Antes de Angela Merkel, houve Helmut Kohl, o chanceler da reunificação da Alemanha, que morreu este ano, quando ia comemorar trinta e cinco anos da sua chegada ao Governo na República Federal (1 de Outubro de 1982). A sua história é provavelmente a melhor introdução à compreensão da Alemanha de hoje.

Um estadista de dimensão global

A morte de Helmut Kohl serviu pelo Mundo fora para se recordar o estadista notável e o político que, hábil, inteligente e generosamente, soube casar a (re)unificação da Alemanha (a segunda ocorrida no século XX) com mais e melhor “integração europeia” e “cooperação internacional”. Os elogios, note-se, não foram apenas póstumos. Precederam o seu desaparecimento no passado mês de Junho. Quer durante os anos em que foi chanceler, quer, sobretudo, já depois de ter abandonado o cargo que ocupou ininterruptamente entre Outubro de 1982 e Outubro de 1998, os elogios públicos abundaram. Este facto decorreu fundamentalmente de uma circunstância. Helmut Kohl foi chanceler numa conjuntura em que o papel político e a dimensão territorial da Alemanha se alteraram radicalmente, sem que, porém, estas alterações tivessem provocado aquilo que muitos (alguns alemães incluídos) temiam: o regresso, senão da guerra, pelo menos da “velha” tensão política e militar ao quotidiano da Europa pelo facto de a divisão da Alemanha, imposta pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pela Guerra Fria, ter sido rapidamente revertida após os acontecimentos revolucionários ocorridos na “Alemanha Oriental” (RDA) e cujo ponto alto sucedeu no dia 9 de Novembro de 1989, quando as autoridades daquele estado “socialista” autorizaram a saída dos seus cidadãos para a Alemanha Ocidental (RFA) e o muro de Berlim começou a ser espontânea e irreversivelmente destruído por cidadãos das duas Alemanhas.

Angela Merkel com Helmut Kohl em Berlim, em Setembro de 2012

Os presidentes George H. W. Bush e Bill Clinton brindaram Helmut Kohl, ainda em vida, com os maiores encómios. O mesmo fizeram os presidentes franceses François Mitterrand e Jacques Chirac ou o líder soviético Mikhail Gorbachev. Margaret Thatcher e John Major, por seu lado, foram mais discretos e parcimoniosos nos elogios ao seu homólogo alemão. Fosse porque, como britânicos e/ou líderes de governos conservadores, desconfiavam dos riscos para o Reino Unido e para a Europa inerentes a uma reunificação alemã, fosse por terem dúvidas sobre as implicações políticas decorrentes do rumo que a “integração” da Comunidade Económica Europeia (depois Comunidade Europeia e, mais tarde, União Europeia) tomou nas décadas de 1980 e 1990 e que a Alemanha protagonizou. Fosse ainda, sobretudo no caso de Thatcher, por ter discordado da política alemã, e em boa parte europeia ocidental, de desanuviamento relativamente aos aliados europeus da União Soviética (URSS), e que iniciada em finais da década de 1960 prosseguiu, com poucas hesitações ou dúvidas, até 1989.

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Como reconhecimento dos seus méritos políticos, Helmut Kohl recebeu em 1988, com François Mitterrand, o prémio Carlos Magno (distinção que reconhece anualmente personalidades que se destaquem pelo contributo dado para o aprofundamento da unidade da Europa). Mais tarde, em 1996, foi distinguido com o prémio Príncipe das Astúrias de Cooperação Internacional. Seria ocioso enumerar mais prémios ou outras modalidades de reconhecimentos público que recolheu enquanto chanceler ou já depois de ter deixado de ocupar aquele cargo. Mas vale a pena referir a sua existência para dar nota da dimensão e do aplauso internacional de que foi credor, sobretudo a partir do início da década de 1990 quando a reunificação alemã foi apresentada e analisada como uma história de inquestionável sucesso. E, no entanto, as tergiversações de Kohl e da Alemanha, quer durante os anos da détente e da Ostpolitik, quer nas vésperas da reunificação e imediatamente após a sua concretização, não só existiram como foram e ainda são esquecidas.

Origens, formação e ascensão

Helmut Kohl nasceu em Abril de 1930 em Ludwigshafen am Rhein (então território da Baviera, actualmente cidade independente da Renânia-Palatinado) no seio de uma família católica e conservadora. O pai era funcionário público e servira no exército imperial. Parte da infância e da adolescência de Kohl decorreram nos anos do nazismo. Chegou a pertencer a uma secção da Juventude Hitleriana e a fazer treino militar. O fim do conflito e a sua juventude impediram que combatesse. Depois de frequentar o ensino primário e secundário, cursou Ciência Política e História na Universidade de Heidelberg onde se licenciou. Doutorou-se em História em 1958, embora o título e o tema da sua dissertação remetessem mais para uma abordagem de Ciência Política. Justa ou injustamente, e apesar dos graus académicos obtidos, nunca se livrou da fama de provinciano e personagem intelectualmente medíocre, desde logo por pouco ter saído da Alemanha antes de chegar a chanceler, mas ainda por não falar, ler ou escrever outro idioma para além do alemão. Terminada a formação académica, Kohl trabalhou durante algum tempo em empresas privadas. Paralelamente, e desde o fim guerra, desenvolveu actividade política. Após a sua fundação, em 1946, colaborou e depois militou na CDU (União Democrata Cristã), tendo pertencido à organização de juventude daquele que foi sempre o seu partido. Na década de 1950, ocupou posições destacadas na CDU da Renânia-Palatinado concorrendo nas suas listas a vários cargos públicos.

Helmut Kohl em 1982 (foto PIERRE GUILLAUD/AFP/Getty Images)

Em 1959, com apenas 29 anos, foi pela primeira vez eleito para a Dieta da Renânia-Palatinado. Na década que se seguiu, Helmut Kohl consolidou a sua posição na CDU e em cargos públicos que ocupou no seu Länder natal. Um dos seus grandes méritos, e causa provável da sua ascensão política entre 1959 e 1969, residiu no facto de ter sabido usar e rentabilizar soluções que privilegiavam o diálogo e a negociação em detrimento da disputa. Fê-lo, sobretudo, quando a confrontação parecia inócua e não garantia que pudessem ser alcançadas vantagens substanciais. Quando, em Maio de 1969, foi eleito nas listas da CDU para o cargo de ministro-presidente, não só o cargo político mais importante na Renânia-Palatinado, como a sua forma de fazer política, em que o confronto era quase sempre sacrificado no altar do diálogo e da negociação, produziu os resultados desejados: era ministro-presidente dois anos depois de ter sido eleito líder da CDU na Renânia-Palatinado, sem necessitar de desafiar de forma ostensiva Peter Altmeier, o seu antecessor na chefia do partido e do Governo da Renânia-Palatinado.

Politicamente, 1969 foi um ano importante para a RFA e para Helmuth Kohl. Para a RFA porque terminaram duas décadas de governação ininterrupta da CDU. Os sociais-democratas ganharam as eleições e Willy Brandt, com o apoio dos liberais do FDP (Partido Democrático Livre), subsituiu Kurt Kiesinger como chanceler pondo um ponto final num Governo de grande coligação entre a CDU-CSU-SPD. Kohl, por seu lado, além de chegar a ministro-presidente, o mais jovem de sempre de um Bundesland (ou Länder), foi, recorde-se, eleito vice-presidente da estrutura federal da CDU. Nos anos subsequentes, além de ter posto em prática uma estratégia que pretendia conduzi-lo a líder nacional do seu partido, procurou liberalizar certos aspectos do programa político e económico da CDU, assim como algumas referências ideológicas, nomeadamente no sector da educação e em temas sociais. Em Junho de 1973, depois de dois anos antes ter perdido a eleição para líder da CDU, sucedeu naquele cargo a Rainer Barzel. Foi, aliás, e naquela data, o único candidato à liderança do partido. Chegara, portanto, à liderança do seu partido fruto de vitórias políticas mais ou menos importantes, mas nenhuma delas suficientemente dramática, ao ponto de ser capaz de captar a emoção e ficar vincada na memória dos militantes e apoiantes do seu partido, já para não falar na da generalidade dos seus compatriotas. A discrição e a eficácia eram os seus principais trunfos políticos.

A conquista e a consolidação do poder em Bona

Durante nove anos, até 1982, o antigo ministro presidente da Renânia-Palatinado enfrentou em alguns momentos uma contestação séria à sua liderança partidária. Vinha, ora da esquerda, ora da direita da CDU. Suportou ainda duas importantes crises que pareceram poder afectar o relacionamento político entre a CDU e a CSU (União Social Cristã da Baviera), liderada por Hans Josef Strauss. Por fim, em Outubro de 1982, e sem que se realizassem eleições legislativas, Kohl substituiu Helmut Schmidt como chanceler. Este acontecimento inesperado, e até então ímpar, na história política da RFA, só foi possível depois de os liberais romperem a coligação que sustentava o Governo conduzido pelo líder do SPD (Partido Social Democrata) e transferido o seu apoio no Bundestag para uma solução governativa que incluía, além dos liberais, a CDU e a CSU. A rotura entre o FDP e o SPD aconteceu na sequência de um “voto construtivo de desconfiança” ao Governo apresentado no Bundestag pela CDU e que apenas o partido de Helmut Schmidt rejeitou. A chegada de Kohl a chanceler fez-se de acordo com as regras constitucionais vigentes, mas no meio de uma controvérsia política que não seria esquecida.

Uma vez na chefia do Governo federal, Kohl forçou a abstenção de deputados da CDU numa moção de confiança que apresentou ao parlamento. Perdendo a votação através da manipulação do voto de deputados da CDU, e podendo por isso dissolver o Bundestag e realizar eleições legislativas antecipadas, estas ocorreram em Fevereiro de 1983. Foram ganhas folgadamente pela CDU-CSU.

O segundo Governo chefiado por Kohl fez aprovar importantes reformas económicas e laborais, aproximando, nuns casos, a Alemanha das soluções liberalizadoras norte-americanas e britânicas então em voga e que muito deviam às orientações seguidas sob a liderança, respectivamente, de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Paralelamente, Kohl optou por trilhar um caminho de criação, alargamento ou reforço de direitos sociais ao desenvolver políticas dirigidas a jovens trabalhadores, aos mais idosos e às mulheres, no que seguia a tradição do centro-esquerda e do centro-direita em voga na Europa Ocidental do pós-Segunda Guerra Mundial. Na política externa, Kohl imprimiu outro ritmo e definiu e implementou alguns novos propósitos, embora sempre submetidos à lógica da détente e da Ostpolitik prosseguidos pela RFA desde finais da década de 1960. Obteve, por isso, e nalguns casos, rápidos, mas, por vezes, também controversos, resultados.

Foi sob grande contestação interna que Helmut Kohl aceitou, durante a vigência do seu segundo Governo, que a OTAN instalasse na RFA mísseis cruzeiro e pershing. Este passo foi dado pelos aliados ocidentais com o intuito de aumentar a sua capacidade defensiva e dissuasora no velho continente, numa tentativa de conseguir um princípio de equilíbrio do poder militar dos dois blocos no âmbito das forças não convencionais. Do ponto de vista de Kohl, esta decisão pretendia ainda dar um sinal de que embora a estratégia de aproximação da RFA aos países europeus do “bloco soviético”, e à própria URSS, continuasse a ser o elemento essencial da sua política externa, incorporava algumas diferenças se comparada com a que fora prosseguida em anteriores governos do SPD. Não porque o seu antecessor, Helmut Schmidt, se tivesse oposto ao estacionamento de mísseis pershing e cruzeiro em território da RFA, mas porque fora incapaz de garantir que tal podia e iria suceder enquanto foi chanceler. Paralelamente, Helmut Kohl não apenas prosseguiu como aprofundou a estratégia de estreitamento de laços políticos com a França, mas ainda de redefinição dos termos em que a “integração” da então Comunidade Económica Europeia (CEE) deveria processar-se. A presença de Kohl em Verdun, acompanhado de François Mitterrand, a 22 de Setembro de 1984, onde 68 anos antes, entre Fevereiro e Dezembro de 1916, os exércitos franceses e alemães se tinham defrontado na mais longa e sangrenta batalha da Grande Guerra, foi preparada como sinal de uma reconciliação definitiva entre Bona e Paris, e, portanto, equivalendo ao inevitável início de uma nova era na história das relações entre os dois estados e naquilo que viria a ser, até à década de 1990, a constituição de um “eixo” franco-alemão capaz de conduzir e reformular o processo de “integração” europeia no âmbito da CEE/CE.

Neste contexto de reparação da imagem da Alemanha num âmbito europeu e global, Kohl obteve de Ronald Reagan a cooperação desejada para que ambos praticassem um gesto simbólico que representasse a total reconciliação entre dois ex. estados inimigos. Porém, se a visita que ambos realizaram, em Maio de 1945, ao cemitério militar alemão de Bitburg poderá ter sido um gesto sincero de reconciliação entre os EUA e a RFA, pareceu a muitos um desnecessário e até ofensivo acto de branqueamento da acção e das motivações do estado e da sociedade germânica, e dos seus militares, durante a Segunda Guerra Mundial. Daqui podia portanto concluir-se que quaisquer que fossem as intenções de Kohl quanto a uma muito necessária reavaliação do papel político da Alemanha na Europa e no Mundo quatro décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, e 71 anos depois do início da Grande Guerra, importantes obstáculos ainda se encontravam no caminho da reconciliação absoluta e do desejado perdão concedido, ou a conceder, pelas vítimas aos seus carrascos.

Em 1987, Kohl e a CDU-CSU voltaram a vencer as eleições legislativas. Embora a Guerra Fria tivesse entrado numa nova etapa desde o ano anterior e a arquitectura da CEE sido reformada com a celebração do Acto Único Europeu, ninguém poderia supor que sensivelmente a meio deste seu terceiro, e penúltimo, mandato como chanceler, a realidade política alemã, europeia e global se alteraria tornando-se quase irreconhecível.

De Bona para Berlim: O Fim da Guerra Fria, a Reunificação da Alemanha e o Tratado da União Europeia (ou Maastricht)

É de certa forma ocioso e inglório tentar identificar quando e onde teve início a série de acontecimentos que colocou um ponto final na Guerra Fria. De qualquer modo, e no que à sua dimensão europeia diz respeito, não se andará muito longe da verdade se se destacar a importância dos acontecimentos ocorridos na Polónia em 1988-89. E no entanto, em datas tardias como Setembro ou Outubro de 1989 o fim da Guerra Fria na Europa e, sobretudo, a unificação das duas Alemanhas podiam e deviam ser ainda considerados desfechos improváveis dos acontecimentos em curso. De qualquer modo, e retrospectivamente, as conversações, iniciadas em Fevereiro de 1989, entre o Governo do general Jaruzelski e representantes da Igreja Católica e de vários grupos oposicionistas, com destaque para o movimento Solidariedade, e que se sucederam às primeiras conversas realizadas em Setembro de 1988 entre Lech Walesa e o ministro do Interior polaco, funcionaram como detonadores de uma série de factos que conduziram à subtracção dos países do Pacto de Varsóvia ao domínio da URSS, à implosão desta e ao fim da Guerra Fria, além de, claro está, à reunificação alemã e a uma “aceleração” e um “aprofundamento” da “integração europeia” na sequência da celebração, em 1992, do Tratado de Maastricht que determinou o compromisso com uma maior “coesão económica e social” por parte dos quinze países membros da Comunidade Europeia, nomeadamente através do estabelecimento de uma “união económica e monetária”.

O resto do muro que dividiu Berlim até 1989.

As mudanças políticas que varreram a Europa Central e de Leste iniciaram-se portanto na Polónia quando, em 1988, o general Jaruzelski, presidente do Conselho de Estado polaco (na verdade chefe de estado detentor de poder executivo), percebeu que alguma forma de acordo com o movimento político-sindical Solidariedade, banido em Dezembro de 1981, deveria ser negociado. Era evidente que só dessa forma a pressão internacional a que o estado polaco estava sujeito poderia, senão terminar, pelo menos atenuar-se. Isto numa conjuntura em que a Polónia vivia uma situação política e social explosiva e necessitava de uma maior ajuda económica e financeira ocidental, uma vez que só com essa ajuda poderia ter início um alívio das dificuldades experimentadas desde finais da década de 1970 e que, em parte, tinham conduzido à ascensão do movimento liderado por Lech Walesa. Das negociações públicas e formais entre o Governo e oposição, iniciadas em Fevereiro de 1989, saiu um acordo para a realização de eleições legislativas. Embora o entendimento obtido estipulasse que apenas 35% da Câmara Baixa do Parlamento iria ser livremente eleita, a verdade é que o Solidariedade conquistou uma maioria esmagadora dos votos expressos (os acordos entre o Governo e a oposição estipularam a criação de um Senado que seria totalmente eleito na votação que escolheu a Câmara Baixa e que a oposição venceu de forma esmagadora). Acto continuo, em Agosto de 1989, o general Jaruzelski nomeou Tadeusz Mazowiecki primeiro-ministro, tornando-se o primeiro chefe de Governo não comunista polaco desde a década de 1940.

Enquanto na Polónia ocorreu uma profunda mudança nos pressupostos teóricos e práticos em que assentava o funcionamento do sistema político, no Verão de 1989, após a realização nos meses de Março e Abril de eleições relativamente livres e justas na URSS (todos os candidatos ao Congresso de Deputados do Povo tinham que ser membros do partido único, embora, desejavelmente, devesse apresentar-se mais do que um candidato por cada círculo eleitoral), as bases políticas e ideológicas de alguns dos países pertencentes ao bloco soviético começaram a assentar em pressupostos radicalmente distintos (facto que os líderes da Checoslováquia, Bulgária, Roménia e RDA reconheciam opondo-se encarniçadamente ao reformismo em marcha na URSS, na Polónia e, como se verá, na Hungria). Portanto, e mesmo que não fosse claro para todos, no fim do Verão de 1989 o equilíbrio de forças na Europa Central e de Leste alterava-se rápida e irreversivelmente, favorecendo, nas políticas nacionais, as oposições face ao establishment, e, na política internacional, o “ocidente” e as “democracias liberais” em detrimento da URSS e do “socialismo”. Ao contrário daquela que seria a vontade das lideranças políticas que prevaleciam em Sófia, Bucareste, Praga e Berlim Leste, Moscovo nunca pôs em prática, nem aprovou que os seus aliados europeus executassem, qualquer reacção violenta como aquela que os comunistas chineses preparam e executaram na Praça de Tiananmen, em Pequim, na Primavera de 1989.

A aceitação por Mikhail Gorbachev e pelo estado soviético da legitimidade da entrega da chefia do Governo polaco a Tadeusz Mazowiecki (facto que também decorria do anúncio que fizera, no início de Julho, numa conferência do Pacto de Varsóvia em que proclamou o fim da “Doutrina Brejnev” e o direito dos estados membros daquela organização fazerem as suas escolhas políticas livres), e sendo a Polónia um estado no qual, desde a década de 1970, maior tinha sido a contestação ao monopólio do exercício do poder político pelos comunistas e seus aliados, tornava óbvio que fora atingido um ponto de não retorno na história da Europa situada a leste da “cortina de ferro”. Pouca admiração causou, portanto, que, em Junho de 1989, começassem na Hungria negociações entre o Governo e representantes de partidos oposicionistas legalizados em Janeiro. Seguindo o modelo polaco, as negociações buscavam uma liberalização da vida política, económica e social, embora ao contrário do sucedido na Polónia, a disponibilidade negocial das autoridades assentasse na convicção de que seria melhor buscar um entendimento com as oposições naquilo que se considerava ser uma posição de força. Em Setembro chegou-se a uma solução, embora em circunstâncias que davam às oposições e à população, que começara a manifestar-se massivamente nas ruas, uma posição de força política e moral inexistente nos primeiros meses de 1989. Independentemente daquilo que foi negociado entre as partes (uma transição política suave para uma Hungria pós-comunista), a verdade é que o desejo húngaro de chamar a atenção internacional para a posição de submissão em que se encontrava a população de origem magiar na vizinha Roménia, mas também a promessa feita pelas autoridades da RFA de que facilitariam ao novo Governo de Budapeste meio bilião de dólares caso um processo de liberalização política fosse efectivamente iniciado, também em Setembro as autoridades húngaras informaram que deixariam de colocar entraves à passagem de cidadãos da RDA pela fronteira austro-húngara. Este facto teria consequências.

Em finais de Setembro, era óbvio que as crescentes manifestações na Alemanha de Leste contra o status quo, a par do êxodo em curso para o Ocidente através da Hungria e da Áustria (mas passando pela Checoslováquia), iriam produzir mudanças em Berlim Oriental. Não necessariamente uma união política das duas Alemanhas, mas uma reforma profunda das instituições, do modelo económico e do sistema político da RDA. No início parecia que ia ser assim. Porém, e à medida que 1989 se aproximava do fim e 1990 tomou o seu curso, o ponto de chegada acabou por ser muito diferente do que se supusera cerca de seis ou mesmo três meses antes. A 18 de Outubro, Erich Honecker, líder máximo da RDA, resignou aos cargos que ocupava no partido e no estado depois de numa votação ocorrida no Politburo ter decidido unanimemente pela sua destituição. Esta destituição era resultado do facto de, a partir de Setembro, ter aumentado a contestação popular interna ao regime: manifestações, fuga crescente de alemães do leste para a Alemanha Ocidental, criação de grupos de acção e de reflexão política… A fuga para a RFA fez-se não só através da fronteira austro-húngara, mas, a certa altura, procurando também refúgio na embaixada da RFA localizada em Praga, uma vez que as autoridades da Checoslováquia, a instâncias do Governo da RDA, começaram a travar o acesso de cidadãos da Alemanha Oriental à Hungria através de território checoslovaco. Desta forma, a crise na Alemanha de Leste não só não foi travada como contaminou a Checoslováquia.

Antes e depois da demissão de Honecker, a reacção política das autoridades da Alemanha de Leste conheceu várias etapas. Produziria, por exemplo, e como sinal de fraqueza, de intransigência e de desnorte, o encerramento de todas as fronteiras da RDA, facto que a tornou no único estado da “cortina de ferro” onde, em finais de 1989, esta ainda existia de facto. A par destas dificuldades, e também em Outubro, aumentaram em número e em intensidade as manifestações populares, nomeadamente as realizadas todas as Segundas-feiras em Leipzig desde o dia 4 de Setembro de 1989. Nesta cidade, os manifestantes exigiam mudanças políticas a que Honecker se opunha mas que, por exemplo, Gorbachev considerava não só desejáveis mas, também, inevitáveis, facto que levou a uma rotura política e pessoal entre os dois homens e a um quase desinteresse da URSS sobre o destino do comunismo da RDA.

A escolha de Egon Krenz para suceder a Erich Honecker pouco ou nenhum efeito teve na evolução da situação política na RDA. As propostas de liberalização e abertura política preparadas pelas autoridades, e que foram divulgadas a 9 de Novembro, uma Quinta-feira, tiveram sobretudo o condão de conduzirem o povo de Berlim Oriental para as imediações do muro que dividia a cidade. Os manifestantes exigiram então o direito de atravessarem livremente os pontos de passagem existentes, reivindicação que os desmoralizados guardas fronteiriços acabaram por permitir depois de receberem várias ordens contraditórias sobre a forma como deviam reagir à presença e às pretensões dos manifestantes. Nos dias subsequentes, um fim-de-semana, entre dois a três milhões de alemães de leste visitaram Berlim Ocidental. Tudo mudara e o Muro de Berlim tornou-se rapidamente apenas num símbolo da Guerra Fria e da separação das duas Alemanhas. Foi neste momento, e não antes, que a questão da unificação da RFA e da RDA não só se colocou como se tornou possível e eventualmente provável.

De todos os estados da Europa Ocidental, é óbvio que a RFA era aquele que mais vantagens poderia obter do curso dos acontecimentos recentes e que eram causa e resultado da ausência de vontade e de capacidade de intervenção política nos países do Pacto de Varsóvia e na periferia da URSS por parte do estado soviético e do seu aparelho militar e securitário. Por finais da década de 1980, as autoridades soviéticas substituíram a Doutrina Brejnev pela chamada “Doutrina Frank Sinatra” que determinava que URSS não pretendia, nem tinha condições, para pagar o preço político, económico, militar e até moral de uma intervenção feita em nome da defesa ou da restauraração do status quo vigente até 1988. Genericamente, as autoridades soviéticas passaram a considerar que as populações dos países membros do Pacto de Varsóvia deviam poder determinar o seu futuro político, sobretudo se optassem por uma via reformista (caso da Polónia e da Hungria) e não por uma opção imobilista (em que se refugiaram a RDA, a Roménia, a Checoslováquia e a Bulgária).

Neste contexto, caracterizado ainda pelas hesitações norte-americanas sobre o tipo e o alcance do apoio a dar ao programa de reformas políticas e económicas de Gorbachev (hesitações que eram em grande medida consequência de problemas políticos que afectaram a credibilidade e a autoridade de Ronald Reagan nos últimos anos do seu segundo mandato), o chanceler alemão Helmut Kohl fez tudo o que estava ao seu alcance, e era bastante, para aproximar a RFA da URSS e com ela redesenhar um novo mapa político da Europa central. Face à (falta de) atitude mostrada por Washington até à entrada em funções de George H. W. Bush em 1989, e preparando, inicialmente de forma discreta, as respostas e as iniciativas da Comunidade Europeia perante as novas circunstâncias ocorrentes na Europa Central e de Leste, Moscovo tornou-se para o Governo de Bona o principal obstáculo, mas, também, o parceiro mais importante e mais desejado para que se fizesse uma revisão substancial, e eventualmente célere, da realidade política europeia nascida no pós-guerra e consolidada durante a Guerra Fria. Uma realidade em que assumia grande destaque a divisão da Alemanha em dois estados com características e pretensões antagónicas.

Quando, no final de 1989, era evidente que na RDA o estado se encontrava em fase avançada de desagregação, Bona e Moscovo não tardaram em encontrar uma solução para o problema alemão, temerosos que estavam, mesmo que por razões diferentes, que uma espécie de vazio de poder tomasse conta da Alemanha de Leste. Numa cimeira com Kohl e Gorbachev realizada em Moscovo em Fevereiro de 1990, a URSS deu luz verde à unificação da Alemanha, ainda que alguns problemas importantes tenham ficado por resolver. Desde logo, Moscovo não ignorava que o problema alemão, tal como saíra da Segunda Guerra Mundial e se prolongara por toda a Guerra Fria, dizia também respeito às demais potências ocupantes da Alemanha (além da URSS, os EUA, o Reino Unido e a França). De qualquer modo, a troco de ajuda económica e financeira germânica e da concessão de algumas garantias políticas, nomeadamente de apoio a dar pelo Governo da RFA a Gorbachev e ao seu programa de reformas, o caminho entre Bona e Berlim ficou praticamente desimpedido, permitindo a Helmut Kohl impor a sua agenda política e do seu Governo à Alemanha Ocidental e à Alemanha Oriental, mas também a toda a Europa.

Helmut Kohl cumprimenta François Mitterrand durante uma sessão solene do parlamento europeu em Estrasburgo em Novembro de 1989, depois da queda do muro de Berlim

Na Primavera de 1990, era óbvio que não só as duas Alemanhas se uniriam, como essa união se realizaria nos termos desejados por Bona. No entanto, Kohl e o Governo da RFA puderam e souberam transformar aquilo que era, e que foi, fundamentalmente, o triunfo da vontade e dos interesses da Alemanha, no triunfo da vontade e dos interesses da “Europa” e do “Ocidente”, em nome dos quais, aliás, a política interna e externa de Bona foi concebida e executada desde finais da década de 1960. De qualquer modo, tanto para tranquilizar os europeus e os norte-americanos, como para satisfazer os interesses vitais de Bona, Kohl conseguiu obter de Gorbatchev, e depois de George H. W. Bush, mas não de François Mitterrand e de John Major, o reconhecimento de que a unificação alemã devia ser, em primeiro lugar, resolvida pelos alemães e, só depois, tratados os problemas de segurança internacional que reunificação poderia implicar: em primeiro lugar, a questão da pertença, ou não, da Alemanha à OTAN; em segundo, o problema do reconhecimento pela Alemanha unificada da sua linha de fronteira com a Polónia e estabelecida nos rios Oder-Neisse desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Helmut Kohl, recorde-se, tardou em reconhecer os limites territoriais da Alemanha na sua fronteira polaca, facto que chegou a causar estranheza e perplexidade, além de despertar fantasmas germanófobos. Bona acabou, no entanto, por recuar dando garantias formais desse facto à Polónia e à comunidade internacional. Quanto à questão da OTAN, o Governo de Kohl e os seus aliados ocidentais concordaram que a RFA pós-unificação deveria permanecer um estado membro daquela organização. A URSS opôs-se inicialmente a esta solução. Porém, as conversas e negociações entre Bona e Moscovo, e, antes disso, a pressão exercida pelos parceiros soviéticos no Pacto de Varsóvia, apoiando a permanência da Alemanha na OTAN, acabaram por fazer com que a URSS aceitasse aquilo um ou dois anos antes seria considerado impossível e inaceitável. Os polacos, por exemplo, temiam que uma Alemanha neutral poderia ter tendência para seguir o seu caminho e tornar-se numa grande potência agindo sobretudo de acordo com os seus interesses. Os húngaros, por seu lado, defenderam que só uma Alemanha na OTAN podia ser mantida sob controlo, tarefa que seria atribuída aos seus aliados e por eles certamente executada. As garantias dadas por Kohl a Gorbachev num encontro realizado em meados de Julho de 1990 em Moscovo e no Cáucaso, e a celebração de um tratado que reduzia os meios militares da OTAN e do Pacto de Varsóvia na Europa, abriram a porta para a unificação de facto e de jure da Alemanha a 3 de Outubro de 1990. A partir desta data o fardo da reunificação da Alemanha ficou em boa parte, mas não exclusivamente, nas mãos dos alemães que pagaram um preço elevado tanto no plano económico-financeiro, como político e social.

Foi neste contexto em que a reunificação alemã era a prioridade das prioridades para Bona, que as autoridades da RFA ajudaram à concepção, e subsequente implementação, em 1992, do Tratado de Maastricht. Independentemente deste documento impor à nova Alemanha um esvaziamento parcial da sua soberania política, económica e monetária (uma forma de contrabalançar o aumento substancial do seu território, da sua população e, a prazo, do seu poder, quer no contexto da União Europeia, quer da Europa propriamente dita), a verdade é que o preço a pagar pela Alemanha era absolutamente razoável, como, aliás, o curso dos acontecimentos se encarregou de demonstrar e a elite política e económica alemã soube prever.

Após a realização de eleições livres e justas na RDA em Março de 1990; depois de, a 1 de Julho daquele ano, o marco da RFA ter chegado à RDA; de, em 23 de Agosto, vinte e um dias após a invasão do Kuwait por tropas iraquianas, a “Assembleia Popular” da RDA ter votado a união com a RFA ao abrigo do artigo 23.º da Constituição da Alemanha Ocidental; e de, a 12 de Setembro, ter sido assinado em Moscovo o Tratado Sobre o Acordo Final com Respeito à Alemanha (em que França, URSS, EUA e Reino Unido renunciaram aos direitos que possuíam sobre a Alemanha desde a realização da Conferência de Potsdam no Verão de 1945), no dia 3 de Outubro de 1990 a Alemanha Oriental uniu-se à Alemanha Ocidental. A partir desta data, a história da unificação alemã não terminou. Apenas entrou numa nova fase. Porém, as implicações, as virtudes, os medos, os riscos e as incógnitas subjacentes a este facto novo inquietaram, ao menos, a Europa e os europeus.

Kohl e Bismarck

O problema alemão, ou a questão alemã, é fácil de enunciar e resume-se a alguns factos que podem ser descritos em poucas palavras. Aquele ou aquela decorrem do facto da Alemanha, no contexto europeu, ser demasiado grande, ter demasiada população, ser muito forte, ser muitíssimo organizada e encontrar-se “equipada” com recursos económicos (nomeadamente financeiros e industriais) de excepção. Foi, aliás, em termos muito semelhantes aqueles que acabo de usar que um historiador britânico, A. J. P. Taylor, se referiu à Alemanha e à “unidade” alemã pós-1848 num ensaio escrito na década de 1950 e desde então várias vezes publicado. É verdade que a Alemanha, a Europa e o Mundo pós-1989 são muito diferentes da Alemanha, da Europa e do Mundo existentes na década de 1860 (com as guerras de 1864, 1866 e 1870-71) quando se materializou a unificação alemã sob a dupla tutela e vontade de Bismarck e da Prússia. Além disso, a RFA não é a Prússia e Helmut Kohl não é Otto Von Bismarck (1815-1898), além de que a RFA não usou meios militares para que a RDA se lhe unisse.

Helmut Kohl em 1998, durante uma cimeira europeia.

E no entanto, a unificação alemã ocorrida na década de 1860 tem algumas semelhanças com a ocorrida em 1990, e vice-versa. Em primeiro lugar, porque ambas tiveram o rosto de um estadista e um estado alemão como mentores e protagonistas. Em segundo lugar, porque os “processos” de unificação dependeram da capacidade de Bismarck e de Kohl, da Prússia e da RFA, para eliminarem e/ou anularem acordos internacionais e adversários externos que impediam ou se opunham a ambos processos de unificação. Na década de 1860, Bismarck eliminou ou neutralizou os adversários internos e externos de uma unificação alemã dirigida pela Prússia. Conseguiu que as grandes potências europeias não pudessem evocar o espírito e a letra dos acordos celebrados durante o Congresso de Viena concluído em 1815 para travarem a unificação alemã sob tutela da Prússia. Helmut Kohl fez exactamente o mesmo. Contornou, apaziguou e eliminou, na Alemanha e no contexto internacional, tudo e todos aqueles que podiam ter argumentos válidos para impedirem uma reunificação alemã segundo a vontade da RFA. Pode igualmente negociar e assinar um tratado de paz em Setembro de 1990, com a URSS, os EUA, a França e o Reino Unido, que embora não fizesse tábua raza daquilo que fora o desenlace político e militar da Segunda Guerra Mundial, nele praticamente nada era dito sobre a potência que dela saíra derrotada e que se rendera incondicionalmente aos exércitos aliados em Maio de 1945. Finalmente, a unificação alemã, quer na década de 1860, quer no biénio 1989-90, foi credora de acontecimentos revolucionários protagonizados pelas classes médias. Porém, uma e outra só se consumaram por vontade e acção das elites políticas e sociais alemãs. Ou seja, a unificação alemã de Bismarck e a unificação alemã de Kohl foram revoluções controladas e executadas do topo para a base ou, se quisermos, do estado para a sociedade. Ou melhor ainda, do topo da pirâmide política e social para os escalões baixos e, sobretudo, intermédios dessa mesma pirâmide. Aliás, tanto Bismarck como Kohl foram líderes políticos conservadores, avessos a agirem de acordo com a vontade das massas mais ou menos descontroladas, embora ambos quase sempre se tenham mostrado disponíveis e capazes de usarem em proveito dos estados que serviam (a Prússia e a RFA, respectivamente) as oportunidades que as mudanças no espírito, nas ambição e no comportamento das multidões propiciavam.

Angela Merkel assina o livro de condolências diante do retrato oficial de Helmut Kohl (foto: JOHN MACDOUGALL/AFP/Getty Images)

Sabemos que o II Reich que Bismarck ajudou a nascer em 1871 morreu sem glória em 1918. Sabemos igualmente que o II Reich do Kaiser Guilherme II era muito diferente do que Bismarck deixou de ser chanceler em 1890. No entanto, entre 1871 e 1890 Bismarck preocupou-se em criar, dentro e fora da Europa, um sistema de alianças capaz de preservar tanto os interesses da Alemanha, como a segurança de todos. As guerras, se e quando acontecessem, deviam ser limitadas tanto por razões político-militares, como até morais. A Alemanha de Bismarck era uma potência satisfeita.

Ainda que sejam muitas as diferenças entre a Alemanha, a Europa e o Mundo de finais da década de 1880 e essas mesmas três realidades nos dias de hoje, a verdade é que a Alemanha democrática e pacífica que actualmente existe, e que é, também, um legado da acção de Helmut Kohl, poderá não estar destinada a existir eternamente. A Alemanha de hoje não será necessariamente a Alemanha de amanhã. Nesse sentido, a história do futuro será, portanto, uma incógnita, mas não um enigma. Porque o temos o passado que nos pode ajudar na forma como nos devemos orientar e conduzir no futuro.

Fernando Martins é professor do departamento de História da Universidade de Évora