamento. Como exercício de aquecimento, no início do Verão de 1096 os cruzados massacram judeus na Renânia e na Boémia. Em Agosto de 1096, partem finalmente para a Terra Santa, onde obtêm sucessivas vitórias sobre as divididas hostes muçulmanas.

Concílio de Clermont, 1095

1099

A 7 de Junho de 1099 a I Cruzada está às portas de Jerusalém, que, no ano anterior mudara mais uma vez de mãos, nas intermináveis disputas entre facções muçulmanas. Após várias tentativas falhadas e uma procissão em torno das muralhas, a 8 de Julho (precedida por um jejum de três dias), o assalto final tem lugar a 13 de Julho. As defesas cedem e muitos civis buscam refúgio no Monte do Templo. Não lhes serve de nada, pois os cruzados estão possuídos pela sede de sangue e pela exaltação religiosa e massacram indistintamente muçulmanos e judeus (os cristãos ortodoxos escapam: tinham sido expulsos da cidade pelo governador fatímida antes da chegada dos cruzados).

Na mesquita de Al-Aqsa (o templo de Salomão, para os cruzados) patinhava-se em sangue e o cronista Foucher de Chartres relata que “nem um ficou vivo; nem as mulheres e as crianças foram poupadas”. “Viam-se por toda a parte fragmentos de corpos humanos, troncos sem cabeça, pernas e braços mutilados, dispersos por todas as direcções”.

[A I Cruzada em Jerusalém, na visão de Georg Friedrich Handel: ária “Sibillar gli angui d’Aletto”, da ópera Rinaldo (1711): a personagem (ficcional) Argante, rei de Jerusalém, exprime a sua angústia e receio perante a aproximação das hostes cristãs. Interpretação (excepcional) do barítono Gerald Finley e da Academy of Ancient Music, dirigida por Christopher Hogwood (L’Oiseu-Lyre/Decca)]

1192

As cruzadas sucedem-se e Jerusalém muda de mãos várias vezes e os edifícios do Monte do Templo vão sendo reconvertidos ao culto cristão ou islâmico consoante quem detém o poder na cidade. Pontualmente, há acordos de cavalheiros, como o da III Cruzada: Ricardo I Coração de Leão, embora tendo fracassado na tentativa de recuperar a cidade que Saladino reconquistara em 1187, consegue obter deste, pelo Tratado de Jaffa, em 1192, que os peregrinos cristãos europeus sejam autorizados a visitar os Lugares Santos de Jerusalém. O tratado é também, como escreve Montefiore, “o primeiro acordo de divisão da Palestina da história”.

Saladino, por Gustave Doré

1244

Em 1229, o imperador Frederico II – VI Cruzada – consegue recuperar a cidade sem derramamento de sangue, através de um tratado com al-Kamil, sultão do Egipto, debilitado por querelas familiares. O tratado prevê 10 anos de paz, dá garantias de preservação dos direitos e propriedades dos muçulmanos residentes, concede aos muçulmanos o direito de exercer o seu culto e entrega-lhes mesmo o controlo do Monte do Templo. Montefiore classifica “este tratado de soberania partilhada” como “o mais ousado acordo de paz da história de Jerusalém”.

Porém, em 1244, volta-se ao business as usual: As-Salih Ayyub, o sucessor de al-Kamil como governante do Egipto, tinha recrutado um exército de mercenários tártaros provenientes da Corásmia (Khwarazm) para o ajudar a pôr na ordem os familiares que lhe disputam o poder, mas as hostes tártaras, chefiadas por Barka Khan, saem do seu controlo e decidem tomar e saquear Jerusalém. Entram “de rompante no convento arménio, onde mataram todos os monges e freiras; destruíram igrejas e casas, pilharam e incendiaram o Santo Sepulcro”.

1272

Chegou assim ao fim o domínio cristão sobre Jerusalém. O massacre de 1244 ainda despertará na Europa o ímpeto para uma VII Cruzada, mas em 1250 esta é derrotada na batalha de Fariskur, no Egipto, e o rei Luís IX de França é feito prisioneiro.

Luís IX prisioneiro em Fariskur, por Gustave Doré

A VIII Cruzada (1270) acaba por ir parar não à Terra Santa mas a Tunes, na Tunísia (de qualquer modo, é um fiasco) e a IX (1271-72), chefiada pelo príncipe Eduardo, filho de Henrique III de Inglaterra, obtém algumas vitórias – tirando partido da instabilidade adicional causada pelos raids das hordas mongóis – mas acaba por retirar-se sem conseguir ganhos territoriais.

É o fim da sangrenta história das Cruzadas, embora a presença cristã na região só se extinga definitivamente com a queda de Acre, em 1291.

“O último cruzado”, por Karl Friedrich Lessing, 1835

Séculos XIV-XV

No seguimento da VII Cruzada, em 1250 os mamelucos tomam o poder no Egipto e Jerusalém ficará sob o controlo do sultanato mameluco até ao término deste, em 1517. Não quer dizer que a paz tenha reinado na cidade durante este período: os raids mongóis sobre a Palestina começam em 1260 e estendem-se até 1300, ano em que se apoderam temporariamente de Jerusalém; e há sempre a usual quota de revoltas, guerras intestinas entre mamelucos e pestilências.

O sultanato mameluco do Cairo vai deixando-se cair na corrupção e na negligência e o controlo da Jerusalém cristã é disputado por arménios e georgianos, que nutrem uma rivalidade exacerbada. “Os arménios, que procuravam expandir o seu bairro de forma agressiva […] conseguiram, por via de um suborno, arrancar o Calvário aos georgianos – que, em seguida, pagando um suborno mais elevado, o reconquistaram […] No decurso de 30 anos, o Calvário mudou cinco vezes de mãos” (Montefiore).

Séculos XVI-XVIII

Em 1517, após derrotar o derradeiro sultão mameluco, Al-Ashraf, na Batalha de Alepo, o sultão otomano Selim I visita Jerusalém e proclama-se califa do mundo islâmico.

Selim I

O domínio otomano não altera significativamente a “gestão partilhada” dos lugares santos de Jerusalém, aonde continua a afluir grande quantidade de peregrinos cristãos. A “partilha” não se faz sem atritos, mas seria de estranhar que não os houvesse quando, por exemplo, nas primeiras décadas do século XVI, a Igreja do Santo Sepulcro é gerida simultaneamente por oito denominações religiosas. Ainda assim, em 1555 é possível empreender o restauro do túmulo de Cristo na dita igreja, mediante autorização conjunta do papa Júlio III e do sultão Solimão o Magnífico e financiamento de Filipe II de Espanha, que, uma vez que entrou com o dinheiro, reclama para si o título de Rei de Jerusalém, um título que estava vago desde 1291, quando a queda de Acre pôs termo à presença cristã na Palestina.

Apesar de incongruente, o título foi sendo transmitido na monarquia espanhola, pelo que o seu detentor actual é Filipe VI. Todavia, o título de Rei de Jerusalém tem hoje, pelo menos mais seis pretendentes e sendo a questão da soberania sobre Jerusalém já suficientemente delicada quando só é disputada por israelitas e palestinos, o mundo pode agradecer a estes distintos cavalheiros por não mostrarem grande empenho em reclamar o seu legado.

Godefroy de Bouillon (1060-1100), primeiro Rei de Jerusalém (1099-1100), é o primeiro cavaleiro a contar da esquerda

1774

A guerra russo-turca de 1768-74 termina com a vitória russa, embora as outras potências europeias, desejosas de manter algum equilíbrio geopolítico, não permitam que Catarina a Grande obtenha tantos ganhos territoriais à custa do declinante Império Otomano quanto desejaria. Pelo Tratado de Küçük Kaynarca a Rússia devolve a Valáquia e a Moldávia aos otomanos, mas ganha o estatuto de protectora dos cristãos ortodoxos no Império Otomano (França tinha a seu cargo a protecção dos católicos) e o direito a edificar uma igreja ortodoxa em Constantinopla (que nunca chega a exercer).

A vitória de Catarina a Grande sobre os turcos, por Stefano Torelli, 1772

1846

No início do século XIX, os crentes ortodoxos russos tornam-se na maior fracção dos cerca de 20.000 peregrinos que Jerusalém recebe anualmente, o que é mais compreensível se se considerar que, após a queda Constantinopla em 1453, a Rússia passara a ver-se a si mesma como a Terceira Roma.

Pela mesma altura, começam a surgir as primeiras pretensões judaicas a reaver a sua terra: um dos primeiros a expressar o desejo de ver os judeus dispersos pela Europa reinstalarem-se na Palestina foi o rabino Juda Alkalai, por volta de 1840.

Ao mesmo tempo, as tensões pelo controlo dos lugares santos não se atenuam, como se comprova em 1846, quando as Páscoas católica e ortodoxa coincidem, excepcionalmente, no mesmo dia: 10 de Abril. O governador otomano de Jerusalém, prevendo sarilhos, instala-se com um destacamento de soldados na Igreja do Santo Sepulcro, mas não consegue evitar que os monges ortodoxos e católicos passem da contestação verbal ao direito dos outros para realizar as respectivas cerimónias, para o confronto físico, recorrendo primeiro ao que está a mão – crucifixos, candelabros, lamparinas – e depois a pistolas e facas que tinham ocultado na igreja, antevendo já este curso dos eventos. O tumulto salda-se em 40 mortos.

A Igreja do Santo Sepulcro

1850-67

Jerusalém não atrai só peregrinos, também ali afluem viajantes com motivações não religiosas. Entre eles está Gustave Flaubert que descreve a cidade como “um ossuário rodeado de muralhas, onde as velhas religiões apodrecem no solo” e atesta que a atmosfera na Igreja do Santo Sepulcro não melhorou desde o incidente de 1846: “os arménios amaldiçoam os gregos, que detestam os latinos, que execram os coptas” (Voyage en Orient).

Herman Melville, que passa por Jerusalém em 1856, também não fica particularmente bem impressionado com a Igreja do Santo Sepulcro: “uma pilha semi-arruinada de grutas bafientas que cheiravam a morte”.

Mark Twain visita a Terra Santa em 1867 e as impressões que deixou registadas em Innocents abroad não são lisonjeiras: “A famosa Jerusalém, o nome mais solene da história, transformou-se numa aldeia de pobres – triste, desoladora, sem vida”. Fica também impressionado com as reduzidas dimensões da cidade: “A Mesquita de Omar e o pátio em torno dela [a Esplanada das Mesquitas] ocupam um quarto da cidade”.

O Monte do Templo

1897

Em 1897, tem lugar em Basileia, na Suíça, o I Congresso Sionista Mundial, no qual é criada, por iniciativa de Theodor Herzl (1860-1904), o grande ideólogo e dinamizador do sionismo, a Organização Sionista Mundial, que se empenha em promover a emigração judaica para a Palestina. O Congresso discute a possibilidade de Jerusalém se tornar a capital de um eventual estado judaico na Palestina. Porém, o pensamento de Herzl sobre Jerusalém, que começara por vê-la como exclusivamente judaica, evolui e acaba por concluir: “Faremos de Jerusalém uma cidade extra-territorial, a fim de que ela seja de todos e não seja de ninguém, e que os seus lugares santos se tornem presença comum de todos os crentes”. Embora Herzl seja venerado como o Pai Fundador do Estado de Israel, a maioria dos governantes israelitas tem preferido ignorar esta visão conciliadora de Herzl.

Theodor Herzl, a bordo de um navio ao largo do porto de Jaffa, na Palestina, 1898

1901

Os otomanos impõem restrições à emigração e à aquisição de terrenos por judeus em Jerusalém.

1917

Desde 1914, que o Império Otomano luta ao lado da Alemanha e Austro-Hungria contra a França, Grã-Bretanha e Rússia. Os britânicos, através do audaz T.E. Lawrence, incitam os árabes à revolta contra quatro séculos de jugo otomano e prometem-lhes reinos no Iraque e na Síria como recompensa.

O que os árabes não sabem é que britânicos e franceses já repartiram o Próximo Oriente em zonas de influência, estabelecidas num mapa negociado em 1915-16 entre os diplomatas Mark Sykes e François Georges-Picot: parte da Palestina, a Jordânia e o Iraque para a Grã-Bretanha, a Síria, o Líbano e o sul da Turquia para a França, restando por determinar o destino de parte da Palestina.

O mapa original do acordo Sykes-Picot: A: zona de influência francesa, B: zona de influência britânica

Em Novembro de 1917, Lord Arthur Balfour, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, envia uma carta a Lord Rothschild, líder da comunidade judaica britânica, uma carta em que declara que “o Governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento na Palestina de uma pátria judaica […], embora deixando claro que nada deve ser feito que prejudique os direitos cívicos e religiosos das comunidades não-judaicas existentes na Palestina”, o que é o equivalente a tentar a quadratura do círculo.

Retrato de Arthur Balfour por Lawrence Alma-Tadema (1836-1912)

Por trás da Declaração Balfour está o contexto da intensificação, na viragem dos séculos XIX-XX, das perseguições às comunidades judaicas na Rússia e na Europa Oriental, que faz a opinião pública ocidental encarar com simpatia a criação de uma pátria judaica. Mas há também motivações bem mais interesseiras e menos humanitárias: a Grã-Bretanha está desde 1914 em guerra com a Alemanha e esta tem praticamente o monopólio da produção de acetona, matéria indispensável ao fabrico de explosivos e projécteis de artilharia; acontece que Chaim Weizmann, judeu, bioquímico, cidadão britânico e líder sionista, descobriu um processo alternativo para produção industrial de acetona. O empenho de Weizmann no esforço de guerra britânico tem como contrapartida o apoio do Governo britânico à criação de uma pátria judaica na Palestina.

Independentemente das motivações dos vários actores, do que não há dúvida é que a conjugação das promessas feitas aos árabes pelos britânicos, o mapa Sikes-Picot e a Declaração Balfour é a receita perfeita para criar um problema que, um século depois, parece não ter solução à vista.

Entretanto, em Novembro-Dezembro de 1917, tem lugar a Batalha de Jerusalém: as tropas do Império Britânico derrotam as tropas otomanas e alemãs e a cidade rende-se a 30 de Dezembro.

Tentativa de rendição de Hussein Effendi al-Husseini, presidente da câmara de Jerusalém, e uma delegação formada por familiares seus, a dois sargentos britânicos, que a recusaram. Pouco antes Hussein tinha, também sem sucesso, tentado render-se a dois cozinheiros do exército britânico que andavam em busca de ovos. Só mais tarde Hussein lograria encontrar um oficial britânico que o conduziu, passo a passo, ao longo da hierarquia militar, até ao general John O’Shea, que finalmente aceitou a rendição

1919

Terminada a I Guerra Mundial, as potências vencedoras preparam-se para rearranjar o mapa mundi no rescaldo do desmembramento dos impérios alemão, austro-húngaro e otomano.

Proclamação de Woodrow Wilson, presidente norte-americano: “Todas as decisões territoriais resultantes desta guerra devem ser tomadas no interesse e para benefício das correspondentes populações”.

Diálogo entre Georges Clemenceau, primeiro-ministro francês, e David Lloyd George, primeiro-ministro britânico: GC: “Diga-me o que quer”, DLG: “Quero Mossul”, GC: “Está combinado. Mais alguma coisa?”, DLG: “Sim. Também quero Jerusalém”, GC: “Está combinado”.

1920

Jerusalém e a Palestina ficam sob administração britânica.

A 20 de Abril de 1920, a celebração em Jerusalém da festividade muçulmana de Nabi Musa dá para o torto. Apesar de terem passado séculos sob o jugo otomano e estarem agora sob mandato britânico, alguns árabes recordam-se subitamente de que a “A religião de Maomé foi fundada ao fio da espada!”. Não abundando as espadas, munem-se de paus e vão-se aos judeus.

Manifestação anti-sionista na Porta de Damasco, Jerusalém, Março de 1920

1921

Em Março, a Conferência do Cairo, convocada por Winston Churchill, recém-empossado no cargo de Secretário das Colónias, tenta sanar, na medida do possível, as contradições decorrentes da promessas feitas aos árabes, do acordo Sikes-Picot e da Declaração Balfour: a França fica com a Síria e o Líbano, a Grã-Bretanha com o mandato para instalar uma nação judaica na Palestina, Hussein bin Ali, o xerife de Meca, torna-se rei do Hejaz, Abdul Aziz bin Saud fica com boa parte da Península Arábica, Faisal com o Iraque (embora, na prática, sob controlo britânico) e Abdullah bin Husseini com a Transjordânia (rebaptizada como Jordânia em 1946). Não era o que os líderes árabes tinham ambicionado, mas ao menos tinham cada um o seu tronozito. Fica por resolver o problema dos árabes da Palestina – e continua, até hoje.

Abdullah I, rei da Jordânia, em frente à Igreja do Santo Sepulcro, em 1948

1924

A pátria judaica na Palestina demora a ganhar forma e os judeus impacientam-se. Em 1924, a Haganah, uma milícia sionista, assassina em Jerusalém o judeu holandês Jacob Israël de Haan, por este se opor ao sionismo e manter contactos com líderes árabes. É a primeira de muitas vítimas do terrorismo sionista.

Jacob Israël de Haan

1929

As quezílias entre judeus e muçulmanos envolvendo o acesso ao Muro das Lamentações de Jerusalém sobem de tom a 15 de Agosto de 1929, quando uma manifestação sionista vai, de forma provocatória, até ao Muro e entoa cânticos, protegida pela polícia britânica. Como resposta, a 16 uma multidão de muçulmanos sai da mesquita de Al-Aqsa e espanca os judeus que rezam junto ao Muro. A 17, um miúdo judeu que vai buscar uma bola que caiu no jardim de uma casa árabe é assassinado.

O Muro das Lamentações

A violência estra em espiral ascendente e os tumultos alastram a toda a Palestina. Balanço: 131 judeus mortos (maioritariamente por árabes) e 116 árabes mortos (maioritariamente pelas forças da ordem britânicas).

Famílias judias fogem da Cidade Velha durante os tumultos de 1929

1936

Em 1936 eclodem na Palestina revoltas árabes que durarão até 1939 e se saldam em 300 mortos judeus e 5.000 mortos árabes, mais 262 mortos entre as forças da ordem britânicas. São uma reacção ao crescente afluxo de emigrante judeus, ao papel preponderante que os judeus assumem na economia da região e ao favorecimento que, aos olhos dos árabes, as autoridades britânicas dispensam à causa judaica.

Tropas britânicas expulsam árabes revoltosos de Jerusalém, 1938

1939-45

As autoridades britânicas parecem estar tão preocupadas como os árabes com a emigração judaica e impõem um limite de 10.000 entradas/ano, que mantêm mesmo quando se torna evidente que a Alemanha nazi persegue activamente os judeus e mais nenhum país do mundo os quer.

Com o estalar da II Guerra Mundial, a organização sionista Irgun (uma ramificação radical da Haganah), que tinha vindo a promover acções terroristas contra os britânicos, dispõe-se a colaborar temporariamente com estes, face ao perigo maior do nazismo. Nem todos na Irgun estão de acordo com a trégua e em 1940 os extremistas juntam-se na organização paramilitar Lehi, também conhecida por Gang Stern, por ser liderado por Avraham Stern e por usar métodos próprios de gangs criminosos. A Lehi “até propôs colaborar com a Alemanha nazi e a Itália fascista contra os britânicos se as potências do Eixo concordassem em transferir todos os judeus dos seus territórios para a Palestina” (John Andrews, em Os grandes conflitos mundiais).

Entre os jovens fanáticos que desempenharam papéis de liderança nestas facções radicais convém reter os nomes de Menachem Begin (1913-1992), membro da Irgun e, bem mais tarde, primeiro-ministro de Israel e Prémio Nobel da Paz, e Yitzhak Shamir (1915-2012), membro da Lehi e que viria a suceder a Begin como primeiro-ministro.

Cartaz da Força de Polícia da Palestina oferece recompensas pela captura de três membros da Lehi: o do meio é Yitzhak Shamir. É um documento que ajuda a questionar o que separa um “terrorista” de um “combatente pela liberdade”

Com o final da II Guerra Mundial, o afluxo de judeus europeus para a Palestina intensifica-se – o Holocausto veio reforçar de forma pungente a necessidade de criar uma pátria judaica – e a população judaica da Palestina, que representava 11% do total em 1922, chega a 33% em 1945. Concomitantemente, intensifica-se a movimentação dos sionistas contra o mandato britânico.

Chegada de emigrantes judeus à Palestina, 1947

1948

As autoridades britânicas, tinham a custo, reprimido a agitação árabe nos anos 20 e 30 e crêem que também serão capazes de reprimir a agitação sionista que conhece um crescendo após o final da II Guerra Mundial. Enganam-se: a 22 de Julho de 1946, um atentado da organização Irgun contra o Hotel Rei David mata 91 pessoas, incluindo 28 funcionários britânicos.

Explosão de uma segunda bomba no Hotel Rei David, a 22 de Julho de 1946

Em 1947, perante a escalada dos conflitos com os sionistas, Clement Attlee, primeiro-ministro da Grã-Bretanha, renuncia ao mandato na Palestina e uma comissão especial das Nações Unidas propõe um plano para a divisão da Palestina em dois Estados, ficando Jerusalém sob administração internacional. David Ben-Gurion, líder da comunidade judaica da Palestina, aceita o plano, o Alto Comissariado Árabe rejeita-o e exige “uma Palestina unificada e independente”.

A 14 de Maio de 1948, Ben-Gurion proclama o Estado de Israel. O primeiro país a reconhecê-lo oficialmente é a URSS. Os países árabes vizinhos reagem invadindo o território do novo Estado. A Palestina fica a ferro e fogo, com milícias árabes e judaicas a lutar entre si, a massacrar civis e a eliminar diplomatas estrangeiros – um deles é o conde Folke Bernadotte, o mediador oficial das Nações Unidas, abatido a tiro em Jerusalém pela Lehi.

Porta de Sião, Cidade Velha de Jerusalém: judeus fogem do avanço das tropas jordanas, Maio de 1948

Ao fim de nove meses de conflito, Israel consegue repelir as forças árabes e conquista um território que, no total, é o dobro do que a ONU lhe atribuíra originalmente (mas a Cidade Velha de Jerusalém continua sob controlo da Jordânia, que faz questão de demolir o respectivo bairro judaico). 700.000 árabes fogem ou são expulsos de Israel, outros tantos judeus fogem ou são expulsos dos países árabes e instalam-se em Israel.

70 anos decorridos, os árabes palestinos (ou melhor, os seus descendentes) que procuraram refúgio no Egipto, Síria e Jordânia continuam a ter nestes países estatuto de refugiados e a ser tratados como cidadãos de segunda – é uma curiosa forma de os países árabes mostrarem apreço pela sua causa. Escreve Tim Marshall, em Prisioneiros da geografia (ver Prisioneiros da geografia: Quem dividiu o mundo e porquê?), que “se Israel desaparecesse e fosse substituído pela Palestina, era provável que [o Egipto, a Síria e a Jordânia] reivindicassem partes do território”.

1949

O governo israelita transfere a capital de Tel-Aviv para Jerusalém.

1967

Guerra dos Seis Dias: os vizinhos árabes preparam um ataque conjunto a Israel e Gamal Abdel Nasser, presidente egípcio, proclama que “o nosso objectivo fundamental será destruir Israel. Provavelmente não poderia ter dito estas coisas há cinco anos […]. Hoje digo-as porque estou confiante”.

Israel antecipa-se ao ataque, inflige uma pesada derrota à coligação árabe e conquista novos territórios – Jerusalém fica agora inteiramente sob controlo israelita. Em 1968 são expulsos 6000 árabes do antigo quarteirão judeu da cidade.

Para a história árabe, à “catástrofe” (nakba) de 1948, soma-se agora o “revés” (naksa) de 1967.

David Ben-Gurion junto ao Muro das Lamentações em Junho de 1967 (AFP/Getty Images)

1973

Guerra do Yom Kippur.

1987

Tem início a Primeira Intifada, levantamento palestino contra a ocupação israelita de Gaza e da Cisjordânia. Dura seis anos e causa a morte de 160 israelitas e 2162 palestinos.

Manifestantes palestinianos em 1988 (ESAIAS BAITEL/AFP/Getty Images)

2000

Em Julho de 2000, fracassam as conversações de Camp David, entre Ehud Barak, primeiro-ministro de Israel, Yasser Arafat, líder da Autoridade Nacional Palestiniana, e mediadas por Bill Clinton. Parte do problema está na impossibilidade de chegar a cordo sobre o estatuto de Jerusalém.

Ehud Barak, Bill Clinton e Yasser Arafat, em Camp David

A 28 de Setembro, Ariel Sharon, então líder da oposição israelita (chegará depois a primeiro-ministro), faz uma visita ao Monte do Templo, rodeado de apoiantes e grande aparato policial. Embora Sharon não chegue a entrar na mesquita de Al-Aqsa, a intenção é claramente provocatória e desencadeia a Segunda Intifada. Quando esta termina, cinco anos depois, causou 1000 mortos entre os israelitas e 5000 entre os palestinos.

2017

A 6 de Dezembro, o presidente Donald Trump assume um dos seus papéis favoritos – o de elefante em loja de porcelanas – e anuncia a transferência da embaixada americana de Tel-Aviv para Jerusalém e o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, estatuto que não é reconhecido pela comunidade internacional, uma vez que está dependente de uma solução que permita a coexistência dos estados de Israel e da Palestina (ver Jerusalém capital de Israel: O gesto de Trump é simbólico ou um barril de pólvora?).

A decisão emana de alguém que crê que 1) o mundo começou quando a 14 de Junho de 1946, alguém assestou uma palmada no seu traseiro, e 2) o mundo gira em torno do seu umbigo, pelo que ignora quase tudo o que aconteceu em Jerusalém nos últimos milénios e é incapaz de perceber as consequências da sua decisão. Se tivesse um módico de conhecimento de História, perceberia que a declaração encerra um potencial desestabilizador comparável ao da visita de Ariel Sharon ao Monte do Templo em 2000, que esteve na origem da Segunda Intifada.

Os eventos subsequentes eram fáceis de prever: no dia seguinte à declaração de Trump, o Hamas apelou a uma Terceira Intifada, que, entretanto, já ganhou ímpeto e começou a produzir o seu rol de vítimas.